Por: Jonas | 03 Março 2016
Se alguém se anima a perguntar na França “o que é a esquerda”, um atordoado e confuso fluxo de explicações preencherá um relato impossível. O mandato do socialista François Hollande (foto) concluirá a empresa de esclarecimento social-liberal, apesar de ter sido eleito com uma plataforma de esquerda e com seu famoso hino “meu inimigo é a finança”. O Partido Socialista francês sofre “uma crise de mutação”, conforme reconheceu o atual Primeiro Secretário do Partido, Jean-Christophe Cambadélis. O último ato dessa “mutação” que arruinou a esquerda é uma reforma trabalhista que responde aos delineamentos de Bruxelas e Berlim, e que nem sequer os governos conservadores anteriores, entre eles o muito liberal de Nicolas Sarkozy, ousaram apresentar.
Fonte: http://goo.gl/kggCR1 |
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 01-03-2016. A tradução é do Cepat.
O presidente Hollande e seu primeiro-ministro Manuel Valls deram o passo e propõem mexer no sacrossanto regime do trabalho. Analistas de esquerda e de direita apontam que um governo socialista está completando o mandato de seu predecessor liberal. O projeto de reforma apresentado pela ministra do Trabalho, Myriam El Khomri, arremete contra bases bíblicas da esquerda: admite demissões em massa, regulamentadas mediante indenizações a baixo custo, de acordo com o estado financeiro das empresas, coloca em avaliação o horário de 35 horas de trabalho por semana, estipula que as horas extras possam ser pagas abaixo dos acordos setoriais.
Os sindicatos acusam o Executivo de ter voltado “ao Século XIX”. Manuel Valls lhes responde que são eles que estão “ancorados no Século XIX”. Para além desta proposta, é o conjunto da esquerda francesa que está na corda bamba. Com uma constância muito aplicada, Hollande apagou as fronteiras entre os princípios de ação da esquerda e os de seu outrora “inimigo” liberal. O confronto se instalou, hoje, com dois antagonistas irreconciliáveis: a linha reformista sócio-liberal modernizadora de Valls e uma social-democracia clássica, cujo melhor expoente é a ex-ministra do Trabalho e autora da lei sobre as 35 horas de trabalho semanal, Martine Aubry.
Nas páginas do vespertino Le Monde, esta dirigente socialista assinou um contundente documento contra a política governamental, juntamente com outros 18 dirigentes da esquerda e intelectuais. O texto intitulado “Sair do caminho sem saída” apresentou o caráter irrecuperável de qualquer conciliação. O texto aponta que “não basta reivindicar um reformismo social para merecer este título. Não há nem verdadeira reforma, nem nada social em muitas das políticas que estão sendo realizadas há dois anos. Nessas políticas, encontramos propostas tiradas do campo de frente, que nada tem de modernas e são ineficazes”. O texto clama a um “isto é demais” e detonou a já fictícia convivência entre social-democratas e social-liberais.
Martine Aubry é uma referência do Partido Socialista francês. Foi a ministra de trabalho que lutou contra o patronato para fazer votar a lei das 35 horas de trabalho semanais, foi Primeira Secretária do Partido e foi quem o colocou em ordem de batalha para a vitória de Hollande, em 2012. Porém, desde então, a linha governamental assumiu um perfil social-liberal que levou o Partido Socialista a perder sucessivamente cinco eleições consecutivas, entre elas as europeias, as municipais, as regionais e as departamentais.
O mandato de Hollande se caracterizou por uma coleção de renúncias aos enunciados de sua plataforma eleitoral e, mais amplamente, aos núcleos que forjaram a identidade do Partido Socialista. Hollande fraturou como nunca a esquerda, quando, após os atentados do dia 13 de novembro, em Paris, decidiu incluir na Constituição a retirada da nacionalidade francesa daqueles que detêm duas nacionalidades e estiveram envolvidos em atos terroristas. Essa medida foi uma das bandeiras da direita e da extrema-direita e acabou sendo aplicada por um Executivo socialista. Com ela se rompe o sacrossanto princípio de igualdade porque, de fato, são criadas duas categorias de franceses. Por isso, no texto publicado pelo jornal Le Monde, os subscritores se questionam: “o que ficará dos ideais do socialismo, quando, dia após dia, tiverem sepultado seus princípios e seus fundamentos?” Das palavras, a dirigente socialista passou à ação. Ela e vários de seus partidários anunciaram que gostariam de abandonar os postos que ocupam na direção do Partido Socialista.
Esses ideais socialistas foram a retórica empregada para vencer as eleições, nada mais. Aqueles que hoje se opõem a que se retire a regulamentação são taxados de arcaicos, nostálgicos e antimodernos. Os socialistas críticos ao governo prognosticam uma derrota fenomenal nas eleições presidenciais de 2017. Eles e outros setores da esquerda mais radical abriram outro debate, no seio da esquerda, exigindo uma “primária” de toda a esquerda frente às eleições presidenciais de 2017. Contudo, são fogos de artifícios. A verdade é que o progressismo francês é um conto de fadas, no qual poucos eleitores acreditam.
Dado inédito nos últimos sete anos, as cinco maiores centrais sindicais da França entraram em acordo para ir às ruas, em março, contra a política governamental. Com sua reforma trabalhista, Hollande aposta em sua reeleição. Este projeto de lei que sacudiu o último consenso que existia na esquerda, tem como objetivo cumprir com o que foi “a promessa” de Hollande, ou seja, reduzir o desemprego (mais de 10,5% da população). Aposta incerta que acabou descompondo seu próprio campo.
O historiador Jacques Julliard retratou muito bem a hecatombe atual quando, há alguns meses, em uma entrevista publicada pelo jornal de direita Le Figaro, considerou que “a esquerda francesa vive uma crise fundamental”. Fundamental quer dizer de essência, ou seja, de ruptura e negações profundas. Os social-liberais do governo argumentam que as reformas atuais apontam para o progresso. No entanto, como ressalta Julliard, “o povo tem o sentimento de uma dissociação: pensa que o progresso não aponta mais para a justiça social”. A quebra é considerável e deixa milhões de pessoas perdidas entre retóricas tecno-sedutoras e realidades que significam retrocesso. Ninguém nega que são necessários retoques, mudanças e reformas para adaptar a regulamentação de outras épocas ao mundo de hoje, mas a mutação vai, para muitos, bastante longe e deixa pelo caminho o que o progressismo francês construiu como ideia e projeto durante décadas: a irrenunciável igualdade.
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O socialismo de Hollande se converte em liberal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU