19 Dezembro 2016
Ninguém sabe tanto de João da Cruz e de misticismo quanto a ensaísta e poeta Luce López-Baralt, que investigou os traços do Islã no autor do livro "Cântico Espiritual". Nós conversamos com ela, agora que reedita "Asedios a lo indecible"
A entrevista é de Amalia Iglesias, publicada pela ABC, 17-11-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Ela tem ares de sacerdotisa da inteligência e, da mesma forma, uma auréola dos grandes humanistas. Sua trajetória impecável é respaldada por mais de vinte livros, indispensáveis para entender escritores como João da Cruz ou Ernesto Cardenal, apenas para citar dois exemplos; ou temáticas como a literatura aljamiada, como as "Huellas del Islam en la literatura española. De Juan Ruiz a Juan Goytisolo”, o “Erotismo en las letras hispânicas” ou “La literatura secreta de los últimos musulmanes de España”. Professora de literatura espanhola e comparativa na Universidade de Porto Rico, vice-diretora da Academia Porto-riquenha de Língua Espanhola e correspondente da Real Academia Espanhola e da Academia Dominicana da Língua Espanhola, Luce López-Baralt foi professora e pesquisadora nas principais universidades do mundo (Harvard, Yale, Brown, México, Buenos Aires, Rabat, entre outras). Entre os muitos prêmios que reconhecem o seu trabalho, destaca-se a Comenda de Isabel a Católica, por seu trabalho sobre os rastros do Islã na Espanha, o Prêmio Ibn Arabi, da Universidade de Murcia, ou o reconhecimento como escritora da UNESCO.
Ela encontra-se agora na Espanha para falar de Cervantes no quarto centenário de sua morte e para lecionar um curso na Universidade Complutense sobre "O fenômeno místico e a poesia de João da Cruz", coincidindo com a publicação das segundas edições de dois de seus livros mais queridos: o ensaio "Asedios a lo indecible. San Juan de la Cruz canta al éxtasis transformante” e seu livro de poemas místicos, “Luz sobre Luz”, ambos publicados pela editora Trotta.
Eis a enrevista.
Gostaria de partir de suas origens em San Juan de Porto Rico. Como foi a sua infância? Como nasceu o seu interesse pela literatura e por que caminhos você chegou à mística?
Nasci de dois pais profundamente espiritualizados, que guiaram os meus primeiros passos nos mistérios da religião católica. Muitos anos mais tarde, precisava conversar com eles de maneira muito profunda e sincera e pude observar o quão grande era a sua sensibilidade religiosa e o quão livre eram as suas maneiras de encarar o Mistério. Suspeito que eu já cheguei ao mundo com uma semente espiritual que germinaria e que haveria de me marcar para sempre: quando eu era uma menina, ainda na pré-escola, costumava orar às escondidas no jardim da minha casa. Simplesmente unia as minhas mãos e não pedia nada, nem fazia oração vocal nenhuma: hoje entendo que era uma maneira precoce de contemplação. Mas é muito difícil falar dessas experiências tão íntimas, pois elas pertencem a esferas sobrenaturais que apenas podemos intuir, mas não entender.
Como era o ambiente em sua casa para que as duas filhas, você e sua irmã Mercedes, definissem tão rapidamente seu gosto pela literatura?
Meus pais eram ambos advogados. Minha mãe inclusive graduou-se na presença de meu pai e, seis meses depois, casaram-se. Mas ambos sempre me pareceram mais versados em letras do que nas leis: em sua lua de mel, liam um para o outro, em voz alta, a "Divina Comédia" e "Martin Fierro". Minha irmã Mercedes e eu temos certeza de que desde muito cedo intuímos esta verdade autêntica dos nossos pais, porque desde que éramos crianças os escutávamos proclamarem versos com mais entusiasmo do que quando falavam de leis. Em uma época prévia à televisão, ainda muito meninas, costumávamos nos reunir com nossos pais para olhar as estrelas à noite e conversar sobre o que acontecia durante nossos dias. Essas noitadas geralmente costumavam terminar com os versos de Rubén Dario, de Herrera e Reissig, de Lorca, de Martí, de Palés Matos, e de tantos outros poetas que foram sendo absorvidos por nossas almas para sempre.
Em Harvard, conheceu seu companheiro, o também escritor e crítico, Arturo Echavarría, com o qual está casada há mais de quarenta anos. A felicidade consiste em fazer com que o amor humano e o divino coincidam?
A felicidade no amor é um privilégio destacado da vida, privilégio incomparável, que precisa ser trabalhado e negociado dia a dia. Compartilhar todos os dias com o meu admirável e amado companheiro nossos projetos de vida e nossas obras em andamento é uma alegria sem fim. E temos sabido honrá-la: todas as noites antes de jantar, temos um encontro romântico em um canto da sala. Acendo velas, tomamos um vinho branco e experimentamos o milagre vivo do amor compartilhado. Confesso que me emociono quando imagino o fechamento belíssimo de nosso dia. É um momento que nos aproxima de um milagre, e é de amor tanto humano quanto divino. Curiosamente, o meu velho amigo Jorge Guillén foi o nosso grande aliado, o nosso "casamenteiro": no nosso casamento, em Cambridge, onde vivíamos, ele recitou embaixo de uma macieira florida o seu poema decassílabo "Las doce en el reloj", constituído pela celebração de um instante em seu auge. Por muitos anos o Sr. Jorge e eu conversamos com cumplicidade sobre o amor humano realizado. Ambos tivemos a sorte de sermos imensamente felizes no amor. Guardo a carta onde me dizia, "Luce, às vezes, o mundo está bem feito."
Com sua brilhante trajetória poderia ter escolhido seguir sua carreira profissional nas universidades de maior prestígio nos Estados Unidos, na Europa ou em qualquer outro país do Oriente. No entanto, decidiu voltar para Puerto Rico. Por quê?
Por algo muito simples: na minha pátria sempre fui muito feliz. Eu a amo muito sinceramente, e é o lugar onde sou mais feliz no mundo, ainda que viaje constantemente. Mas há outra razão: tanto o meu marido quanto eu, e inclusive minha irmã Mercedes, regressamos para servir o nosso país depois das ofertas de docência em universidades do mais alto prestígio. Sentimos que aqui no nosso país fazemos a diferença. Porto Rico é um país sem embaixadas, sem personalidade jurídica entre as nações do mundo, necessitando de representação e embaixadores que criem certa visibilidade. No exterior, não é a mesma coisa estar representando uma universidade de Porto Rico e representar uma universidade norte-americana. Mas nosso país precisa mais de nós do que Yale, Brown ou Cornell. Meus alunos também precisam de mim, pois aqui pude formar duas escolas de pesquisa internacionalmente reconhecidas: uma de estudos Aljamiados-Mouriscos e outra de mística comparativa. Jamais nos arrependemos de havermos nos repatriado para servir.
Em 1974, doutorou-se em Harvard com uma tese sobre "João da Cruz e a concepção semítica da linguagem poética". Depois, dedicou muitos livros para tentar compreender e aproximar-nos do poeta "mais misterioso e mais claro de nossa língua". O que significou em sua vida a descoberta do poeta?
Li-o pela primeira vez sozinha, enquanto estudava na Universidade Complutense de Madrid, e fiquei perplexa frente àquela poesia que tinha muito pouca semelhança com a lírica renascentista europeia. O meu deslumbramento foi tão grande que quando cheguei a Harvard decidi fazer uma tese explorando as motivações dos mistérios do poeta, que tanto terror haviam semeado em Menéndez Pelayo e em Dámaso Alonso, por serem os mais misteriosos da literatura espanhola. Ao longo dos anos calibraria mais de perto esse aroma oriental que permeia e faz com que sejam únicos os poemas místicos do santo.
Já conseguiu aclarar a essência do seu mistério? Você acha que João teria poderia sequer ter imaginado que alguém como você tentaria desvendar o mistério de seus poemas, com tanta dedicação e devoção? Você acha que Juan de Yepes Álvarez teria gostado que você esmiuçasse com tanta meticulosidade seus "segredos" literários?
Creio que encontrei uma das chaves fundamentais de São João, seu mudejarismo literário, que Miguel Asín já havia começado a suspeitar. Resolvi alguns de seus mistérios, como, por exemplo, sua simbologia mística, tão endividada com o sufismo, e sua linguagem alucinada, em débito com os mistérios do "Cântico dos Cânticos hebraico". São João teve muitos estudiosos de devoção e excelência reconhecida, mas não sei o que ele pensaria ao saber que um dia, quatro séculos depois de sua morte, haveria alguém nas "ilhas estranhas" - as Antilhas recém-descobertas - que exploraria a sua obra com tanta devoção. Acredito que nós teríamos sido muito cúmplices, eu e o poeta: ele dedicou seus melhores poemas às mulheres Ana de Jesus e Ana de Peñalosa. Suspeito que escrever a sua obra para elas deu-lhe grande liberdade artística, alheia ao fechado mundo "intelectual" da época. Meu querido amigo Pepe Hierro, espantado com o meu amor inveterado pelos versos do santo, dizia que São João era "meu namorado". Pepe tinha razão. Tenho escrito muitos livros sobre o poeta e já finalizei o próximo. Sempre me emociona estar frente a um poeta inesgotável e um amor literário duradouro.
Façamos um pequeno exercício de literatura de ficção. Se você pudesse se encontrar com João da Cruz e compartilhar um momento, o que você gostaria de conversar com ele? E onde gostaria que essa conversa acontecesse?
Sem dúvida, falaria imediatamente sobre a experiência mística abissal que compartilhamos, para aprender com a sua sabedoria. Conversaria com meu poeta em minhas "ilhas estranhas" ou em sua cela em Úbeda, onde passei um 14 de dezembro, data da sua morte, recitando-lhe os versos de "Cantar" que o santo pediu que lessem para ele em sua morte. Ele queria poder escutá-los apenas uma vez mais...
Gostaria de fazer-lhe a mesma pergunta que você fez ao seu amigo Ernesto Cardenal no dia em que o conheceu em Rio Piedras, em 1974: a experiência mística é a intuição?
Eu fiz essa pergunta a Ernesto há muitos anos atrás: hoje responderia como ele, categoricamente, que não é uma intuição, mas uma experiência direta, sem intermediários, do Único, do Deus vivo, do amor total. Trata-se de uma experiência de fruição, não intuitiva. Evelyn Underhill diferenciou bem os diferentes graus de conhecimento: "o científico interroga e o artista intui, mas o místico experimenta".
Em Ernesto Cardenal você encontrou a encarnação contemporânea do místico. Sobre ele, publicou "El cántico místico de Ernesto Cardenal" (2012). Como é um místico no nosso tempo?
Os místicos se moderam a seu tempo, e Cardenal vive em um país atormentado, a Nicarágua, muito necessitado de redenção social. Assim, depois de alguns anos de experiência contemplativa em Trappe, com Thomas Merton, entendeu que o seu serviço ao próximo também deveria admitir um esforço revolucionário. Hoje, após o fracasso - e a traição - da utopia sandinista que derrubou a ditadura de Somoza, Ernesto voltou à sua grande vocação, que é a literatura. A partir deste ponto, serve muito bem ao próximo, sempre digo isso a ele. Seus livros parecem ser um melhor instrumento do que as armas, para resgatar almas.
Sua aproximação do misticismo e sua defesa do sobrenatural parecem ter, como em Cardenal, um forte componente de compromisso social, de situar-se em locais onde estão os mais fracos. Utilizemos como exemplo a recuperação que você fez da voz dos mouros expulsos da Espanha... É compatível a espiritualidade com o compromisso social?
Um verdadeiro místico é sempre movido pela compaixão com os demais. É algo automático, é um resultado direto que nasce da experiência mística. A pessoa fica incandescente de amor de tal forma que ama e abraça todos os seres: quando se conhece o Amor Absoluto, este segue reverberando para sempre na psique do místico, e sempre disponibiliza-o para o serviço ao próximo. "Por suas obras conhecê-los-ei", dizia Santa Teresa, e repetia William James. É a nossa forma pragmática e eficaz de diferenciar o místico autêntico do desequilibrado emocional que tem visões e do viciado em drogas que as procura em narcóticos artificiais. Cada místico, por outro lado, expressa esse amor aos outros de maneiras diferentes. Às vezes, ele o faz de maneira dramática: tenta resgatar um país ou impedir a injustiça social (como fizeram São Francisco de Assis, Santa Teresa, Santa Catarina de Siena, Ernesto Cardenal e até mesmo Thomas Merton). Outras vezes, funda ou reforma uma ordem religiosa (como por exemplo, São Bento e os Reformadores do Carmelo). Outras vezes, no entanto, como diz o provérbio oriental, o místico assume que "após a iluminação, temos de seguir esfregando os pratos". Ou seja, continuar a servir a partir do nicho no qual a vocação chegou para cada um. Penso que o ensino pode ser um ato sacramental, apoiar a uma pessoa em depressão, em um momento vulnerável, trabalhar pela reconciliação da incompreensão humana. Como dizia Teilhard de Chardin, a santificação pessoal consiste em explorar os próprios dons, a sua própria vocação. A partir disso, exercer a sua própria vocação sempre implica em uma felicidade profunda. O místico nem sempre precisa tornar-se um "herói" notório, mas servir a partir do seu espaço de vida.
A mística, como "estado de consciência alterada", pode ser considerada uma experiência precoce de realidade virtual?
Não acredito que uma coisa tenha a ver com a outra, pois são diferentes estados de consciência.
Hoje, ainda faz sentido falar de alma. Qual é o papel da espiritualidade no mundo atual?
O Mistério do ser humano é inesgotável e está sempre em vigor em qualquer período. Como em todas as épocas, a espiritualidade entendida com profundidade e liberdade nos aproxima de outras pessoas. A experiência mística é a chave para o diálogo inter-religioso e para respeitar a alteridade cultural do próximo. Apesar da astrofísica, da física quântica, da neurociência, da psicanálise e do pensamento teológico e filosófico, a alma mantém o seu mistério essencial.
Está sendo publicada a segunda edição de "Asedios a lo indecible". Houve alguma mudança em relação à primeira?
Nenhuma mudança essencial: a editora Trotta pediu-me com certa urgência, mas acredito que ainda siga vigente o que eu disse naquele momento. Isso é fato: a partir de "Asedios", segui buscando novos segredos do poeta. Minha obra acerca de São João está sempre em andamento.
Você confessa que este é o seu estudo literário mais amado, porque combina tanto a sua "reflexão prolongada sobre a experiência mística, quanto a sua adesão a São João e o seu 'dizer, não dizendo'". O que diria a um jovem leitor para convencê-lo de que a leitura deste livro pode ser gratificante e inclusive mudar a sua vida?
Se você tem sensibilidade literária, quando ler este livro me acompanhará decifrando com alegria alguns dos mistérios do poeta e intuindo os meandros de sua genialidade. Se você tiver uma sensibilidade espiritual, se deslumbrará com a complexidade e a profundidade das lições místicas de São João. Amo muito este livro porque para mim constitui um diálogo íntimo com João da Cruz. Precisei de muitos anos, muitas leituras e especialmente muita experiência para chegar a esse diálogo.
Talvez o argumento mais forte de "Asedios de lo indecible" seja precisamente o de que existe uma experiência para além da razão, que é impossível de expressar em linguagem humana. Como se pode dizer o indizível?
A experiência mística autêntica é literalmente indizível porque se experimenta para além dos sentidos, da razão e da linguagem. A arte se limita a evocar a vivência sobrenatural, mas jamais a define ou a explicita. Ela sugere que ler os místicos nos permite suspeitar que ocorreu algo misterioso que de alguma forma todos compartilham e que há um espaço desconhecido em que todos deixaram rastros, independentemente de suas diferentes culturas ou épocas. "They ring true", como dizem em inglês: os místicos nos convencem, mesmo que não possam "demonstrar" cientificamente a sua experiência, nem sequer realmente comunicá-la.
Outro "assédio" forte do livro é que esse mistério espiritual que nos excede está dentro de nós mesmos...
Isso todo o místico sabe: Deus está dentro de nós mesmos e somos desviados quando o procuramos fora, pois "no interior da alma habita a verdade", como dizia Santo Agostinho e reiterava a lenda persa Simurgh. O Simurgh era o "Pássaro-Rei", e as aves do mundo estavam ansiosas para conhecê-lo. Então, elas voam buscando-o por terras hostis em um voo cansativo de milhares de anos, até que finalmente chegam ao umbral do palácio Simurgh. Apenas 40 pássaros sobrevivem à viagem. Naquele exato momento em que vão ver o seu Rei, descobrem que eles mesmos eram o Simurgh que tanto estavam procurando. Em persa "Si-murgh" significa "Rei-Pássaro" e "40 pássaros". A lição do mistério de "Unus/ambo" a que ser referem os teólogos é muito bonita e contundentemente real, como descobre, surpreso, o místico.
No livro insinua-se que é necessário ser "um dos nossos" para entender a poesia mística e especificamente a poesia de São João, pois ele mesmo reclama "uma camaradagem emocional" de alguns poucos. Você já deve se considerar uma dentre esses "poucos" escolhidos...
É São João quem diz que "isto não será compreendido por quem não o tenha experimentado". Mas não há de considerar a experiência mística como uma vivência para "escolhidos". Deus a dá a quem quiser, não necessariamente por méritos próprios. É um dom gratuito, infundido - advertiu William James- e aqueles que não são santos podem tê-lo, ainda que mude a vida para sempre. Cardenal explicou-me que, por vezes, Deus dá a experiência para os mais fracos, que são os que mais necessitam. Lembro-me de seus versos instrutivos neste sentido, quando você sente que Deus lhe diz: "Não te escolhi por ser santo /nem ter por ter madeira de santo/ Santos já tivemos muitos/ Te escolhi para variar...'.
E a poesia é a única linguagem capaz de expressar essa "experiência abissal"?
Por sua ambiguidade essencial, a poesia - assim como a música, que por si só não possui conceito - é alheia à linguagem analítica da prosa. É um grande instrumento para sugerir um lampejo de experiência mística. Sim, é importante notar que um poema místico não explica como foi esse encontro com o Todo, mas simplesmente que esse encontro abissal inimaginável detonou o poema. E algo sim permanece do aroma da experiência.
Foi isso que a levou a escrever e publicar seu livro de poemas "Luz sobre luz"?
Os poemas me foram impostos: nunca pensei que celebraria esta experiência em verso. Tive que dar lugar aos versos. Alguns eu escrevi quase como se me tivessem sido ditados. Não podia recusar-me a colocá-los no papel, por escrito. Como disse José Ángel Valente: "o místico está dividido entre a impossibilidade de dizer e a impossibilidade de não dizer". Frente a vivências assim devemos cantar. Mas é algo muito íntimo e admito que me deu muito trabalho decidir publicar os versos. Levei sete anos para decidir. Desnudar a alma é muito difícil. Mas é necessário compartilhar a experiência, que fervilha para sair e alcançar outras almas. Compartilhar de alguma forma o que foi vivido pode dar esperança aos outros de que há Algo além de nós. E isso por si só já é um consolo infinito.
Ligando com a questão levantada antes, quanto de intuição tem a experiência poética? Um poeta precisa de conhecimentos ou intuições? Você teria escrito este livro de poemas se não tivesse previamente esse profundo conhecimento teórico da mística?
Há muitos místicos que, ao não serem nem letrados nem poetas, têm a experiência e não podem contá-la (ou cantá-la) dessa forma. Certamente os meus conhecimentos de mística comparativa ajudaram a moldar o meu próprio canto, mas não criaram-no ou fizeram-no nascer. Algo maior o deflagrou: uma experiência vivida.
Como foi a recepção do seu livro de poemas entre os seus colegas, os estudiosos do mundo acadêmico entre os quais seus livros teóricos têm tanto prestígio? Seguindo a teoria de que a linguagem poética diz mais sobre o indizível do que qualquer teoria, a partir de agora você se encorajará a continuar percorrendo o caminho da criação? Nos presenteará em breve com um novo livro de poemas?
Curiosamente, muitos colegas esperavam que algum dia eu escrevesse poesia e falasse de minhas próprias experiências. Para minha surpresa, o livro foi lido muito, com grande respeito e agora estará na sua segunda reedição. Inclusive o compositor José María Sánchez-Verdú compôs uma música em coral para alguns dos poemas. Uma outra colega, entusiasmada, está traduzindo-os para o inglês. Um autor nunca pode antecipar como o seu livro será lido, mas posso assegurar-lhe que é o livro mais honesto da minha vida e, possivelmente, essa verdade seja notada, seja comunicada de forma eficaz. Não sei se escreverei outro: a poesia nunca depende da decisão consciente do poeta.
Parece haver uma quantidade ínfima de leitores de poesia em nosso. O que estão perdendo esses não-leitores? Que razões você daria a um leitor para que se aproxime de sua poesia e da palavra poética em geral?
Não creio que estejamos em uma época alheia à poesia: conheço muitos poetas jovens e muitos entusiastas da poesia que me convencem do contrário. É um gênero que sempre pareceu avassalador, isso sim, inclusive assustador: prosadores como Mario Vargas Llosa admitiram que teriam preferido ser poetas porque a poesia traduz melhor certas experiências recônditas da psique humana do que a prosa. Todos nós sentimos um respeito instintivo pela poesia. Os beduínos árabes, "aristocrats of feeling", consideravam a poesia uma "magia lícita" ou "sihr al-halal", contrária ao feitiço obscuro da magia proibida ou "sihr al-haram". Para esses beduínos não havia diferença entre recitar um poema e lançar um feitiço, porque se sentiam possuídos pelo "yinn" ou "duende", de que tanto tomou conhecimento Federico Garcia Lorca, de Granada. Saborear estes mistérios, eternos aos seres humanos, é uma experiência que todo leitor deve aspirar. E eu os encorajo a fazê-lo.
Uma de suas vias de pesquisa mais poderosas tem sido a vinculação entre João da Cruz e o Islã com os grandes místicos orientais. Também tem estudado os rastros do Islã na literatura espanhola posterior. Isto chegou a gerar algum problema com aqueles que preferem olhar para outro lado e não considerar esses rastros?
Claro que me gerou problemas, mais do que um, mas prefiro não falar deles aqui. Isso também foi experimentado por grandes pensadores como Américo Castro e Miguel Asín. Vejo essas tensões culturais e ideológicas muito naturalmente, como estudiosa da cultura espanhola que sou. A história da Espanha aponta para uma miscigenação muito precoce e muito rica. Notamos que é um país diferente do resto da Europa apenas considerando que a Espanha já foi chamada de Hispania, Sefarad e Al-Andalus simultaneamente e que teve três línguas, três religiões e três castas interagindo durante a Idade Média. Esta vivência identitária plural, tão rica, incomoda a muitos, mas eu acho que a Espanha é, justamente pelo seu rico diálogo intercultural, o país mais fascinante da Europa. Vai demorar séculos para que assumamos, pois a noção de que a Espanha é "diferente" é uma ideia que ainda incomoda a muitos. Para mim não há descrédito em descobrir que São João deve muito à simbologia mística sufista, que Juan Ruiz rimava em um dialeto árabe impecável e os castelos teresianos têm claros antecedentes islâmicos desde o século IX. Quero pensar que toda a minha obra de estudiosa é um ato de amor e uma homenagem à Espanha.
Você sempre defendeu esse tronco comum de espiritualidade cristã e muçulmana e provou através de múltiplas evidências nos textos. Você fala que São João teria estudado e conhecido a língua semítica em Salamanca, em sua juventude, e evoca-o como se ele se portasse como um mouro, sentado no chão... Os espanhóis têm uma dívida com a cultura islâmica ainda não suficientemente reconhecida nem valorizada?
Se nem mesmo o ilustre Miguel Asín conseguiu convencer a Espanha da profundidade dessa dívida, quer dizer que a ferida histórica de tomar consciência do diálogo com as culturas semitas é muito profunda e necessita de mais tempo para 'curar-se'. Repito que demoraremos para assimilar toda essa riqueza histórica sem espanto. Que o famoso "olé" venha originalmente de uma exclamação entusiasmada em árabe -"por Deus!"- não é "prejudicial" ou "sinal de desprestígio" para a cultura espanhola. Para mim, que a vejo com distância por causa da minha condição hispano-americana, mas também com cumplicidade hispânica, parece maravilhoso.
Para você que conhece como poucos a alma da cultura muçulmana, cristã e de outras religiões através de seus textos fundamentais, o que você acha da utilização que está sendo feita dos textos sagrados a partir do fundamentalismo, sejam de uma ou de outra religião?
O fundamentalismo é sempre abominável, porque viola a consciência do próximo, e todas as grandes religiões, infelizmente, caíram no fundamentalismo em diferentes momentos de sua história.
É aconselhável ler os poemas de João da Cruz em uma sintonia de amor divino ou amor humano? Ou são válidas e compatíveis ambas as leituras?
Para mim são completamente válidas as leituras simultâneas, se não, perdemos a metade da arte de São João. Recordemos que o poeta se inspira em um poema nupcial, "Cântico dos Cânticos", que entendeu como um poema de reconciliação. Os dois registros de amor - o humano e o divino - cantam em uníssono na poesia de São João. "O corpo é alma/e tudo é boda", como cantou meu choroso amigo Jorge Guillén. Essa harmonização se desprende naturalmente dos versos do santo, que considero o poeta mais feliz da literatura espanhola, a começar pelo fato de que ele foi em vida um místico muito sincero.
A sensualidade e o erotismo da poesia de São João ainda são um ponto de referência para os apaixonados de hoje em dia?
Claro que sim! Por que não seriam? Se frente a um ser amado de carne e osso podemos exclamar, exultantes: "Meu amado, as montanhas!" é que o amamos realmente. A linguagem do amor humano e divino se conjuga e se interpenetra: um amigo padre me disse certa vez que, caso Pedro Salinas tivesse colocado em maiúsculas o "tu" de "A voz a ti devida", haveria escrito um poema místico. Amém.
O erotismo é outro tema de interesse em suas pesquisas. A relação entre amor, sexo e o divino será o germe de seu livro "Un 'Kamasutra' español". Ainda existe essa relação hoje?
Para mim, sempre existiu essa relação harmoniosa entre todos os registros de amor. Os orientais parecem ter entendido melhor do que os ocidentais a simultaneidade de todos esses registros: o amor divino, o amor humano e a união sexual. O instinto de amor -de todo o amor- sempre aspira à união, à converter-se no ser amado. Por isso Calisto afirmava "Sou melibeo". No amor corpóreo a transformação em apenas um ser é impossível -Lucrécio já afirmava. Mas de toda a forma, há o desejo de dita união total.
Desde que Santo Agostinho associou sexo com a cicatriz do pecado original aos cristãos ocidentais é mais difícil que assumamos esse processo de reconciliação alegre. Todas as expressões de amor são em princípio sagradas, e todas podem nos conduzir a Deus, como proposto com tanta reverência o antigo tratado mourisco do século XVII. Nada está mais longe da pornografia do que este tratado nupcial que busca a harmonização do ser.
Na apresentação de "Luz sobre Luz" Clara Janés lembrou aquela frase de André Malraux: "O século XXI será espiritual ou não será". Em que ponto da frase crê que estamos, na espiritualidade ou no não ser?
Essa ideia reitera Karl Rahner com entusiasmo. Significa que devemos olhar para o que nos une, o núcleo de toda a espiritualidade, que sempre é mais experimental do que dogmática. É possível compartilhar esta grande verdade, apesar das diferenças culturais. Infelizmente, estamos de novo em meio de uma guerra de religião com tons medievais - Islã x Ocidente - e por isso mesmo é oportuno recordar o que nos une profundamente, não o que nos separa.
Em 2003 você foi nomeada Humanista do Ano pela Fundação Porto-riquenha de Humanidades. Qual é o papel de um humanista hoje nesta "era do Antropoceno", onde a devastação humana e do humano parece marcar o sinal dos tempos? Existe motivos reais para tal alarme?
A frase é do Prêmio Nobel de Química, Paul Krutzen, quando se refere ao impacto destrutivo do ser humano contemporâneo sobre a natureza. Qualquer um pode advertir sobre as alterações climáticas e creio sinceramente que urge proteger o planeta. Já teríamos carros elétricos e energia solar se não fosse por interesses econômicos egoístas. No entanto, penso também nas devastações naturais - degelo, a destruição dos dinossauros, a separação dos continentes - que nos precederam. O planeta parece ter um dinamismo próprio que precisa ser respeitado e compreendido.
Depois de haver dedicado tantos livros e textos para analisar e divulgar a experiência do sagrado, você acha que o sagrado nos torna mais humanos? O que pode oferecer o sagrado, nestes tempos conturbados? Qual é o papel da espiritualidade, da religião, em tempos de ceticismo e apatia como o nosso?
Todos as épocas são consideradas "apáticas", "atribuladas" e "descrentes". E hoje, assim como no passado, a experiência do sagrado nos centra, permite-nos respeitar os outros e nos conforta. A neurociência começa a suspeitar que podemos estar mentalmente "wired for God" - literalmente, "conectados a Deus" -, porque crer na transcendência parece fazer-nos mais felizes e mais fortes diante das vicissitudes da vida. E tudo isso, afirmam, convém para a evolução da humanidade.
Nesta atmosfera de aceleração onde ninguém parece escutar, parece que vivemos como pessoas narcotizadas pela mediocridade de um "reality show". Você não tem às vezes a sensação de estar "pregando no deserto"?
Sempre tenho uma grande esperança nas possibilidades do ser humano e em seus aspectos luminosos, pois no fundo nunca "pregamos no deserto". Há muita sede para escutar e sentir esperança. Diante das atrocidades do mundo atual, penso na geração de meus pais, que viveram a Segunda Guerra Mundial, e em meus avós, que viveram a Primeira. Então vejo que não houve mais sofrimento e ódio prévios à minha própria geração, que não conheceu conflitos mundiais. O que importa é aprender com a experiência. Não ser condenados a repetir a história.
Durante estes dias em Madrid, você vai apresentar novas edições de seus livros, e também falará de Cervantes, no quarto centenário de sua morte. Existe alguma coisa que ainda não conheçamos sobre "Don Quixote" e seu autor? Quantos tópicos falsos estão por desfazer do que foi escrito ou dito sobre ele e seu livro universal?
Há sempre mais para conhecer de um gênio literário, cujo trabalho segue sendo reinterpretado e reescrito por novas gerações. Isso é o que faz dele um "clássico", o fato de que ainda diga algo para todos. "Dom Quixote" é inesgotável, e diante de suas páginas, assim como diante das páginas de São João, sinto vertigem ao espiar um abismo sem fim. Penso que ainda temos de explorar, sem limitações, o impacto da cultura islâmica em Cervantes. Ele derrotou os turcos em Lepanto, foi prisioneiro de resgate em Argel por cinco anos, a expulsão dos mouros ocorreu entre os dois "Quixotes", ou seja, foram muitos contatos vitais e históricos com o "inimigo". Acabo de escrever sobre algo que ainda me surpreende: em Argel soube que o sobrenome que Cervantes estranhamente anexa depois de seu cativeiro, Saavedra, além de sua estirpe galega, tem uma contrapartida árabe. "Shaibedraa", que em árabe dialetal magrebino é pronunciado quase como em espanhol, é um sobrenome comum na Argélia desde muitos séculos. Além disso, significa "braço aleijado ou machucado", de maneira que Cervantes poderia ser chamado de "shaibedraa", ou seja, "maneta". Tenho pesquisado e escrito extensivamente sobre o caso, que nos permite enxergar o diálogo intercultural do pai do romance espanhol com o Islã, um diálogo que inclusive assumiu de maneira identitária.
Indo contra a corrente do que se via sendo difundido nos estudos literários sobre Cervantes, você defendeu uma ideia polêmica: aquela na linha de Américo Castro segundo qual Cervantes não apenas simpatizava com os romances de cavalaria, mas que sentia por eles "uma veneração inconfessa", ou aquela de Borges em defesa da "magia encriptada de 'Dom Quixote' " quando afirma "Cervantes, intimamente, amava o sobrenatural".
A maravilha dos grandes escritores é que eles não têm conhecimento do alcance de suas próprias obras, nem mesmo de suas próprias contradições. Estas sempre são fecundas, e quando escrevo sobre autores vivos - Goytisolo, José Hierro, Vargas Llosa - me comove constatar que as coisas que eu descobri em suas obras os assombram. Não eram conscientes de muitas de suas pulsões reiteradas, o que Mario chama de seus "demônios", "nunca curados e por essa mesma razão ressuscitados em cada obra”. Bem que advertiu Walt Whitman em seu vibrante "Song of Myself: Do I contradict myself? Very well, then, I contradict myself. I am large, I contain multitudes”. Toda grande obra de arte contém paradoxos férteis, por isso não se admira que Cervantes amasse secretamente a magia literária das novelas de cavalaria que tanto leu. Ninguém lê com tal furor o que lhe aborrece ou o que não lhe apaixona.
Para ir terminando, você recorda o que estava no dia/noite que o homem chegou à Lua?
Sim, vi o evento histórico com os meus pais e minha mãe lavrou ata do acontecido em sua Bíblia. Foi muito emocionante.
Se pudesse escolher, em qual época você teria gostado de viver e por quê?
Na minha época e no meu país, porque fui muito feliz. Agora, bem, vibro especialmente com a Idade Média europeia e com o antigo mundo árabe (a Bagdá do século IX, Al-Andalus). Que conste que essas afinidades não me cegam: em todas as épocas e países há muita beleza e muita dor. Como dizia Borges, todos os seres humanos pensam que têm de viver um momento histórico terrível. Talvez nós acreditamos que o nosso tempo é especialmente angustiante, mas não há nada de novo sob o sol...
O que você gostaria de fazer no futuro que não tenha podido fazer ainda?
Tenho vivido muito intensamente, muito plenamente. Consegui fazer o que tem estado ao meu alcance e ainda mais. O resto não está em minhas mãos. Estou em paz com a minha vida, porque pude explorar a mim mesma. Há, sim, dois livros especiais que sinto que deveria escrever antes de morrer. Sei que é minha obrigação espiritual. Todo o resto é por acréscimo. Acréscimo, isso sim, com muita alegria.
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"Diante de 'Quixote' e João Cruz, sinto a vertigem de estar contemplando a um abismo sem fim", afirma pesquisadora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU