Por: Jonas | 13 Novembro 2012
Antonio Negri é filósofo que atravessa as transformações e os debates do século 20 a partir de uma relação especial entre consistência conceitual e militância política. É pensador que rejeita a imagem do intelectual como ‘profeta’ e que, ao mesmo tempo, valoriza a capacidade da multidão heterogênea e dinâmica.
Sua leitura de Marx vai além do Estado como figura organizadora e reatualiza a ideia de trabalho como capacidade para criar, estabelecer vínculos e organizar novos modos de institucionalidade. Essas novas instituições não se baseiam no pressuposto de que o homem seja “o lobo do homem”, mas numa concepção afirmativa e igualitária das capacidades. Na prisão, encontrou em Spinoza seu principal aliado; ali refletiu sobre a solidão e a comunidade. Chegou a dizer que “é possível, talvez, construir o futuro de dentro do cárcere”.
Em tempos em que a política como potência da multidão é o único antídoto aos fundamentalismos – entendidos como imposição de valores transcendentes em todas as ordens –, Negri defende que “a resistência dos corpos produz a subjetividade não numa condição isolada e individualista, mas num complexo dinâmico no qual se concatenam as resistências dos outros corpos”. Assim, liga a resistência contra novas formas de exploração à produtividade dos corpos coletivos e singulares (experiências populares, organizações sociais e diversos modos de associação entre pessoas). O trabalho não pode ser parcializado nem dividido como em outros tempos; por isso, Negri recorre a uma noção ampliada de corpo como capacidade de compor-se para aumentar a potência; e a um novo olhar sobre a inteligência como ferramenta fundamental.
O Comum supõe tanto as riquezas do mundo material como o conjunto da produção social, os chamados bens naturais (conhecimentos, linguagens, códigos, informação, afetos e suas consequências). Se o Comum é condição de toda produção de liberdade e de inovação material, são imprescindíveis novas formas de organização, novas instituições emergentes da multidão, que possibilitem que todos tenham acesso e usem o que seja produzido, além de liberdade de expressão e interação. O controle privado, como o controle público, limitam as possibilidades da esfera comum, na medida que separam capacidades, dirigem os movimentos e distribuem funções a partir de lógicas preestabelecidas, que foram transformadas em credos durante a história da modernidade.
Negri entende que Spinoza é o subsolo da modernidade, porque ali há uma fonte permanente e contínua de ruptura contra a vontade de dominação e suas modalidades do medo e da esperança. Na fonte de ruptura vive a sabedoria de um poder constituinte, como princípio de mudança e transformação do mundo material. Seu caminho operarista, político e filosófico, o qual, dentre outras coisas levou-o ao cárcere e ao exílio, une Maquiavel, Spinoza, Marx e Deleuze, para insistir que só a potência comum é ponto de partida de alegrias imediatamente compartilhadas, a partir da autonomia das redes afetivas, sociais e produtivas. Afirma que o essencial para transformar o próprio em comum é o amor que não cessa de abrir-se a comunidades mais vastas que ‘cada um’ e seus mais próximos.
A entrevista é de Ariel Pennisi e Adrián Cangi, para o jornal argentino La Nacion, publicada no Blog do Rovai, 11-11-2012.
Eis a entrevista.
Qual a importância do conceito de multidão, para pensar as condições políticas do presente e como o senhor avalia a pertinência da noção ampliada de “multidão dos pobres”, segundo seu mais recente livro, em colaboração com Michael Hardt, "Comun. Más allá de lo privado y lo público"?
Quando se fala de “multidão dos pobres”, a primeira referência tem a ver com o nascimento do termo “multidão”. É uma distinção que se deu no marco da Revolução Inglesa, na discussão entre os revolucionários que se manifestam contra a propriedade privada, e os partidários do exército republicano. Os primeiros dizem que representam a “multidão” dos que não têm propriedade; o outro lado diz que representa o “povo”, os que têm como objetivo ter propriedade e a têm. A revolução, claro, decidiu-se a favor da República, quer dizer, dos que têm a propriedade. O ‘outro lado’, os sem propriedade, convertem-se no proletariado que logo ultrapassa o processo de acumulação primitiva e converte-se em classe operária. Desse ponto de vista, há uma dimensão de pobreza, no fato de o vivente viver sem propriedade.
Em que medida a transformação pela qual passou o trabalho, nas últimas décadas, afeta o conceito de “multidão”?
O conceito de multidão tem sua genealogia nesse processo histórico. Atualmente, o processo acontece com a desagregação da classe operária, a qual está ligada à desintegração do trabalho. O trabalho, na medida em que se transforma em trabalho social, resulta num tipo de atividade que se arranca de uma determinada espacialidade específica dos modos tradicionais de produção. Quer dizer, de um lugar ou uma determinação local e, inclusive, de uma determinação temporal, entendidas como lugar da jornada laboral. A medida do trabalho, antes, estava normalmente dada em relação ao espaço de trabalho e à jornada laboral, os quais contribuíam, por um lado, para reproduzir o capital e fazê-lo frutificar; e, por outro lado, para reproduzir o próprio trabalhador. Hoje, essas medidas clássicas explodiram, tanto espacial como temporalmente. Deste ponto de vista, a multidão deveio multidão de trabalhadores precários.
Mas há outro aspecto relacionado a essa precariedade: a potência social e cooperativa do trabalho. A multidão desagrega-se em singularidades que são, antes de tudo, trabalho vivo: trabalho singular e capacidade de produção que se apresenta como cooperação virtual. O problema político atravessa tudo isso e inclui revelar como essa multidão virtual, na qual se contém o Comum, consegue expressar-se.
O senhor fala então de uma dimensão potente do precário?
Sim, exatamente. Há uma dimensão potente no precário. Dá-se de um ponto de vista político: a multidão contém a cooperação virtual. Para a cooperação, é importante ver o problema da transição como verdadeiro dilema político. Na Argentina, é problema que foi tratado em sentido forte. Mas onde a transição, como em várias latitudes, não foi problematizada seriamente, ainda se tenta falar de transição, sem considerar a força do fascismo. O sistema capitalista tem absoluta necessidade de manter, seja como for, uma continuidade. Aconteceu no Chile. Mas esse é problema filosófico de primeira ordem: entender o que é a transição e como afeta a potência social produtiva.
Na Espanha, essa transição está acontecendo agora pela primeira vez, desde a derrota da República: aparece hoje no movimento dos “Indignados”, como reação que redescobre a velha República e entrevê a possibilidade crítica de continuidades potentes. Raciocinar sobre a potência não é racionar sobre alguma ideia, não é uma ontologia abstrata. Raciocinar sobre a potência é necessidade de uma ontologia concreta, que sempre se apresenta como histórica, que tem natureza plenamente produtiva, nunca vazia.
O que significa, por onde passa, então, a potência dessa “multidão dos pobres”?
A multidão proletária é livre, mas, ao mesmo tempo, reúne-se, une-se, porque a solidão é problema real. A pobreza não é déficit de ser; o verdadeiro déficit de ser é a solidão. É imperioso superar a solidão. A pobreza tem a enorme força de ser trabalho vivo. O pobre é um ser-aí, vivo e efetivo, que se apresenta como índice de associação, de cooperação, de construção. E de construção de ser, porque o ser pode ser construído; o ser não preexiste como fundo. O ser não está sempre por trás; o ser, em cada momento, encontra-se “aí”, existente no momento oportuno em que se rompe a repetição monótona do tempo. É a composição dos afetos, que Marx recupera de Spinoza.
Depois da crise argentina de 2001, apareceu uma tensão crescente entre o Estado e os movimentos sociais, os espaços sensíveis ligados aos modos de fazer e de ser, que reclamaram certa autonomia. Como o senhor vê essa relação? Em que sentido se pode pensar a emancipação?
Quando falo de emancipação, não falo num sentido iluminista, nem do modo que me parece que seja a mistificação atual da palavra, ou seu sentido escatológico. Benjamin foi pensador radical, mas foi usado de modo muito ambíguo. Toda essa “escatologia” hebraica e paulina que nos foi oferecida e nos domina no campo teórico, na tentativa de definir a emancipação é o prelúdio transcendente de uma libertação utópica. É preciso recuperar a emancipação em território material.
Com isso, abre-se uma série de perguntas: Como faz o homem endividado, para emancipar-se? Como faz o homem mediatizado, para emancipar-se? O que é representação política emancipada? Que significa a luta de classes? Esses são os grandes problemas da emancipação de nosso tempo. Não há emancipação como conceito derivado da hegemonia, ou simplesmente como proposta simbólica. A emancipação é prática política efetiva de resistência e criação cooperativa.
Como, então, o senhor vê o movimento das singularidades e a continuidade do sistema de representação?
O problema é que a Constituição permaneceu igual. No presente, é imprescindível perguntar: o que significa modificar a Constituição? O que quer dizer introduzir na Constituição, além do privado e do público, também o Comum? O que quer dizer introduzir a participação no lugar da representação? O que significa a gestão comum das empresas, dos bens comuns, do saber, do trabalho? Essas são as coisas concretas que interessam. São as coisas que se apresentam à multidão dos pobres e dos indignados – de fato, apresentam-se a todos – como coisas fundamentais, embora às vezes os problemas sejam tratados como se fossem caricaturas.
Não se pode falar de singularidades, se não se fala dos novos modos de constituir o saber em relação com as tecnologias, com as finanças, com as forças de trabalho em transformação. Vale para Deleuze, para Virno, como para nós. Falamos de uma produção de mais-valia que atravessa a inovação dos processos de linguagem. É o que temos de problematizar. Em torno disso se devem construir as estruturas políticas.
Que relação o senhor encontra entre o conceito mais contemporâneo de “biopolítica” e o conceito mais clássico de “força de trabalho”?
Força de trabalho é conceito que, evidentemente, vive no interior da noção de capital. Ao mesmo tempo, constitui um problema político que atravessa a vida. Seu movimento é, por um lado, o capital variável; e, por outro, o trabalho vivo. O próprio conceito de força de trabalho deve romper-se de dentro para fora, para devir trabalho vivo independente. Esse conceito de trabalho vivo independente é fundamental, porque removeu toda a temática operária, quando aconteceu na Europa, há 30 ou 40 anos. Vale a pena, então, perguntar-se o que é a independência do trabalho vivo. Esse é o problema que está no coração do pensamento de Gilles Deleuze e de Paolo Virno, que, adiante, nas obras deles, adquire forma filosófica. Sim, o pensamento de Giorgio Agamben aborda esse tipo de problemas, mas em termos negativos. Em vez de “trabalho vivo”, Agamben fala de “absoluta pobreza”; em vez de força de trabalho organizada, fala de “regra”. Assim recorre à abstração de nível máximo, embora o problema permaneça onde estava.
Em nosso caso, “libertar” não é mais um problema místico ou escatológico: é problema de reforma constitucional, um problema de definir os regimes de propriedade, de tratamento dos regimes monetários, bancários, financeiros. A filosofia crítica contemporânea tem de abandonar a filosofia ocidental, nos seus níveis máximos de abstração. A filosofia pode ser dada por morta, se pretende pensar os problemas das formas de resistência e de liberdade, de modo negativo e abstrato. Para a ética e para a política, é necessário voltar às palavras que significam e que afetam as práticas em processos históricos de longa duração.
Falávamos antes de “emancipação”. Como o senhor vê a obra de Jacques Rancière?
Mantenho ótima relação com o pensamento de Rancière, tanto de um ponto de vista filosófico, como de um ponto de vista pessoal. Rancière é a pessoa mais contraditória do mundo. Por um lado, chega a uma definição da política, para pensar a distribuição do sensível, a qual, simultaneamente supõe um regime da police e um regime da pólis. É exatamente o que eu teorizo como poder constituinte e poder constituído (na linguagem da tradição, podem ser pensados como potentia e potestas). Rancière também faz uma história que é extremamente plena, cheia de conteúdos históricos determinados: a dos primeiros socialistas que construíram uma relação política intensa, como, por exemplo, em seu livro "A noite dos proletários" ([1988] Lisboa: Antígona, 2012). Mas, por outro lado, parece, ao meu ver, negar a história, quando teoriza em forma abstrata modelos políticos muito gerais, a partir de problemas sensíveis. Quando alguém se encontra com as duas partes, a coisa aparece como completamente contraditória, mas Racière a resolve, à sua maneira, nas abordagens estéticas.
Minha impressão é que, na estética, ele junta esses problemas numa dupla completamente separada: por uma parte, exalta o momento da política; pela outra, o momento da genealogia, ou da história desconstrutiva. Mas entendo que não consegue juntar uma à outra. Digamos que A noite dos proletários é a solução para seu problema teórico.
Como o senhor pensa, na atual conjuntura global, os problemas que se veem na Europa e na América Latina?
Entre 2004 e 2005 escrevi, com Guiseppe Cocco, um livro intitulado "Glob(AL): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada" (Rio de Janeiro: Record, 2005), no qual fazíamos uma previsão, com exemplos provavelmente não muito adequados, mas bastante precisa, porque víamos que a América Latina estava saindo da dependência. Estava superando a dependência e entrando na ordem global. Você nem imagina as coisas que nos disseram! “Você nega o imperialismo, quer destruir os movimentos subversivos”. Respondo que “O problema é reconhecer que estão, sim, saindo da dependência. Organizem-se para mobilizar os movimentos sociais para dentro do Estado e contra o Estado”.
Mobilizá-los para dentro e contra o Estado?
Sim, para dentro e contra. O problema da liberdade política dos movimentos sociais que aspiram a uma democracia radical é sempre esse. Mas é preciso estar muito atento, porque essa é também a regra dos oportunistas: “metem-se dentro, para depois fazer outra coisa”. Para dentro e contra não são dois movimentos: é um só movimento simultâneo.
Tenho tido contatos com quase todos os países da América Latina, nos últimos anos, e a cada dia é mais evidente uma transformação radical. No Chile, por exemplo, era inimaginável uma revolta de estudantes como a que se viu ano passado e que permanece muito presente nas linhas que abriu. É a lucidez de rapazes e moças de 18 anos? São de uma maturidade política surpreendente. Houve uma transformação antropológica na América Latina nos últimos 10, 15 anos, que afetou o exercício político. A vitória de Lula, ou o ano 2001 argentino são dados fundamentais para avaliar uma irrupção transformadora. E, por outro lado, havia toda uma linha da esquerda que olhava na direção de Chávez.
Sempre fui muito realista sobre os processos que considero importantes. O Brasil, por exemplo, começa a reconhecer-se, não na dependência, mas na interdependência global, e, nesse contexto, está resolvendo seu imenso problema racial que, contudo, ainda existe. A favela começa a ser um lugar que não está fora da cidade, fora da pólis. Começa a haver um "Welfare": uma situação de assistência generalizada, uma “escola” que começa a se abrir. Esses são os grandes problemas que a América Latina está enfrentando.
Há companheiros que dizem que o grande momento já foi superado e que, agora, estamos entrando num momento de estabilização, que a crise mundial opera de tal modo, que consegue meter paus na engrenagem, bloquear a imaginação que se tem de aplicar à política. Não sinto que se possa esgrimir juízo definitivo.
Acredito que a América Latina deu um grande passo e foi, inclusive, mestra de trajetórias revolucionárias. Penso nisso, nem tanto pelos Zapatistas, mas, mais, pelos movimentos sociais argentinos e brasileiros. Essa é a conjuntura em que se dá a novidade da relação movimentos sociais-governos, que corresponde a uma situação geral de uma crise do Direito. Hoje já não é possível buscar um Direito que funcione de modo dedutivo: ius publicum europaeum. É preciso inventar jurisprudência a partir do poder constituinte da multidão.
O Direito parece funcionar só sobre questões particulares?
É. Só funciona sobre questões que têm a ver com elementos de contratos, de consenso, de conflito. Se se vê o fato de que alguns movimentos sociais entram no campo da ação governamental, isso não significa que os movimentos venceram; significa que os governos sentiram a necessidade de abrir-se. Quanto a isso, também, é preciso atenção máxima, porque, ao exaltar um aspecto, pode acontecer de descuidarmos do outro lado do problema. Seja como for, tem havido sucessos muito importantes na América Latina que seria necessário ampliar.
A Europa, por sua vez, está em situação completamente diferente. A Europa está completamente bloqueada, fixada numa série de rigidezes físicas e intelectuais que tornam extremamente difícil o movimento de unir-se em torno da União Europeia; e, nesse contexto, retoma-se o desenvolvimento da luta de classes. O problema aí pode ser resumido em algumas perguntas: quais são as condições da luta de classes? Quais são as condições pelas quais nos libertamos desses patrões?
Insuportável é ver que tomam o dinheiro de cada trabalhador e o metem no bolso, e você, o trabalhador, vira mendigo. Todos temos de fazer essa revolução. Algum dia teremos de fazê-la. Toda a inteligência tem de ser mobilizada para resolver esse problema; o resto são estupidezes.
Apesar da miséria europeia e, sobretudo, da miséria italiana, vê-se um momento muito prolífico no pensamento italiano. Talvez se possa dizer que o pensamento italiano é mais potente hoje, na América Latina, que na própria Europa…
Hardt e Virno editaram, em meados dos anos 1990, um livro formidável, com contribuições fundamentais: "Radical Thought in Italy: A Potential Politics" (1996). Incluía um capítulo de Virno, com o título de “Do You Remember Counterrevolution?” [Lembram-se da contrarrevolução?]. Nesse capítulo, ele joga com o fato de que, depois de 1848, fazia-se revolução na França e pensamento na Alemanha; e diz que, então, se fazia pensamento na França e revolução na Itália. É ideia bem bonita, não? Quando se puder dizer que se faz pensamento na Itália e revolução na América Latina, talvez tenhamos completado o movimento.
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“A pobreza não é déficit de ser; o verdadeiro déficit de ser é a solidão”, afirma Antonio Negri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU