23 Novembro 2016
O filósofo Rocco Buttiglione, profundo conhecedor do magistério de São João Paulo II, propõe uma resposta pessoal às “dubia” dos quatro cardeais sobre a interpretação do documento pós-sinodal de Francisco em relação aos sacramentos para os divorciados recasados.
O artigo é de Rocco Buttiglione e publicado por Vatican Insider, 22-11-2016. A tradução é de André Langer.
A discussão sobre a Amoris Laetitia continua e se enriquece agora com a contribuição de quatro eminentes cardeais: Walter Brandmüller, Raymond L. Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner, que juntos propõem cinco questões de grande importância.
Eles enviaram uma carta ao Santo Padre, que não considerou oportuno responder-lhes (creio que com razão), e interpretaram o silêncio do Papa como “um convite para continuar a reflexão e a discussão, tranquila e respeitosa”. Justamente por esta razão e com este mesmo espírito, me atrevo, como pobre leigo, a contribuir na reflexão e na discussão. Acrescento a esta reflexão a experiência de um esposo e pai de família que leu Santo Tomás e que frequenta assiduamente o confessionário, obviamente na qualidade de penitente.
A primeira questão que os eminentes cardeais propõem é se é lícito, em alguns casos, dar a absolvição a pessoas que, apesar de estarem vinculadas por um matrimônio anterior, convivem “more uxorio” e têm relações sexuais entre si. Parece-me que, à luz da Amoris Laetitia, mas também dos princípios gerais da teologia moral, a resposta deveria ser positiva. Devemos distinguir claramente entre o ato, que é matéria grave de pecado, e o agente, que pode encontrar-se em condições que limitem sua responsabilidade pelo ato ou, em alguns casos particulares, possam inclusive anulá-la. Imaginemos o caso de uma mulher que viva em condições de absoluta dependência econômica e psicológica submetida a relações sexuais contra a sua vontade. Infelizmente, não é um caso de escola, mas uma amarga realidade que acontece com maior frequência do que se pensa. Faltam, aqui, as condições subjetivas do pecado (plena advertência e deliberado consenso). O ato segue sendo mau, mas não pertence (ou não completamente) à pessoa. No direito penal se diria que aqui não nos encontramos no âmbito da teoria do delito (se o ato é bom ou mau), mas da teoria da imputabilidade e das atenuantes subjetivas.
Isto não implica que pessoas não casadas possam legitimamente consumar atos sexuais. Os atos são ilegítimos. As pessoas (em alguns casos) podem incorrer em um pecado não mortal, mas venial pela falta da plena advertência e do consenso deliberado. Mas, se poderia objetar: para receber a absolvição não é necessário o propósito de não pecar mais? Claro que é necessário. O penitente deve ter o desejo de sair da sua situação irregular e comprometer-se a cumprir atos que lhe permitam sair dela efetivamente. Mas é possível que não seja capaz de realizar este distanciamento e voltar a conquistar a própria soberania sobre si mesmo imediatamente. Aqui é importante o conceito de “situação de pecado” ilustrado por João Paulo II. Não se pode prometer de maneira confiável que já não se cometerá certo pecado se se vive em uma situação que expõe à irresistível tentação de cometê-lo. Seria preciso comprometer-se, para manter o próprio propósito, a sair da situação de pecado.
A segunda dúvida é se segue sendo válido o ensinamento de João Paulo II apresentado na Veritatis Splendor, no. 79, sobre a existência de atos intrinsecamente maus que nunca e em nenhum caso podem ser bons. Claro que sim, pelas razões acima citadas. A Amoris Laetitia não muda em nada a avaliação do ato, mas se concentra na avaliação dos níveis de responsabilidade subjetiva. No direito penal, o homicídio sempre é proibido, mas a pena pode variar, e muito, de acordo com o nível da responsabilidade subjetiva.
A terceira dúvida é se se pode afirmar que as pessoas que convivem “more uxorio” encontram-se em uma condição de pecado grave habitual. Parece-me que se pode dizer que sim, sempre e quando se distinguir bem entre o pecado grave e o pecado mortal, como, de fato, fazem corretamente os cardeais. O pecado grave é especificado pelo objeto (pela matéria grave). O pecado mortal é especificado pelo efeito sobre o sujeito (mata a alma). Todos os pecados mortais também são pecados graves, mas nem todos os pecados graves são mortais. Pode acontecer que, efetivamente, em alguns casos a matéria não venha acompanhada pela plena consciência e pelo consenso deliberado subjetivo. O cânon 915 exclui dos sacramentos aqueles que vivam abertamente em condições de pecado grave independentemente do fato (reconhecido como possível) de que não estejam em condição de pecado mortal. A razão é, obviamente, o escândalo público.
É evidente que o cânon em questão não expressa um preceito nem o direito natural nem divino. É uma lei eclesiástica humana imposta pela autoridade legítima (o Papa) que pode ser mudada pela mesma legítima autoridade. Se o Papa não a mudou, provavelmente se deve ao caráter de excepcionalidade dos casos em que está pensando. Isso não anula a possibilidade de que no futuro possa ser oportuna uma maior precisão legislativa. Mas é difícil unificar a noção de escândalo em um mundo tão variado como o nosso. Talvez fosse oportuno deixar neste campo uma ampla margem de decisão às Conferências Episcopais ou (muito melhor) a sínodos nacionais ou continentais.
A quarta dúvida relaciona-se com a validez do ensinamento de João Paulo II no n. 81 da Veritas Splendor, onde se diz que as “circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato intrinsecamente desonesto por seu objeto, em um ato subjetivamente honesto ou defensável como opção”. Claro que sim, este ensinamento segue sendo plenamente válido. A convivência “more uxorio”, quaisquer que sejam as circunstâncias e as intenções, sempre é errada e contradiz o plano de Deus. É uma ferida grave para o bem moral da pessoa. É uma ferida mortal sempre? Não, nem sempre esta ferida grave é uma ferida mortal. As circunstâncias não mudam a natureza do ato, mas podem mudar o juízo sobre a responsabilidade da pessoa.
A Amoris Laetitia nos recorda uma doutrina completamente tradicional, que João Paulo II nunca pretendeu negar: há dois graus no mal e alguns pecados são mais graves que outros. O pecador sempre deve reconhecer o próprio mal e expressar a vontade de emendar-se. Mas, o sacramento não é necessariamente um prêmio que deve ser reservado para o final do caminho. Também poder ser, segundo as condições que recordamos, um remédio que dá forças para o caminho.
Os eminentes cardeais se perguntam na quinta dúvida se ainda é válido o ensinamento da Veritatis Splendor, n. 56, onde diz que a consciência não tem um papel de criação e não pode legitimar exceções às normas morais absolutas. Também neste caso me parece que a resposta é sim. A consciência moral reconhece a verdade, mas não a cria, não pode estabelecer uma norma diferente, no todo ou em parte, da norma da lei natural. A Amoris Laetitia não afirma nenhuma exceção à norma. O adultério sempre é um mal e o penitente sempre deve reconhecer a própria culpa e colocar-se a caminho para inserir-se novamente na regra. Simplesmente pode não ser completamente culpado por sua falta de capacidade de cumprir plenamente o que a justiça demanda e por estas razões pode encontrar-se em uma situação de pecado, mas não de pecado mortal. O sacramento dado a quem se encontra em uma condição de pecado grave, mas não mortal, não é um convite para ficar satisfeito consigo mesmo no caminho para o bem moral, mas um apoio para perseverar no caminho.
Se Zaqueu não tivesse estado em condições de devolver o quádruplo do que havia roubado, porque tinha dissipado esses bens ou porque não tinha suficiente generosidade no coração para fazê-lo, mas tivesse devolvido apenas a metade, teria feito a vontade de Deus? Sim, no que diz respeito à metade da sua obrigação, não em relação à outra metade. Da mesma maneira, quem se põe novamente no caminho da fé e da verdade e repara em parte os seus erros, pode estar certo de que está fazendo a vontade de Deus, sempre e quando continuar a pedir que lhe dê a graça para continuar pelo caminho da penitência até terminá-lo. Neste caminho, justiça e misericórdia são como dois viandantes que se apoiam reciprocamente ou como dois cônjuges que tratam de educar os filhos juntos na plenitude da vida humana e cristã.
Por tudo o que foi dito, parece-me evidente que a Amoris Laetitia segue plenamente a doutrina e a sagrada tradição da Igreja, sem contradizer o ensinamento teológico da Veritatis Splendor. O Magistério de São João Paulo II (assim como o de seus antecessores e de seus sucessores) opõe-se ao relativismo daqueles que querem que a bondade ou a maldade de um ato dependa da consciência da pessoa que age, mas reconhecem que no juízo sobre a responsabilidade da pessoa sempre se deve ter em conta elementos subjetivos da ação, ou seja (utilizando as palavras do Catecismo que estudei na infância), da “plena advertência e consenso deliberado”.
Negar-se a ver isto seria afastar-se da plenitude da verdade católica. Esta verdade é danificada por uma ética da situação que ignora que os atos humanos têm uma natureza intrínseca, que as torna são bons ou maus. Mas também é empobrecida com uma ética objetivista (não objetiva) que se recusa a ver o lado subjetivo da ação do qual depende o nível de responsabilidade do agente.
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“Eu responderia dessa maneira às dúvidas sobre a Amoris Laetitia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU