21 Novembro 2016
Era um 02 de junho frio aquele de 2005 em Porto Alegre. A chuva ia e vinha há alguns dias. Lígia Maria da Silva estava assando um bolo na casa da patroa quando o telefone tocou. A irmã mais nova, Preta, queria avisar que outra vez iriam tentar despejá-las de casa. Lígia lembra de ter ficado atônita. Seria a terceira tentativa em menos de quatro anos. Retirou correndo o bolo do forno e deixou um bilhete para a patroa: “Dona Lia, tô indo porque tem despejo lá em casa”.
A reportagem é de Fernanda Canofre, publicada por Sul21, 20-11-2016.
No caminho, Lígia não conseguia nem ligar para os representantes de movimentos negros que sempre os ajudavam, para avisar o que estava acontecendo. “Os dedos batiam [no telefone] e não acertava o número de tão nervosa que eu estava”, lembra 11 anos depois. Quando chegou no terreno onde nasceu e morou durante todos os seus 49 anos de vida, encontrou policiais da Brigada Militar “com armas compridas”, as crianças chorando e a tensão se armando.
Durante 15 dias, o Quilombo da Família Silva ficou atrás de uma barricada. Para evitar que a polícia se aproximasse, os moradores montaram uma barreira de pneus e atearam fogo. Moradores de outros quilombos da Capital começaram a chegar para ajudar os Silva a resistir. Representantes de comunidades de umbanda e da Igreja Católica também. Logo, políticos apareceram no local. “Era gente assim, que parecia formiga em cima desse terreno”, diz Lígia.
A ordem de despejo emitida por um juiz da 13ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ia colocar as 12 famílias, quase 60 pessoas que viviam em cima do terreno de 6,5 mil m², na rua João Caetano, nº 1170, na rua. Os pertences seriam levados para um depósito, mas para as pessoas o Estado não tinha nenhum destino a oferecer. E mesmo com o cerco, a vida seguia. O único alívio era quando o relógio marcava 18h, “porque daí não tinha mais despejo e tudo se aquietava”.
“Tu não dorme. Meu sobrinho que tem problemas na cabecinha não queria nem ir no colégio. Porque ele sabia que quando chegasse, a casa podia não estar mais no lugar. Uma criança, já pensou? Os adultos também, porque a gente não sabia se ia chegar e a casa da gente ia estar no lugar”, conta Lígia emocionada ao lembrar a última ameaça de despejo que a família teve de enfrentar.
Esse último susto mudou os rumos da terra onde a família Silva vivia há mais de 70 anos. A ação de despejo foi suspensa por uma decisão judicial, para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tivesse tempo de analisar o processo de titulação do quilombo urbano. O caso dos Silva – um quilombo no meio da cidade – era o primeiro no país e, como em todo primeiro processo, o Incra não sabia exatamente como proceder com a demarcação.
A movimentação de 2005, no entanto, serviu como empurrão final para que o processo andasse. Quatro anos e três meses depois, o Quilombo da Família Silva se tornou o primeiro quilombo urbano do Brasil e abriu as portas para outros que esperavam, com suas terras dentro de áreas urbanas. Hoje, Porto Alegre possui seis quilombos urbanos. No Brasil todo, são 20 apenas nas capitais.
“Os quilombos urbanos são espaços de re-territorialização negra urbanos. Lugares em que antes nós estávamos ou lugares de onde viemos depois de termos sido desterritorializados”, explica o representante da Frente Quilombola, Onir Araújo. “Nós, da Frente, não trabalhamos com o conceito de ocupação, mas sim com o conceito de retomada de território. O que distingue esses quilombos de favelas é que existe o referencial de História, o referencial de pertencimento negro ainda muito presente, que tem ligações às vezes invisíveis para o entorno de uma sociedade racista, eurocêntrica, branca”.
Ainda assim, mesmo com um papel dizendo que o chão é dela e dos irmãos, a vida de Lígia e dos Silva ainda é resistir. Uma história simbólica na Capital mais segregada do país, onde 20% da população é composta por negros e que decretou mais uma vez como “inconstitucional” o feriado do Dia da Consciência Negra.
A história dos Silva na área de terra entre as Avenidas Nilo Peçanha e Carlos Gomes começou pela década de 1930. Foi nesse período que os avós maternos de Lígia, Naura da Silva e Alípio dos Santos, deixaram São Francisco de Paula, nos Campos de Cima da Serra, para buscar uma vida melhor na Capital. A filha Anna Maria foi deixada na cidade a cargo de uma “madrinha”, dona de uma pousada para quem ela trabalhava.
Em Porto Alegre, Naura vivia de lavar roupa para fora e o casal ainda alugava quartos da casa para homens solteiros que também estavam na cidade em busca de trabalho. Por essas coisas de destino que ninguém explica, mas todo mundo já viu acontecer, um dos hóspedes acabou conhecendo a filha Anna quando foi a São Francisco para um baile. De volta à Capital, Euclides José da Silva, 21 anos mais velho que Anna, pediu a mão da filha dos Silva em casamento. O casamento civil aconteceu ali mesmo, no terreno onde a família morava, perto da seringueira que segue forte, enraizada no quilombo.
Quando os pais de Anna chegaram ao terreno, o entorno era apenas mato. Nem o tradicional Colégio Anchieta, que fica a cerca de 500 metros do quilombo, existia na região. O bairro Três Figueiras ainda se chamava Chácara das Três Figueiras e guardava mais as características de sua origem – uma região de Porto Alegre onde predominavam chácaras de negros alforriados – do que a de bairro nobre voltado às classes A e B de hoje.
Lígia e os 11 irmãos nasceram e se criaram ali acostumados com os vizinhos. Ela e os dois irmãos mais velhos chegaram a estudar no Anchieta por um tempo, graças a uma bolsa de estudos. “Antes era tudo campo, nossa entrada era do outro lado – casa 99 – mas fecharam. Agora nossa entrada é só essa ali (na João Caetano). E eles estão tentando abrir uma rua por aqui”, conta Lígia apontando para o meio do terreno. “Entra prefeito, sai prefeito e sempre volta essa conversa”.
Pela metade dos anos 1970, os Silva tentaram pela primeira vez um processo de usucapião que regularizasse o terreno onde viviam em seu nome. O bairro já estava começando a mudar de cara. E os advogados que cruzaram o caminho da família, foram se vendendo e atrapalhando o processo. “Tinha vezes que vinha quatro pessoas por dia dizer que era dona desse terreno. Era a coisa mais triste”, disse Lígia certa vez à um site dedicado a escrever sobre comunidades quilombolas. Ao Sul21 ela emendou: “Até cigano apareceu dizendo que era dono desse terreno”.
Os problemas com os despejos, porém, só começaram quando o pai dela – o morador mais velho do terreno – faleceu, em 2001. Seu Euclides morreu em março, em dezembro chegou a primeira notificação. Na preocupação de poder ficar sem teto a qualquer momento, Lígia e os irmãos tentaram buscar outros lugares. Um terreno no Morro Santana foi oferecido a eles por R$ 10 mil. “A gente foi lá pra ver, só com o dinheiro de ida e volta, eu não tinha nenhuma moeda”, conta.
No meio do caminho, conheceram um advogado que prometeu ajudá-los. Ao invés disso, o homem aproveitou o sobrenome igual, se passou por irmão mais velho da família e conseguiu vender uma faixa do terreno sem consultar ninguém dos Silva do quilombo. Com o lucro, o advogado comprou uma pousada na praia, dois carros e construiu uma casa geriátrica de dois pisos; o condomínio que começava a construção logo acima do quilombo ganhou área para uma piscina, salão de festas e outra casa. Para Lígia e os irmãos, nada.
Era só mais uma das construções de luxo do Três Figueiras a morder as terras dos Silva. A área do quilombo perdeu espaço conforme o bairro foi crescendo e se tornando um dos 20 bairros residenciais mais ricos do Brasil; a maior renda per capita de Porto Alegre. Atualmente, o metro quadrado na região custa em média R$ 5,7 mil. O segundo mais caro da capital gaúcha.
Um contraste bruto com o quilombo formado por casas que não tinham nem banheiro próprio até a Emater providenciar a construção. Até então, todas as 12 famílias usavam um banheiro comunitário. “Quando vieram as máquinas para abrir caminho, para a Emater entrar com o material pra fazer nossos banheiros, o condomínio gritava assim lá de cima, na sacada: ‘ah, vão levar a negrada embora! vão levar a negrada embora!’. Eles acharam que era um despejo”, lembra Lígia. “Me diz uma coisa menina, isso aqui é um dos metros quadrados mais caros de Porto Alegre, eles vão querer negro, pobre, pelado aqui? Claro que eles não querem. Quando é negro com dinheiro, eles ainda engolem”.
Sem nenhum contato com uma parte dos condomínios, que aumentou recentemente o muro que já era alto separando as casas do Quilombo dos Silva, Lígia elogia a parte “que ajuda no Natal” e os patrões. Todos os quilombolas dali são empregados da classe alta do bairro. A maioria das mulheres trabalha como empregada doméstica – Lígia passou da limpeza para cuidadora de uma senhora de 88 anos – enquanto os homens trabalham de jardineiros, segurança privada das guaritas espalhadas nas esquinas ou no Country Club.
Olhando para as casas pequenas de madeira que formam a comunidade, Lígia lembra dos dias em que o racismo não vinha só do condomínio. Era uma rotina certa toda vez que alguma das crianças dos Silva resolvia brincar na praça, quase em frente à entrada do quilombo. “Os brigadianos não podiam ver ninguém na praça. Eles viam os guris, mesmo sabendo que eram daqui de dentro, davam pau nos guris. Era pra intimidar, pra dizer que podiam dar”, relembra Lígia.
A coisa escalou para o pior em 2010. Lorivaldino, o Lorico, irmão de Lígia, brincava na praça com o neto de 2 anos, quando a polícia chegou mandando que ele se identificasse. Lorico apresentou documentos, mas ainda assim acabou empurrado com a cara no chão por um soldado às portas do quilombo. O cunhado Paulo Dutra Pacheco correu indagar aos policiais o porquê da abordagem violenta e acabou tendo como resposta voz de prisão. Nervoso, conforme contou em depoimento ao Ministério Público Estadual, Paulo correu para dentro da própria casa e lá mesmo, depois de ele ter se identificado, antes de colocar as algemas, os policiais o agrediram com socos e pontapés. O cunhado de Lígia foi preso por “desobediência, resistência e desacato”.
O caso foi parar no Comitê Contra a Tortura – que citou as abordagens pessoais como “reiteradas e sistemáticas” – mas era só o estopim de uma tensão crescente entre polícia e o povo do quilombo. Alguns anos antes, Lígia lembra de uma vez em que a irmã Preta tentou interceder por um dos sobrinhos, então com 11 anos, que estava sendo revistado pelos policiais. O brigadiano acusava o menino de ter roubado algo e saiu batendo em todo mundo que tentou contrariá-lo. Uma das sobrinhas de Lígia perdeu o bebê que esperava com a surra.
Outra vez, foi com o sobrinho Leandro, recém saído do hospital por um tratamento de pulmão. Lígia conta que estava passando perto do Shopping Iguatemi quando Leandro começou a gritar chamando por ela. Dentro de uma viatura, preso, ele tentava falar. “Eu perguntei porque tinham pegado ele, [os policiais] disseram que teve um assalto na Nilo e foi ele que assaltou porque estava de camisa vermelha. O primeiro negro de camisa vermelha, [o policial] pegou. Eu disse que ele não roubava, que ele juntava papel e nunca roubou. Ele deu no Leandro e aquela cicatriz abriu, porque ele tinha recém drenado o pulmão. Eu disse que era do dreno e ele disse ‘não, isso foi um tiro que ele levou’. E eu dizendo que não foi. Peguei o número das viaturas e arrumei um processo pra eles. Depois, quando eles viam o Leandro na rua, eles diziam: por causa de ti, eu fui processado”. Pouco mais de um ano depois, Leandro morreu pelo problema de pulmão.
Quando olha para a história da terra de sua família, Lígia olha também para toda a história de dificuldades que os Silva passaram ali. “O que levou eles a estarem ali por mais de 70 anos, sofrendo tudo o que tu pode imaginar de violência, e terem falado: não, aqui meus pais me criaram, eu estou criando meus filhos, meus netos vão se criar aqui e foi aqui que botei meu umbigo? Isso é uma relação muito diferente de uma relação individual e patrimonialista. É uma relação coletiva”, analisa Onir Araújo.
De fato, se por um tempo Lígia pensou em sair dali e arrumar um canto onde não se incomodasse, hoje ela diz que não saberia morar em outro lugar. “Criei minhas filhas aqui, minha filha mais velha está com 42 anos e se criou aqui e continua morando aqui. Meus bisnetos já estão nascendo aqui também. Eu sou orgulhosa de estar morando aqui ainda”, confessa.
Num fim de tarde chuvoso em Porto Alegre, em que relembra os dias de chuva durante a última tentativa de despejo que enfrentou, quando todo mundo se abrigava debaixo um telhado de zinco cheio de furos, sem saber como seria o dia seguinte, Lígia suspira e fala: “Pelo menos agora não tem mais despejo, a gente já sabe que vai ficar aqui pra sempre”.
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Primeiro quilombo urbano resiste prensado por um dos metros quadrados mais caros de Porto Alegre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU