25 Junho 2011
"A representação é o regime do resultado. Não ficar preso aí significa que o processo, no terreno da verdade política, conta mais do que o resultado", afirma Alain Badiou, filósofo francês, em artigo publicado no periódico espanhol Publico, 24-06-2011.
Segundo Badiou, "se o movimento se estendesse pela Europa, algo que não devemos dar por certo levaria inevitavelmente a uma fratura do termo "democracia": duas definições antagônicas (ou pelo menos sem concordância razoável) do termo se enfrentariam necessariamente. A fratura da única idéia consensual entre as forças políticas organizadas é uma eventualidade que elas, em seu conjunto, podem legitimamente temer. Pois semelhante fratura lhes faria, em todo o mundo, apresentar a pergunta: "mas, de que democracia se está falando?" Agora, vocês imaginam que nessa eventualidade, eu ponho todos os meus desejos…"
A tradução é do blog Boca do Mangue, 25-06-2011.
Eis o artigo.
Na sessão de 25 de maio de 2011, de seu seminário "O que significa mudar o mundo?", o filósofo francês Alain Badiou fez alusões diretas ao movimento 15-M e forneceu alguns conceitos e conjuntos de distinções muito precisos, pertinentes e orientadores para pensar o que (nos) está se passando.
Gostaria de partir da definição que lhes dei da última vez sobre o que é uma verdade política.
Lembro vocês: uma verdade política é o produto organizado de um acontecimento popular massivo onde a intensificação, a contração e a localização substituem um objeto identidade e os nomes separadores que o acompanham, por uma apresentação real da potência genérica do múltiplo.
Vou pontuar cada elemento dessa definição sumária.
Uma verdade política é (um) produto.
Uma corrente importante da filosofia política sustenta que é uma característica da política ser estranha à noção de verdade e que, desde o momento em que vinculamos a política a uma noção qualquer de verdade começamos a cair na presunção totalitária. Daí se deduz que não há senão opiniões. Vocês vão perceber que aqueles que dizem isso não manteriam, nem por um momento, que na ciência ou na arte não há mais do que opiniões.
Trata-se, portanto, de uma tese específica sobre a política, cuja argumentação remonta a Hannah Arendt, em que a política, disciplina que tem por objeto e desafio o estar juntos, deve se dotar de um espaço pacífico onde possa se abrir para as opiniões díspares e, se há uma verdade, esta, necessariamente, exerce uma opressão elitista sobre o regime escuro e confuso das opiniões. Essa é a tese que impera há trinta anos – desde a instauração do período de reação cujo começo eu localizo nos últimos anos setenta – [1].
O que caracteriza o pensamento político revolucionário é, precisamente, o fato de conceber que há uma verdade na política e que a ação política é, em si mesma, uma luta do verdadeiro contra o falso. Quando falo de verdade política não estou falando de um juízo, mas de um processo: uma verdade política não é "eu digo que tenho razão e o outro está errado", mas algo que existe em seu processo ativo e se manifesta, enquanto verdade, em distintas circunstâncias.
As verdades não são juízos anteriores aos processos políticos que se haveria de verificar, aplicar, etc. As verdades são a realidade mesma enquanto processo de produção de acontecimentos políticos, de seqüências políticas, etc. Verdades, mas sobre o quê? Verdades sobre aquilo que é efetivamente a apresentação coletiva da humanidade como tal – juntamente com a tese de que grande parte da opressão política consiste em sua dissimulação. Quando se decide afirmar que "não há nada mais do que opiniões", é a opinião dominante (ou seja, a que tem os meios de dominação) que vai se impor como consenso ou como marco geral no qual possam estar às outras opiniões.
A verdade política se estabelece em acontecimentos populares massivos.
Não estou dizendo que se reduza a isso: não é certo que uma verdade política não seja em última análise, mais do que uma espécie de momento de revolta ou, como dizia Trotsky, o instante no qual "as massas sobem ao palco da história", coisa que, por outro lado, não acontece todos os dias. Como diz meu amigo Sylvain Lazarus, a política é rara (a política, claro está, enquanto produção, enquanto procedimento da verdade porque, enquanto Estado, está aí constantemente).
Intensificação, contração, localização
Intensificação, no sentido de que depois de um levantamento popular massivo há uma intensificação subjetiva geral, que Kant já havia designado no momento da Revolução Francesa com o nome de entusiasmo. Essa intensificação é geral por ser uma radicalização dos enunciados, das tomadas de posição e das formas de ação, tanto quanto a criação de um tempo intenso (se se está na luta de manhã e de tarde, a noite já não existe, a organização temporal é interrompida, já não sentimos o cansaço ainda que estejamos extenuados, etc.), o que explica o desgaste rápido característico desse tipo de momento. Um estado assim não pode se converter em crônico; cria a eternidade sem ser ele mesmo eterno. Todavia, essa intensidade se abre ainda por um longo período após o desaparecimento do acontecimento que a viu nascer. Quando as pessoas regressarem às suas casas, deixarão atrás de si uma energia que vai ser posteriormente recuperada e organizada.
Contração. A situação se contrai numa espécie de representação de si mesma, de metonímia da situação de conjunto. Durante um tempo essa contração é universalmente reconhecida: qualquer pessoa no mundo sabe que os agrupados na Praça Tahrir pronunciam algo que concerne a todos. É um traço geral que, durante os levantes populares massivos, a "maioria silenciosa" desaparece e toda a luz enfoca na minoria que, por numerosa que seja, segue sendo uma minoria – uma minoria massiva.
Localização. Uma modalidade fundamental de existência de tudo isso é a criação de lugares políticos. Um lugar político é um lugar onde ocorre o acontecimento político massivo que dá existência a um endereço universal. Um acontecimento político não ocorre em toda parte; um acontecimento político ocorre num lugar. Esses lugares podem variar: os lugares políticos do maio de 68 foram edifícios (a ocupação da Sorbonne, a do Odeón, a das fábricas…), que não são a mesma coisa que as praças. As significações, os modos de presença não são os mesmos.
Objeto identidade. O Estado cria as normas que determinam os direitos que confere. O objeto identidade é aquele que tem que se assemelhar o mais possível para merecer certa atenção por parte do Estado. Se somos muito diferentes do objeto identidade também recebemos a atenção do Estado, mas num sentido negativo (suspeita, controle, expulsão). No caso do objeto identidade "francês" (que ninguém sabe exatamente o significado, que de outra forma não existe), o Estado pode fazer revisões drásticas e declarar um belo dia que certas populações, que se pensava serem "francesas" não atendem as condições de similaridade do objeto identidade.
Nomes separadores. Esse termo designa as diferentes formas de diferenciar o objeto identidade do fictício; permite ao Estado separar da coletividade certo número de grupos, apelando assim a medidas repressivas particulares. Podem ir desde "imigrante", "islamita", "muçulmano", "romano" a "jovem do subúrbio" e, no caminho de se tornar, diante dos nossos olhos, "pobre". Afirmo que tudo aquilo que, na França de hoje, é qualificado de "político" por parte do Estado se limita a remover algumas considerações sobre o objeto identidade e os nomes separadores. Um acontecimento popular massivo, quando sucede, tende, por sua natureza, a abolir o objeto identidade e os nomes separadores que o acompanham. O que vem substituí-los é uma apresentação real, é a afirmação de que o que existe são as pessoas que ai estão. Finalmente, devo dizer que eles representam a humanidade inteira, pois aquilo que os move, em sua intensa congregação localizada, tem um significado universal. E isso é algo que todo mundo percebe. Por quê? Porque se trata de um lugar onde, como o objeto identidade fictício é, no essencial, inoperante ou foi abolido, o que atua já não é a identidade, mas os nomes genéricos, ou seja, aquilo que concerne à humanidade em geral.
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Gostaria agora de precisar a relação da localização com a extensão. Com efeito, a todo o mundo tem impressionado o fato de que, nos movimentos recentes no mundo árabe, haja por um lado uma intensidade extremamente localizada e, ao mesmo tempo, uma extensão importante – e que ainda está por se decidir – em seus limites. Quais são os procedimentos dessa extensão [2]? Eu vejo aí três níveis distintos.
A primeira forma de extensão (e a fundamental, do meu ponto de vista) está ligada ao sentimento de que houve uma modificação brutal da relação entre o possível e o impossível. O acontecimento popular massivo cria uma desestatização da questão do possível. Porque na ordem da política, é o Estado que declara o que entra dentro do possível e o que não (e faz isso também mediante mecanismos como o objeto identidade). Essa função é arrebatada do Estado pelo acontecimento popular massivo; são as pessoas reunidas que prescrevem uma nova possibilidade, comprometendo-se com a idéia de que são elas que têm a autoridade de definir o possível. Isso é o que cria as condições de uma extensão. Ou, dito de outra forma, isso é o que ocorre quando todo mundo compreende que já não se está no mesmo regime de delimitação do possível e do impossível.
Por outro lado, está o que poderíamos chamar uma deslocalização subjetiva do lugar, que faz que, inclusive, no local se produza já uma extensão. Aquilo que se diz no lugar político não pretende valer só para um lugar concreto, mas ao contrário. Os espanhóis têm expressado muito bem: "Nós estamos aqui, mas isso é mundial, por isso estamos em todos os lugares". As pessoas se reúnem num local para valer a pena em qualquer lugar. E essa extensão inicial vai ser reapropriada de fora, pelas pessoas que dirão: "Como de qualquer local posso estar aí, vou tratar de fazer o mesmo". Aí tem um vai e vem. Como a subjetividade daqueles que jogaram a questão é já uma subjetividade de extensão universal, num sentido inverso se produz uma identificação entre eles.
O terceiro ponto está relacionado à imitação da forma. A forma das coisas (ou seja, o princípio da localização) vai ser imitada por todo mundo. Por exemplo, hoje em dia não se pode fazer nada se não se ocupa uma praça. Esse ponto é muito mais débil do que os dois precedentes. Sejamos platônicos : a imitação não é o mais forte. Começa sempre pela imitação da forma – Platão diz que a imitação começa pela superfície – quando o que tem que se fazer é o contrário: começar pela interioridade, pela subjetividade.
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Eu gostaria igualmente de ver com vocês a relação entre apresentação e representação. Em minha definição do que é uma verdade política está a expressão: "apresentação real do poder genérico do múltiplo". As tentativas políticas das quais acabo de falar são tentativas de se subtrair à representação. No referido caso espanhol, há uma simultaneidade incrível entre a aparição de uma apresentação real (a reunião da juventude numa praça madrilenha) e um fenômeno representativo (uma vitória eleitoral esmagadora da direita espanhola).
O movimento tem que declarar a vacuidade total do fenômeno eleitoral ("não nos representam") em nome da apresentação [3]. É uma lição: por um lado, a possibilidade de uma verdade política e, por outro, a perpetuação do regime representativo, ocorre em uma espécie de teatralidade (por outro lado já presente em 1848; vide nota 3) de uma forma, ao mesmo tempo, simultânea e separada. É uma síntese disjuntiva de duas cenas teatrais.
Disjuntiva porque através de um acontecimento popular massivo o que se produz é uma separação da representação; o que se sustenta é que não se deve ter por dado o que é simplesmente visível, que precisa saber ser cego à representação. Como disse René Char: "Se o homem não fecha, de vez em quando, soberanamente [4], os olhos, terminaria por não ver mais aquilo que merece ser olhado" (Hojas de Hypnos, fragmento 59).
A representação é o regime do resultado. Não ficar preso aí significa que o processo, no terreno da verdade política, conta mais do que o resultado. Se o movimento se estendesse pela Europa, algo que não devemos dar por certo levaria inevitavelmente a uma fratura do termo "democracia": duas definições antagônicas (ou pelo menos sem concordância razoável) do termo se enfrentariam necessariamente. A fratura da única idéia consensual entre as forças políticas organizadas é uma eventualidade que elas, em seu conjunto, podem legitimamente temer. Pois semelhante fratura lhes faria, em todo o mundo, apresentar a pergunta: "mas, de que democracia se está falando?" Agora, vocês imaginam que nessa eventualidade, eu ponho todos os meus desejos…
Notas:
1.- E que agora podemos vislumbrar o fim…
2.- Podemos assinalar que a comparação com as revoluções européias de 1848 é propriamente fascinante : as congregações marcadas por uma generosidade ampla e ingenua, a extensão numa área cultural (Europa num caso, o mundo árabe noutro), o sentimento de abertura, em que pese as debilidades ou as recaídas aqui ou ali – abertura vazia, ou seja, que não possui ainda a plenitude de sua proposta política, mas que, enquanto abertura, surpreende precisamente por essa mescla de contração e de extensão.
3.- Tem que deixar bem claro que o termo que aqui está fora de circulação é o de esquerda : essa desaparece da cena representativa no momento mesmo em que sucede algo significativo que concerne ao povo espanhol.
4.- "Soberano", i.e., como ato de poder e não como uma enfermidade.
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Alain Badiou e o 15-M: "uma modificação brutal da relação entre o possível e o impossível" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU