01 Fevereiro 2017
“A obra de criação não se situa em um único instante de um passado distante. Ela se desenrola diante dos nossos olhos. A Natureza é o único milagre. Se tudo é um milagre autêntico, nada é um milagre excepcional.”
A opinião é de Jacques Neirynck, professor honorário da École Polytechnique Fédérale de Lausanne e ex-conselheiro nacional do Partido Democrata Cristão, da Suíça, em artigo publicado no sítio Baptises.fr, 24-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um cristão pode continuar acreditando em milagres, e a Igreja pode continuar os proclamando? Essa interrogação levanta uma questão preliminar: qual é a definição de um milagre, que critérios permitem discerni-lo? É significativo que não se encontram respostas formais no Catecismo da Igreja Católica publicado em 1992. O índice temático menciona seis ocorrências do termo, sempre ligados com os milagres de Cristo, mas nenhuma definição.
Derivado do latim miraculum, “prodígio, maravilha, coisa extraordinária”, o seu significado na linguagem eclesiástica atual parece ser um fato que não poderia ser explicado por causas naturais e que se atribuiria a uma intervenção divina. Ora, todo fenômeno devidamente atestado na nossa época é um fato natural, suscetível de ser incorporado na ciência, mesmo que seja raro, aleatório, não reproduzível.
No primeiro século, na redação dos Evangelhos, o milagre não tinha nenhum estatuto em relação à ciência, uma vez que esta não era sequer concebível. Vinte séculos mais tarde, a palavra milagre busca outra significação. Os nossos contemporâneos são tão insensíveis ao sobrenatural que a sua manifestação presumida por um milagre não constitui uma atestação da fé, mas um embaraço. Abordemos a questão pelo outro lado, o da pesquisa científica. A ciência é capaz de aceitar o conceito de milagre?
Os redatores dos Evangelhos habitavam um mundo animista. Nessa representação, todos os fenômenos, positivos ou negativos, que afetam o nosso bem-estar, assim como a nossa sobrevivência, procedem de uma intenção sobrenatural. O mundo possui um sentido perpétuo, contínuo, decifrável da ação divina, politeísta ou monoteísta.
Uma vez que todo evento procedia de um impulso divino comum, esse impulso se tornava excepcionalmente visível no milagre, já que este era espetacular. Jesus revelava a Sua natureza divina com fatos surpreendentes: mudar a água em vinho, caminhar sobre um lago, multiplicar os pães... O critério do milagre era o caráter espetacular, não a relação com a ciência, inexistente na época.
Nos séculos XII e XIII, os teólogos Abelardo e Bacon tiveram a intuição de leis naturais. Galileu e Newton, no século XVII, enunciaram as primeiras “leis”. O que restou, então, do milagre? Antes, tratava-se de um fenômeno espetacular, que, no entanto, resultava de uma origem banal, isto é, animista.
Hoje, mesmo com a intercessão dos santos, nada de tão surpreendente acontece: os “milagres” invocados nos processos de canonização são curas espetaculares, que podem entrar na categoria normal das remissões espontâneas.
A conversão ao cristianismo nos primeiros séculos vinha de uma evolução: o monoteísmo emergia e continua emergindo do animismo, do politeísmo e da monolatria. A crença no milagre se prolongava, assim, no cristianismo. Essa tendência continuou muito além da Idade Média.
Durante o Século das Luzes, Benjamin Franklin inventou o para-raios em 1752. Havia pessoas de boa vontade que se sentiram ofendidas. O raio não seria, talvez, uma expressão da vontade divina a fim de punir alguns incrédulos? Franklin foi forçado a se desculpar pela sua invenção: “Se Deus, por nossos pecados, quisesse fazer chover fogo sobre nós, não se esperaria que as nossas lideranças assegurassem as nossas casas contra tal milagre”. Nessa concepção, o Deus dos cristãos perpetuaria a obra punitiva de Júpiter, para o qual o raio era a arma específica. A ação do para-raios estaria suspensa nesse caso!
Mas essa interpretação animista dos fenômenos excepcionais, no entanto, tinha tido desmentida desde o primeiro século. Na época da pregação de Jesus de Nazaré, uma torre tinha desmoronado em Siloé, esmagando vítimas, o que foi interpretado como uma punição. No Evangelho de Lucas, Jesus assegura aos seus discípulos: “E aqueles 18 que morreram quando a torre de Siloé caiu em cima deles? Pensam vocês que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?”. Um edifício desaba porque as regras da estabilidade das construções não foram respeitadas. Qualquer outra interpretação se enquadra em uma crença animista, não cristã.
Hoje em dia, uma crença rudimentar no milagre persiste em certas Igrejas cristãs. Ele responderia à oração de intercessão. Os protestantes e os anglicanos rejeitam a intercessão dos santos, que eles consideram como uma sobrevivência do politeísmo. Em vez disso, um processo de canonização na Igreja Católica ainda deve se apoiar em dois milagres, que teriam sido obtidos pela intercessão do candidato. Nessa concepção, a Natureza não é mais manipulada continuamente pelos espíritos, mas o é excepcionalmente pelos santos. É um animismo eclipsado.
Em oposição a essa concepção arcaica, uma formulação exemplar da oração de intercessão foi enunciada por Teresa de Lisieux: “Sempre rezar como se a ação fosse inútil, e sempre agir como se a oração fosse insuficiente”. Não se trata, portanto, de banir a oração de intercessão, mas de formulá-la em uma perspectiva justa, a do trabalho da pessoa de fé sobre si mesma, e não da manipulação mágica de fenômenos exteriores.
O milagre deve assumir uma nova significação, menos evidente, mas mais significativa. Os nossos conhecimentos atuais suscitam um reflexo de admiração diante da maravilha da Natureza em si mesma, no seu funcionamento normal. Assim, o milagre não se torna mais a exceção daquilo que não pode ser, mas a regra. O milagre permanente é a Criação em si mesma. Na verdade, se só a exceção é admirável, isso significaria que a regra não seria digna.
A crença ingênua no milagre pontual deve ser abandonada ou ultrapassada, assim como as crenças do paganismo no primeiro século da nossa era. O Deus Todo-Poderoso, herdado do Antigo Testamento, das mitologias pagãs, da abstração filosófica desaparece com essa passagem. Esse fenômeno não significa o fim da convicção, mas o da sua expressão anterior através das crenças. É passar do “crer que” ao “crer em”. A cristandade entra, assim, em uma noite espiritual, que não mede o abandono da fé, mas a sua purificação dos resíduos do paganismo, da sobrevivência do animismo no conceito ultrapassado de milagre pontual.
A obra de criação não se situa em um único instante de um passado distante. Ela se desenrola diante dos nossos olhos. A Natureza é o único milagre. Se tudo é um milagre autêntico, nada é um milagre excepcional. Albert Einstein definiu essa nova atitude: “Existem apenas duas maneiras de viver a sua vida: uma é como se nada fosse um milagre, a outra é como se tudo fosse um milagre”.
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Milagre: um conceito que se tornou incerto. Artigo de Jacques Neirynck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU