Por: Márcia Junges | 30 Setembro 2016
Refletir acerca da governamentalidade dos sujeitos e sua resistência aos dispositivos de controle social. Esse foi o eixo condutor da conferência do Prof. Dr. Sandro Chignola na tarde de 27-10-2016 no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, intitulada Poder pastoral e governamentalidade: paradoxos do cuidado e do governo dos outros.
A apresentação começou por uma via transversa. Assim, Chignola falou primeiramente acerca da obra A democracia na América, do pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859). “Este é um autor sobre quem trabalhei muito em minha juventude”, disse. Com 35 anos Tocqueville, originário de uma família aristocrática normanda, viaja pela América e percebe que no mundo estava se formando uma nova configuração política, uma outra forma de poder como modo global e mundial da política.
Dessa forma, no primeiro volume de A democracia na América, originariamente publicado em 1835, fica claro o entusiasmo positivo de Tocqueville pela democracia americana. Ele percebe o nascimento da democracia ao estilo americano, diferente da democracia direta europeia em voga em pequenas comunidades. “Ele se dá conta de que a democracia produz suas próprias instituições. Contudo, já no segundo volume, de 1840, fica clara a preocupação acerca dessa sociedade governada de maneira democrática. No final desse volume, Tocqueville evoca dois problemas. O primeiro deles é que na democracia as revoluções serão muito raras. O segundo é que na democracia americana se descortina um déspota de tipo novo, o poder pastoral.
Professor Sandro Chignola em sua conferência no IHU (Foto: Ricardo Machado/IHU)
O déspota clássico não é igual àquele de tipo novo, mas sim um senhor que trata seu próprio povo como um dono trata sua propriedade. É uma espécie de Drácula, a figura tanatopolítica por excelência, provoca Chignola. Quando Bram Stoker trabalha com a figura clássica da tanatopolítica, esta é uma espécie de tirano que se apropria do que os outros produzem. Esse não é o problema da democracia, na qual surge o déspota de tipo novo.
Tocqueville diz que se trata fundamentalmente de uma figura paterna, de tipo pervertido, pois infantiliza o sujeito de direito, e se ocupa de tudo em seu lugar: “Esse déspota não usa a violência como aquele de tipo clássico. O cidadão democrático pede a ele que aja em seu nome. Portanto, o futuro democrático seria como uma relação do pastor com suas ovelhas. Foucault, como Espósito e Agamben, inspiram-se nessa ideia de Tocqueville.”
Tocqueville é o primeiro pensador político que tenta pensar a democracia como fluxo, tendência e processo, e não apenas uma forma de governo. Trata-se de uma inclinação irresistível. O futuro da humanidade, portanto, é previsível, e tende a produzir essa nova forma de governo de recorte paterno pervertido e despótico. “Precisamos compreender, no horizonte dessa discussão, que Tocqueville é um autor reacionário, que não tem a democracia em alta conta”, pondera Chignola.
Nessa conjuntura política há uma dessensibilização de um êxito extremo e um processo de individualização, com a família como foco central dos confortos e bens de cada um. A pulverização do tecido social resulta no indivíduo. Os outros são obstáculos e oponentes, que pedem para ser governados. Governar-se a si mesmos é um risco, o que La Boétie já havia percebido quando escreveu A servidão voluntária.
Sandro Chignola prosseguiu destacando que governar-se requer energia, deliberação e autonomia. Com o aprofundamento da democracia há, portanto, uma progressiva animalização política. Assim, ocorre uma perda progressiva da humanidade, que se converte em solitária, apolítica, e cujos sujeitos deixam de fazer coisas em conjunto com outras pessoas.
“O poder democrático é administrativo, e pressupõe um desejo de ser conduzido, uma constante vontade de ser governado ainda mais, como se nunca fosse o suficiente. É daí que vem o interesse de Foucault sobre o pastorado”, completa Chignola. A administração democrática através do déspota de tipo novo realiza a higienização das cidades, como o que ocorreu na França, que foi submetida a um modelo de sanitização para evitar não apenas doenças, mas a instalação de barricadas e resistências.
Levando em consideração a característica da democracia como poder de tipo administrativo (do latim administratio pressupõe a transmissão de governo a um menor), implica na infantilização (descapacitação) permanente dos sujeitos de direitos. “É isso que ocorre com a governamentalidade. Quanto mais passivos ficamos, menores nos tornamos. Essa é a grande descoberta de Tocqueville”. Foucault, quando se inspira em A democracia da América, propõe que inventemos as próprias formas de vida para nos autogovernarmos.
Na democracia, pontua Chignola, a governamentalidade se desloca da soberania e se move para a administração. Assim, estão a cargo do poder político a higiene pública, a escolaridade e até mesmo a tutela da maternidade (porta pela qual entra a noção dos direitos sociais). Pode-se falar, inclusive, em uma reinversão de poder para outro lugar. Entretanto, é imprescindível estar atento ao ler Michel Foucault para não pensar que a época da soberania foi totalmente superada e agora vivemos somente sob o império do biopoder, pois os jogos de poder são múltiplos e cambiáveis.
Para governar com os biopoderes uma carestia ou epidemia é necessário se confrontar com algo que já passou. Dessa forma, o problema da oikonomia, da providência divina, é recuperar a “variável enlouquecida da liberdade humana. Por isso a metáfora do bom pastor que segue as ovelhas e as cuida, e não as comanda. Inclusive o mais pecador deve ser recuperado, assim é o governo divino das coisas. Omnes et singulatim, como escreveu Foucault”. A população é o conjunto de relações que fazem de homens e mulheres uma massa a ser governada. Porém, a liberdade dos seres viventes é ingovernável.
Em várias entrevistas Foucault disse que seu problema, o seu objeto de interesse era o sujeito, e não o poder, como pensavam. E o “último Foucault” é exatamente aquele que estuda o problema do sujeito. “Tocqueville nos coloca a alternativa sobre o sujeito que vive na sociedade como um bárbaro, que não crê em nada, sem confiança. Não é possível mais aplicar o modelo antigo de política a essas pessoas, porquanto as coisas estão se esfacelando”, acentuou.
O pensamento de Foucault é um exemplo de política da Filosofia à qual Chignola se referiu enfatizando a importância de pensar numa responsabilidade política até o final e suas últimas consequências. “É preciso refletir acerca da responsabilidade como filósofo e estar comprometido como o que se ensina. Colocar-se o problema do que se pensa hoje é fundamental em Foucault.”
Em sua opinião, podemos reconstruir jogos de poder através da resistência. “Esse é o grande problema de Foucault. Isso aparece em 1970, tanto com as revoltas antidisciplinárias, quanto com o exército, o partido e a fábrica. Há algo novo e essa nova forma de existência produz uma reinversão do poder protagonizado pela Escola de Chicago, Tatcher e Reagan”.
“Ser filósofo não é apenas ensinar, mas viver um percurso duro. O patrão dos cínicos é Hércules, o patrono dos trabalhos árduos. Assim, interessa a Foucault os cínicos, por sua possibilidade de construir sua contraconduta, experimentar formas de vida diferentes, processos de subjetivação outros e dar testemunho do que é uma política da Filosofia”, afirma Chignola. A política da Filosofia é a política do sujeito filósofo, da relação que cada um que entra na Filosofia entra consigo mesmo. Ser filósofo não é ouvir Filosofia, é praticá-la, vivê-la.
Mas afinal, que tipo de sujeito é produzido pela revolução neoliberal? Devemos levar em conta que essa produção não nega a liberdade, não é aquela de tipo disciplinário. Foucault diz que essa revolução neoliberal “nos obriga a sermos livres”, o que podemos perceber pelo advento da pessoa como “empresário de si mesmo”, a figura do empreendedor a quem deve ser creditado o fracasso ou o sucesso por sua trajetória pessoal e profissional, sobretudo.
O espírito de competitividade, o cinismo e a percepção das oportunidades em tempo hábil é o ethos que perpassa o modelo de vida neoliberal, inclusive dentro da universidade. “É a substituição da bibliografia pelo currículo. Temos que aprender a fazer um currículo, uma forma de sugestão muito sutil e pervasiva porque modela, mais do que uma anátomo-política. Digo sutil porque não somos obrigados a termos um ótimo currículo, mas isso modela a percepção que temos acerca de nós próprios. O modelo neoliberal dá um leque de possibilidades para o consumidor, que vive a égide desse modelo invasivo”.
Pode-se falar, inclusive, de uma sobreposição entre poder e vida, observa Chignola. A vida é conectada de modo global. E a construção de si mesmo ocorre de modo constante dentro de uma prática e uma teoria. A construção infinita de si mesmo, originariamente proposta por Epicteto em outros termos, é levada às últimas consequências na lógica neoliberal de vida.
A forma paradoxal de condução de conduta neoliberal é o Facebook, dispositivo de captura e de autoconfissão, de publicação e validação do sujeito. Nesse contexto vale lembrar que somos agentes livres numa governança que captura a liberdade sutilmente.
Como pensar a autonomia a partir desse cenário? Até que ponto a antecipação de condutas é uma prática que ocorre hoje? Ao ser questionado sobre essas temáticas, Sandro Chignola assegurou que para Foucault não há um fora do poder. “Todas as relações são relações de poder. A ilusão de autonomia é um pedaço da magia negra do neoliberalismo. Não há uma autonomia prévia fora do governo – há que se pensar de outra maneira um governo que já existe”. “Pensar num sujeito autônomo é pura ideologia”, emendou.
E acrescenta: “É preciso dobrar as condições de governo para delas fazer um uso diferente. Necessitamos usar as regras de outras formas, dar-lhes um outro uso. E isso é algo diferente da propriedade, uma discussão que Agamben faz em Altíssima Pobreza. Devemos usar as coisas de outras maneira.”
Outro assunto que surgiu no debate com o público foi a financeirização como uma forma de governamentalização cujo peso é opressivo. A dívida permanente, como é o caso vivido pela Argentina e o que ocorreu nos EUA com a bolha imobiliária em 2008 são exemplos do quanto essa moral da dívida e, portanto, da culpa, não cessa de se reatualizar. “Agora a lógica da financeirização está se consolidando com outro aspecto, com a questão dos financiamentos estudantis universitários dos EUA. É a governamentalização através da dívida junto a estudantes que já começam suas carreiras comprometidos com dívidas muitas vezes impagáveis.”
Para Chignola, precisamos inventar outras formas de viver o comum. “A grande invenção neoliberal é a captura das coisas e das pessoas através do sistema, com a lógica do indivíduo isolado”. Mas como é possível se revoltar contra o déspota de tipo novo? Ou é inútil revoltar-se? Como os intelectuais do século XXI podem ter ainda responsabilidade política? Nesse ponto é preciso dar-se conta de que o problema da crítica é fundamental em Foucault. “Se não há fora do poder, como podermos falar sobre ele de outra parte? Falar em nome dos outros é uma indignidade em termos éticos. Foucaultse referiu a isso a respeito da foto clássica de Sartre falando aos operários da Renault sobre o que deveriam fazer. Para Foucault, aquilo é indigno”.
Quem é Sandro Chignola
Sandro Chignola é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia, Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Universidade de Pádua, Itália. É autor, entre outros, de História de los conceptos y filosofia política (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010).
O Cadernos IHU Ideias publicou o artigo Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de sua autoria.
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O poder democrático administrativo e o déspota de tipo novo. O poder pastoral e a governamentalidade segundo Sandro Chignola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU