"A narrativa da tempestade acalmada parece um tanto maravilhosa, retumbante, o que contrasta com a pequenez da semente de mostarda... Para entendê-la melhor, a primeira Leitura de hoje, do livro de Jó, nos dá uma chave. Ela começa dizendo: 'Então o Senhor respondeu a Jó, do seio da tempestade'. Lembremos que Jó havia desafiado a Deus, dizendo: 'que o Todo Poderoso me responda!' (Jó 31,35)".
"Jesus opõe a fé não à descrença, mas ao medo, ao pavor. Mais tarde ele dirá ao pai da menina ameaçada de morte: 'Não tema, apenas tenha fé!' (Mc 5,36). A fé é como uma confiança, uma certeza de que Deus cuida de suas criaturas; de modo especial, daquelas criaturas que representam a sua imagem e semelhança".
A reflexão é de Tereza Maria Pompéia Cavalcanti, graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1966), em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Louvaina, (1971) e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003), é mestre e doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1983 e 1991, respectivamente). Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Pastoral, atuando principalmente nos seguintes temas: pastoral popular, bíblia, espiritualidade, mulher e comunidades eclesiais de base.
1ª Leitura - Jó 38,1.8-11
Salmo - Sl 106,23-24.25-26.28-29.30-31 (R. 1b)
2ª Leitura - 2Cor 5,14-17
Evangelho - Mc 4,35-41
O Evangelho de hoje situa-se na continuação daquele do último domingo, que trazia a imagem da pequena semente que cresce e se desenvolve naturalmente, desabrochando em uma árvore onde se abrigam os pássaros. O autor desse Evangelho, Marcos, dedicou o quarto capítulo inteiro às parábolas, mas no fim insere o texto da tempestade acalmada por Jesus. Aqui o autor passa das palavras às ações do Mestre.
A primeira ação relatada é a que revela o poder de Jesus diante das forças da natureza.
É curioso notar como Marcos abre essa narrativa. Após o longo discurso sobre as parábolas, ele escreve: No entardecer daquele dia (Jesus) lhes disse: “Passemos à outra margem”.
O entardecer é o tempo que antecede a noite, símbolo de escuridão, de perigo. Mas Jesus pede para atravessarem o lago. Em seguida, lemos que os discípulos “o levaram, tal como estava, na barca”. Parece que Jesus se alongava para despedir a multidão, de tal modo que seus companheiros, como que pressentido o temporal, trataram de arrastá-lo às pressas, para dentro da barca. Mateus, que segue Marcos nessa narrativa, prefere ressaltar a autoridade de Jesus e coloca-o como protagonista, escrevendo: “Depois disso, Jesus entrou no barco e seus discípulos o acompanharam” (Mt 8,23).
A narrativa da tempestade acalmada parece um tanto maravilhosa, retumbante, o que contrasta com a pequenez da semente de mostarda... Para entendê-la melhor, a primeira Leitura de hoje, do livro de Jó, nos dá uma chave. Ela começa dizendo: “Então o Senhor respondeu a Jó, do seio da tempestade”. Lembremos que Jó havia desafiado a Deus, dizendo: “que o Todo Poderoso me responda!” (Jó 31,35).
Por que Deus aparece falando “do seio da tempestade”? No AT vemos o Êxodo, os Salmos e Profetas se referirem a Deus a partir de fenômenos naturais grandiosos que provocam ao mesmo tempo medo e admiração. Assim, por exemplo, no livro do Êxodo Deus fala a Moisés em meio a raios, trovões e terremoto (Ex 19,16-19). Na continuação da nossa primeira leitura, o livro de Jó traz a fala do Senhor:
Quem fechou com portas o mar...
quando lhe impus os limites... e disse:
'Até aqui chegarás e não passarás,
Aqui se quebrará a arrogância de tuas ondas?'
O Antigo Testamento não só se refere a Deus como o Criador, mas também como Aquele que dá ordens e mantém o equilíbrio da Criação. O mar, símbolo do caos quando se encrespa, torna-se dócil à vontade d'Aquele que o criou. O Salmo 107,29 comemora: ”O Senhor transformou a tempestade em suave brisa, e as ondas emudeceram”.
Então fica claro que Marcos está agora revelando Jesus como o Senhor, como o próprio Deus. É com autoridade divina que ele ameaçou severamente ao vento e ordenou ao mar: “Cala-te, para quieto!”
Outra curiosidade do Evangelho de hoje é que Jesus, apesar da tempestade, dormia tranquilamente sobre um travesseiro, na popa do barco. Este detalhe nos lembra do profeta Jonas que, em meio ao temporal, dormia profundamente no fundo do navio (Jn1,5). Talvez esse detalhe seja em razão da comparação que Jesus fez dizendo que o único sinal que seria dado à geração que lhe pedia milagres, seria o sinal de Jonas (Mt 12,38-42), ou seja: assim como Jonas permaneceu 3 dias na barriga da baleia, Jesus ficaria 3 dias no ventre da terra, depois ressuscitaria.
Qual seria a diferença entre o sono de Jonas e o de Jesus? Eu diria que Jonas dormiu para fugir do chamado do seu Senhor. Dormiu para esquecer, para negar sua vocação, para desviar-se do seu caminho. Já o sono de Jesus seria manifestação de que estava em dia com o Pai, vinha cumprindo sua missão e agora descansava com toda a confiança, como diz o salmista:
Dentro de mim, tudo se aquietou.
Paz e serenidade vieram para ficar.
Igual à criança depois de mamar:
Dorme tranquila no colo da mãe. (Salmo 130)
Mas a principal mensagem deste episódio da tempestade acalmada situa-se na pergunta que Jesus faz aos discípulos: “Por que estais tão apavorados? Ainda não tendes fé?”
Jesus opõe a fé não à descrença, mas ao medo, ao pavor. Mais tarde ele dirá ao pai da menina ameaçada de morte: “Não tema, apenas tenha fé!” (Mc 5,36). A fé é como uma confiança, uma certeza de que Deus cuida de suas criaturas; de modo especial, daquelas criaturas que representam a sua imagem e semelhança.
Em 2020, naquela memorável sexta-feira santa em que o Papa Francisco atravessou sozinho a Praça São Pedro, ele retomou a narrativa da tempestade e do barco em que os discípulos se apavoraram. A tempestade era a pandemia do covid-19, em seu início. O Papa parou diante do crucifixo e, recordando a sensação de medo que nos vem espontaneamente, orou por toda a humanidade.
Como os discípulos e discípulas, nos sentimos à beira da tragédia, e Jesus nos pede mais fé e menos medo.
É curioso que o texto de Marcos termina com a reação dos companheiros de Jesus: diante da calmaria serena em que o lago se transformou, eles cheios de medo, diziam entre si:
“Quem é esse a quem até o vento e o lago obedecem?” Parece que diante do prodígio da ação de Jesus, o sentimento de medo ainda é maior, o texto grego fala em “fobia”! Mesmo sentimento que vem diante da cura do endemoninhado quando se acalmou (Mc 5,15).
Por que tememos a graça que vem de Deus? Por que ainda nos falta fé? Talvez seja porque a fé exige uma resposta de conversão. Deus faz a sua parte. E nós? O que falta para vivermos como irmãos e irmãs, lutando concretamente contra a desigualdade que transforma a pandemia numa tragédia muito além da natureza? O que falta para vivermos a Fratelli tutti sem temermos nossas pequenas renúncias?
São Paulo, na epístola de hoje, nos alerta: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova.” A nova realidade nos interpela.