24 Janeiro 2017
Entre os próximos dias 7 e 8 de Julho acontecerá em Hamburgo o encontro de uma nova cúpula de chefes de estado e líderes do G-20, entre os quais está a Argentina. A conferência será presidida por Angela Merkel, e muitos participantes certamente recordarão que em diversas cúpulas anteriores Cristina Fernández de Kirchner advertia sobre o rumo equivocado da economia global, os estragos do neoliberalismo, as armadilhas do livre comércio e os tratados de livre comércio malfadados.
Quando ela dizia essas coisas, os pomposos da direita, dentro e fora da Argentina - de fato, uma coleção inadmissível de representantes públicos das grande transnacionais disfarçados de "economistas sérios" ou de "jornalistas independentes" – zombavam dela sobre o atraso de seus conceitos econômicos, acusavam-na estupidamente de "setentista" e não atenuavam suas reprovações pelo "anacronismo" de suas críticas à ordem econômica internacional, responsável pelo fato da Argentina se encontrar "isolada do mundo."
O comentário é de Atilio A. Borón, sociólogo, publicada por Página/12, 23-01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Quisera ver o que dirão nesse momento os aliados de Washington e seus empregados nos meios de comunicação quando escutarem Trump pronunciar um discurso muito semelhante ao de Cristina, porque os estragos que o Consenso de Washington causou em todo o mundo não tomaram os Estados Unidos como exceção. O que eles vão dizer?
Trump, que não é nada santo em minha devoção (como qualquer outro presidente dos Estados Unidos) percebeu que para reconstruir seu país teria que jogar fora as ideias que as políticas econômicas da Casa Branca haviam presidido desde o começo dos anos oitenta. Em seu discurso inaugural iconoclasta, ele proclamou o retorno ao protecionismo dos pais fundadores da sociedade norte-americana (como Alexander Hamilton, que foi o primeiro secretário do Tesouro e um protecionista obstinado), denunciou a classe política tradicional - arrebatada e financiada pelos agentes empresariais do neoliberalismo - de enriquecer-se enquanto a grande maioria do país se empobrecia, empresas e empregos migravam para outras latitudes, e o "sonho americano" se tornava um pesadelo intolerável.
Trump pretende dar o golpe de misericórdia ao neoliberalismo, porque o seu vírus - para usar a expressão de Samir Amin - contagiou a potência integradora do sistema imperialista e seus efeitos são letais. É preciso averiguar se o que anteriormente, em nota, chamávamos de "Estado profundo" ou o "governo invisível" dos EUA permite a ele concretizar o seu propósito. Em todo caso, o discurso de Washington virou cento e oitenta graus, e o que antes era virtude, agora é um vício a ser combatido sem trégua. Frente a este giro, quase todos os governos da América Latina, começando pelo da Argentina, ficaram sem entender nada.
Ao falar dos Estados Unidos, José Martí costumava usar a expressão "Roma Americana". Seguindo essa analogia sugestiva, pode ser dito que a virada anti-neoliberal de Trump guarda semelhança com o que aconteceu quando o Imperador Constantino, atormentado por rebeliões que comoviam a imensidão do Império Romano e nas quais os cristãos eram pontas de lança, no ano 313 d.c., foi revelado o Édito de Milão, que convertia o cristianismo na religião oficial do império e declarava as outras religiões como heréticas.
Não há de se exagerar demasiadamente essa analogia, entretanto, como se diz em italiano, "se non é vero é ben trovato".
Naturalmente que este giro em direção ao "populismo econômico" não é feito por Trump tendo em vista alguma simpatia com o socialismo do século XXI ou as lutas emancipatórias dos países periféricos. Menos ainda, como alguns pensam, para ensaiar um "peronismo a la americana" porque, nem mesmo remotamente, passa pela cabeça do magnata nova-iorquino nacionalizar o comércio exterior, os depósitos bancários, a Reserva Federal (uma entidade privada) ou os meios de transporte, como Perón fez na Argentina do pós-guerra.
Ele faz isso porque percebeu que o neoliberalismo está silenciosamente destruindo os Estados Unidos. De qualquer forma, aqueles que antes, no G-20, interrompiam Cristina, agora escutarão um discurso quase idêntico pelos lábios do novo Constantino.
Certamente, antes do que ela houvesse pensado, a ex-presidenta experimentará o regozijo íntimo da reivindicação de suas justas críticas à ordem econômica internacional. E nada menos do que dos lábios do novo imperador!
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Constantino na Roma americana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU