17 Janeiro 2017
Décadence, a segunda parte de sua “Brève encyclopédie du Monde”, acompanha o nascimento, apogeu e fim da civilização judaico-cristã. Não é, escreve o filósofo Michel Onfray, nenhuma satisfação ou desgraça, mas apenas um fato.
A entrevista é de Vincent Trémolet de Villers, publicada por La Repubblica, 14-01-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Em que momento começou essa decadência?
Desde o instante em que uma criança nasce já está suficientemente velha para morrer. O meu esquema é vitalista, supõe que da mesma forma que um vulcão ou as placas tectônicas têm vida própria, assim as civilizações também possuem uma vida própria. Essa vida pode ser interrompida por um evento. Uma civilização, essa é uma verdade óbvia, vive enquanto resiste contra aquilo que a quer morta. Enfraquecida, um dia não terá mais forças e acabará sucumbindo. A nossa civilização tem dois mil anos, uma idade respeitável para aceitar seu fim.
O cristianismo enfraqueceu em demasia na Europa, embora exista um bilhão de cristãos no mundo. O Papa Francisco está no ápice de sua popularidade. Essa religião está em vias de extinção?
Primeiro devemos ver de qual cristianismo estamos falando! Há muito passou o tempo em que a religião católica reunia fiéis que acreditavam na Imaculada Conceição ou na transubstanciação. O catolicismo pós-Vaticano II propiciou a laicização da fé católica conferindo à massa dos seus fiéis uma força de verdade quase igual àquela do pastor. O sacro e a transcendência muitas vezes desapareceram deixando espaço a uma moral pueril como regra do jogo contratual. Bento XVI que defendia um discreto retorno ao que havia contribuído para a destruição do Vaticano II, viu-se frente a frente com sua própria demissão. Sua substituição por um papa jesuíta, tão jesuíta a ponto de assumir um nome franciscano, certamente tem um sentido inegável. O catolicismo triunfa midiaticamente porque o Papa sabe usar a mídia, mas não por reunir ao seu redor discípulos de um catolicismo exausto. O volume midiático e o número de fiéis nada informam quanto à qualidade teológica das crenças. Quando o papa Francisco fala: ‘Se um grande amigo ofender a minha mãe, pode esperar um murro’, não tenho mais tanta certeza de que Roma ainda esteja em Roma.
O que pode substituir a nossa civilização?
O que se mostrar mais forte do que ela e contra o que não poderá combater. A demografia nos mostra que a França branca e católica está em via de desaparecer. Isso não me preocupa, não pretendo propor nenhuma política reacionária para impedir que isso ocorra e nem vou entrar no coro das carpideiras, cujos nomes todos conhecemos; mas apenas faço uma constatação, assim como Michel Foucault anunciava a morte do homem como um rosto de areia desvanece na beira da praia varrido pelo mar, podemos anunciar a morte do homem europeu que costumava ser prevalentemente branco e judeu-cristão. É assim, para além do bem e do mal. A demografia testemunha em favor da África, da China, da Índia e da Ásia. A resposta à sua pergunta está naqueles países.
Você é um materialista, contudo escreve que não existe civilização sem religião. Reconhece, assim, que o homem é acossado por uma inquietação espiritual. Como explica essa contradição?
O ateísmo não é majoritário em nossa civilização. Aliás, é raro. A negação de Deus, sua explicação como uma invenção humana para suportar a evidência de que estamos destinados a morrer, é defendida por poucos. Cada um tem a seu dispor uma religião que lhe permite crer em algo após a morte. Esse medo da condição de miséria do homem sem um Deus, bem analisada por Pascal quando assevera que a condição humana é similar àquela de homens acorrentados num subterrâneo cuja porta fica trancada e não deixa passar nenhuma luz a não ser quando o carrasco vem buscar o próximo a ser levado à morte, parece-me correta. A religião alimenta-se desse medo, ela quer que o real não seja verdadeiro e que a invenção seja mais verdadeira que o real: a morte que é verdadeira não existe, mas a imortalidade que não existe é verdadeira: é assim em toda religião. A civilização cristaliza-se ao redor dessa necessidade ontológica.
Ao ateísmo religioso associa o ateísmo social. Você é impiedoso com as ideologias e o progressismo: com o comunismo, mas também com o consumismo. Você não é, no fundo, um anárquico?
A palavra ‘anárquico’ tem uma conotação negativa: é o epíteto que caracterizava os bombistas do século XIX. Existe um segundo sentido, mais técnico, que remete à Proudhon, para quem o ‘anarquia positiva’ é um modo de organização contratual da sociedade. É a autogestão, o poder horizontal, a criação da liberdade com fórmulas concretas, práticas e não violentas. Essa é a minha forma de entender. O meu anarquismo social dirige-se às crenças liberais de direita e de esquerda, que estão equivocadas porque consideram o Estado jacobino como sendo a mecânica ideal, enquanto é preciso restituir o poder ao povo para que esse possa gerir por si só a sua vida municipal, local, departamental e regional e depois possa, por meio de um sistema de parlamentos regionais que designaria as pessoas de acordo com a lógica do mandato imperativo, administrar a sua vida nacional e internacional. Em março irei publicar um livro sobre esse tema: a descolonização da província. Será a minha contribuição às eleições presidenciais.
Muitos políticos e intelectuais consideram que o saudosismo já tenha assumido um aspecto patológico. Você não esconde uma série de ligações humanas, regionais, artísticas e políticas. É um saudosista?
Quando é necessário, sim: a perda daquilo que era bom e melhor do que o atual pode legitimamente despertar certo pesar. Um período de paz no passado é melhor do que um período de guerra na atualidade, um período passado de inteligência é melhor do que um período presente de estupidez, uma época de liberdade é melhor do que uma época de servidão nos nossos dias, um tempo de amor pelas letras é melhor do que o desprezo atual por elas. Mas quando o hoje é melhor do que o ontem prefiro o hoje: uma medicina mais eficaz para garantir mais saúde, técnicas digitais de fácil assimilação e uso que possibilitam o acesso à cultura, o desaparecimento de hierarquias infundadas que permite relações verdadeiramente contratuais e imanentes, a condição da mulher menos feudal do que antes de Maio de 1968 e muitas outras coisas. Quem só sabe ser conservador se engana, quem só sabe ser progressista também: é preciso preservar a excelência e desconfiar de tudo que empurra para baixo.
Você escreve que o nosso mundo está desmoronando e que esse colapso poderia arrastar tudo consigo. Por que, apesar dessa constatação tão sombria, continua a escrever e participar ativamente da vida intelectual?
Porque só nos resta a elegância. Morrer em pé, com o sorriso nos lábios, após ter pessoalmente contribuído o menos possível para o naufrágio.
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“Que a morte da nossa civilização seja com elegância”. Entrevista com Michel Onfray - Instituto Humanitas Unisinos - IHU