22 Outubro 2016
Aproxima-se a visita de Francisco a Lund, na Suécia, para a "comemoração" dos 500 anos da Reforma Luterana, e as relações do papa com a galáxia protestante parecem ótimas. Depois de ter estado, no ano passado, na igreja luterana de Roma e depois de ter dito (na viagem de volta da Armênia) que Lutero foi um "remédio" para a Igreja Católica, recentemente o papa até recebeu no Vaticano um grupo de peregrinos luteranos, incluindo uma estátua de Martinho Lutero no palco.
O comentário é de Aldo Maria Valli, publicada no seu blog, 21-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Confirmando o clima de grande amizade, em vista do evento sueco, o cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e o reverendo secretário-geral da Federação Luterana Mundial escreveram um artigo juntos – publicado no site da Lutheran World Federation e republicado pelo jornal L'Osservatore Romano – que ressalta os passos dados em quase 50 anos de diálogo internacional entre as duas comunidades.
O pastor valdense Paolo Ricca, 80 anos, expoente histórico do diálogo ecumênico, em várias ocasiões, também avaliou como "um grande passo" a viagem de Francisco à Suécia, porque ela significa, explicou, que o papa considera a Reforma como "um evento positivo na história da Igreja", algo "que fez bem também ao catolicismo".
Vale ressaltar que o teólogo Ricca amadureceu essa juízo positivo sobre Francisco em tempos recentes, porque, até pouco mais de dois anos atrás, ele o considerava de modo radicalmente diferente. Porque eram diferentes também as avaliações expressadas por Bergoglio.
Era junho de 2014 quando, em um artigo publicado pelo sítio Riforma, o pastor Ricca, a propósito de algumas opiniões de Jorge Mario Bergoglio sobre o movimento protestante e, em particular, sobre o calvinismo, falava de "surpresa e decepção" diante de avaliações "que, infelizmente, reproduzem os mais desgastados e grosseiros clichês polêmicos usados pela Contrarreforma em tempos distantes para difamar o protestantismo".
Os julgamentos a que Ricca se refere no artigo são os expressados por Bergoglio muito antes de se tornar papa, em 1985, na Argentina, em uma conferência intitulada "Quem são os jesuítas" e publicada em italiano em maio de 2014, junto com dois outros artigos, com a introdução do padre Antonio Spadaro, diretor da revista jesuíta La Civiltà Cattolica.
O tom de Ricca no artigo é, no mínimo, escandalizado. Ele escreve:
"Ouçam aquilo que o papa, quando ainda era arcebispo, dizia (esperamos que agora não o diga nem o pense mais) sobre Calvino, que, segundo ele, é muito pior do que Lutero. Lutero era herético, e a heresia é 'uma ideia boa enlouquecida'. Mas Calvino, bem mais do que herético, também foi cismático e o foi em três áreas diferentes: o homem, a sociedade, a Igreja. No homem, Calvino provoca até dois cismas. O primeiro é 'entre a razão e o coração', do qual nasce 'a miséria calvinista'. O segundo ocorre dentro da mesma razão, 'entre o conhecimento positivo e o conhecimento especulativo', com danos irreparáveis a 'toda a tradição humanista'. Na sociedade, Calvino provoca o cisma entre as classes burguesas, que ele privilegia 'como portadoras de salvação', e as corporações dos ofícios que representam 'a nobreza do trabalho'. Calvino seria promotor de 'uma Internacional da burguesia' e, como tal, 'o verdadeiro pai do liberalismo'. Na Igreja, enfim, Calvino provoca o cisma pior: 'A comunidade eclesial é reduzida a uma classe social', a burguesa, e 'Calvino decapita o povo de Deus da unidade com o Pai. Decapita todas as confraternidades dos ofícios, privando-as dos santos. E, suprimindo a missa, priva o povo da mediação em Cristo realmente presente'. Em suma: Calvino é um verdadeiro carrasco espiritual, que decapita tudo o que pode!".
"Custo a acreditar – comenta Ricca – que o atual pontífice pense sobre Calvino e sobre a Reforma essas coisas, que não estão nem no céu nem na terra, e que nenhum historiador católico, ao menos entre aqueles que eu conheço e leio, diz mais há muito tempo. E, como os jesuítas, quando nasceram, assumiram como tarefa, além da missão entre os pagãos, também a de combater com todos os meios o protestantismo, como efetivamente ocorreu, então, se o protestantismo que eles combateram é o 'pintado' por Bergoglio, eles devem saber que combateram um protestantismo fantasma, que nunca existiu, um puro ídolo polêmico criado somente pela sua imaginação, que tinha pouco ou nada a ver com a famosa 'realidade', que também queriam assumir como 'pilar' do seu 'modo de proceder'''.
Depois, para piorar as coisas, Ricca acrescenta:
"Mas isso não é tudo. Ouçam o que Bergoglio dizia (esperamos que agora não diga nem pense mais) sobre as consequências da Reforma. Segundo ele, 'a partir da posição luterana, se formos coerentes, restam apenas duas possibilidades de escolha no curso da história: ou o homem se dissolve na sua angústia e não é nada (e é a consequência do existencialismo ateu), ou o homem, baseando-se na mesma angústia e corrupção, dá um salto no vazio e se autodecreta super-homem (é a opção de Nietzsche)... Tal poder [imaginado por Nietzsche], como ultima ratio, implica a morte de Deus. Trata-se de um paganismo que, nos casos do nazismo e do marxismo, irá adquirir formas organizadas'. Tudo isto 'a partir da posição luterana', que, evidentemente, de acordo com essas páginas de Bergoglio, é a causa primeira, ainda que remota, das piores coisas que aconteceram no Ocidente, incluindo a secularização, a 'morte de Deus' e os vários totalitarismos que infestaram a história moderna da Europa. Em suma, é a velha tese da Contrarreforma: a Reforma protestante vista como fonte de todos os males ou, melhor, de todos aqueles que a Igreja de Roma considera como 'males'".
"Eu me pergunto como é possível – concluía Ricca – ter ainda hoje (ou mesmo há 30 anos) uma visão tão deformada, distorcida, deturpada e substancialmente falsa da Reforma protestante. É uma visão com a qual não só não se pode iniciar um diálogo, mas nem mesmo uma polêmica: não vale a pena, porque é distante e disforme demais da realidade. Uma coisa é certa: a partir de uma visão desse tipo, uma celebração ecumênica do 500º aniversário da Reforma em 2017 parece ser literalmente impossível".
De "impossível" que era, a "celebração", como vimos, ao contrário, tornou-se possível e, de fato, foi enfatizada por ambos os lados. E, se isso ocorreu, é graças às avaliações expressadas pelo Papa Francisco, muito diferentes daquelas do arcebispo de Buenos Aires Jorge Mario Bergoglio.
A história, às vezes, reserva surpresas. As avaliações do então arcebispo Bergoglio, alinhadas com a interpretação que os jesuítas sempre fizeram do fenômeno protestante, são as mesmas reiteradas hoje precisamente por aqueles setores da Igreja Católica que atribuem ao Papa Francisco o fato de ter entrado facilmente demais em acordo com os protestantes.
É verdade, contudo, que, desde 1985, passaram-se mais de 30 anos e que as pessoas podem mudar de ideia, mas a diferença entre as opiniões do então arcebispo Bergoglio e as do atual Papa Francisco é impressionante. O que a determinou?
Só Francisco poderia responder. Mas podemos captar alguns indícios a partir de uma testemunha. É preciso voltar a julho de 2014 e à visita privada, e fortemente desejada, que Francisco fez em Caserta ao seu amigo Giovanni Traettino, pastor evangélico.
Naquela ocasião, além de pedir perdão aos evangélicos pelas leis raciais emitidas durante o fascismo (o papa disse: "Entre aqueles que perseguiram e denunciaram os pentecostais, quase como se fossem loucos que arruinavam a raça, havia também católicos: eu sou o pastor dos católicos e peço-lhe perdão por aqueles irmãos e irmãs católicos que não entenderam e foram tentados pelo diabo"), Francisco falou do ecumenismo como de um "caminho" a ser feito "na presença de Jesus" e acrescentou: "Cristãos parados: isto faz mal, porque aquilo que está parado, que não caminha, se corrompe. Como a água parada, que é a primeira água a se corromper, a água que não escorre".
Quando ele se refere a "cristãos parados", Francisco pensa talvez, também, em como ele mesmo estava tempos atrás? Não sabemos. Mas sabemos que a amizade fraterna com Traettino começou em Buenos Aires, e, sobre aqueles encontros, temos um testemunho interessante. É a do pastor Jorge Himitian, aquele que favoreceu a amizade entre o papa e Traettino e que, como data de início do caminho de Bergoglio com os evangélicos, indica um ano e uma circunstância específicos.
O ano é 2006, quando os protestantes organizaram um grande encontro no estádio Luna Park da capital argentina, do qual participaram cerca de sete mil pessoas e que durou dez horas. Bergoglio também foi convidado, aceitou e, por fim, pediu aos evangélicos que rezassem por ele. A partir daquele momento, lembra Himitian, os encontros ocorreram regularmente, no arcebispado ou na igreja evangélica, e foi assim que nasceu uma grande amizade, com base em uma ideia que, pouco a pouco, abriu caminho no coração do futuro papa: enquanto a doutrina divide, a relação humana une, e o importante, portanto, é se frequentar e se conhecer.
"Este é um homem que reza como um pregador", disse o pastor Himitian, referindo-se a Bergoglio, depois do encontro do papa com o pastor Traettino em Caserta. "Em cinco, dez anos, vamos considerar o encontro de hoje como um encontro histórico."
Agora, a questão é: a fórmula cara a Francisco, segundo a qual a doutrina divide e a relação humana une, corre o risco, talvez, de desembocar no sincretismo ou, pelo menos, em um diálogo superficial, apenas sentimental e desprovido de conteúdos concretos?
Em Caserta, durante a visita aos evangélicos, o papa pareceu ter respondido a essa objeção quando, falando de improviso, explicou que o objetivo não deve ser a uniformidade, mas a unidade na diversidade, à luz do Espírito Santo, e contrapôs a figura geométrica da esfera, onde todos os pontos estão à mesma distância do centro, à do poliedro, que é "uma unidade, mas com todas as partes diferentes", e "cada uma tem a sua particularidade, o seu carisma".
Pois bem, "essa é a unidade na diversidade. É nesse caminho que nós, cristãos, fazemos aquilo que chamamos com o nome teológico de ecumenismo: tentamos fazer com que essa diversidade seja mais harmonizada pelo Espírito Santo e se torne unidade; tentamos caminhar na presença de Deus para sermos irrepreensíveis; tentamos ir ao encontro do alimento de que precisamos para encontrar o irmão. Esse é o nosso caminho, essa é a nossa beleza cristã".
A partir da viagem para a Suécia, talvez, chegarão mais respostas sobre aquilo que Francisco entende por "unidade na diversidade" e outros indícios para entender melhor como, quando e por que, no diálogo com os protestantes, passamos das avaliações de Jorge Mario Bergoglio às de Francisco.
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A evolução do diálogo com os protestantes, de Bergoglio a Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU