09 Mai 2016
Se na Europa/América do Norte, a narrativa pós-Concílio Vaticano II foi marcada pela encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, na América Latina ela foi plasmada pela enciclica Populorum Progressio e por Medellín. Eis aqui um elemento importante para entender o magistério do atual pontificado e a oposição que suscita em muitos ambientes conservardores.
O artigo é de Massimo Faggioli, professor de História do Cristianismo no Departamento de Teologia da University of St. Thomas, Estados Unidos, em artigo publicado por Commonweal, 05-05-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Ao saudar Dom Carlo Maria Viganò por sua aposentadoria do cargo de núncio apostólico para os Estados Unidos, George Weigel escreveu que “não há uma recuo honroso naquilo que alguns lastimam como ‘guerras culturais’”. Weigel obviamente estava aludindo ao que alguns consideram as posturas inadequadas do Papa Francisco a respeito de questões que geram divisão, em especial a questão da moralidade sexual.
Na verdade, o catolicismo de justiça social do papa não sinaliza um recuo para com as guerras culturais. Ele simplesmente parte da recepção do Concílio Vaticano II em grande parte do catolicismo mundial. A nossa percepção daquilo que o catolicismo é hoje é influenciada pela maneira como percebemos a sua história recente. Não é apenas uma questão de opções teológicas ou políticas que moldam a nossa compreensão de Igreja. É também uma questão de periodização, isto é, a nossa forma de enquadrar o que aconteceu e quando.
Recentemente passei uma semana em Santiago, no Chile, participando de seminários e encontros na universidade jesuíta Alberto Hurtado e na Pontifícia Universidade Católica do Chile, com colegas que estudam o Vaticano II e o período pós-Vaticano II na América Latina. O que esta experiência me confirmou é que, quando se trata do catolicismo pós-Vaticano II, existem narrativas diferentes em partes diferentes do mundo, com uma lacuna particular entre a narrativa europeia/norte-americana e a narrativa latino-americana.
Para grande parte da Europa e América do Norte, o período pós-Vaticano II é marcado por Humanae vitae (1968), que, para muitos, pareceu solidificar a forma como a Igreja via a sua relação com o mundo moderno, e que, consequentemente, desencadeou uma mudança sociopolítica, especialmente em “subnarrativas” relacionadas a questões de família e matrimônio. Nos Estados Unidos, por exemplo, um momento-chave ocorreu com a decisão no caso Roe x Wade em 1973; na Itália, foi uma série de referendos populares sobre o divórcio e o aborto nas décadas de 1970 e 1980.
Na América Latina, no entanto, as questões-chave do pós-Vaticano II foram diferentes.
Nesse período, o catolicismo foi moldado pela segunda conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano, em Medellín, Colômbia, no ano de 1968, evento ocorrido poucas semanas depois da publicação do documento Humanae Vitae, e, o que é mais importante, um ano depois desde a publicação da Populorum Progressio. Essa encíclica modelou a percepção de Paulo VI na América Latina, muito mais do que o seu ensinamento sobre a contracepção, e o fez ser o papa mais relevante para o período pós-Vaticano II na América Latina, até a eleição de Francisco.
Ela também inaugurou vários anos marcados por mudanças significativas. Em 1968, no Peru, por exemplo, Gustavo Gutiérrez começava a falar sobre a Teologia da Libertação assim como autoridades progressistas do exército lançavam um golpe a fim de implementar reformas sociais. Para o Chile, foram os anos de 1967 e 1968, quando cada diocese celebrou um sínodo, e 1973, quando Salvador Allende foi tirado do poder e se iniciou a ditadura de Pinochet.
Mas uma narrativa diferente não necessariamente significa uma narrativa mais feliz ou mais otimista. Anos após a batalha longa e sangrenta contra Pinochet, o sentimento antipolítico se fez parte do panorama cultural chileno, juntamente com a credibilidade historicamente baixa da Igreja, instituição cuja reputação esteve em seus melhores dias durante o ápice do conflito. Depois da volta da democracia no Chile, a Igreja parecia desgastada ou, pelo menos, a sua função parecia menos importante.
Uma perspectiva mais ampla a respeito do período pós-Vaticano II importa não só para os historiadores que tentam construir uma compreensão abrangente do catolicismo mundial dos últimos 50 anos. Uma perspectiva assim importa a todos os que tentam compreender o papado de Francisco.
A maneira do atual papa equacionar os seus ensinamentos sobre questões de justiça social e questões de moralidade sexual é uma maneira confusa para muitos católicos conservadores. Ela faz parte do seu contexto latino-americano, e também está remodelando radicalmente a narrativa de como a Igreja enfrenta os problemas de hoje.
Em um dos ensaios mais perspicazes publicados a respeito do Vaticano II nos últimos anos, o historiador jesuíta Stephen Schloesser escreveu que o Concílio declarou um armistício com a modernidade nas questões políticas que dominavam o período entre o século XIX e a Segunda Guerra Mundial, e que isso deixou a Igreja despreparada para a onda de questões biopolíticas que surgiram entre o final da década de 1960 e meados da década seguinte.
Isso é verdade, mas também o é ver que questões específicas de diferentes partes do mundo na era pós-Vaticano II podem nos ajudar a avaliar o último meio século com uma nuança e compreensão maiores. Sabemos que, em muitos lugares, especialmente a América Latina, questões biopolíticas são menos relevantes do que questões como a pobreza e a exclusão socioeconômica. E sabemos que, para muitos países ricos, isso é apenas uma subnarrativa idiossincrática – uma narrativa que não se encaixa tão facilmente na visão deles da história pós-Vaticano II.
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Uma “lacuna narrativa” da era pós-Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU