Por: Cesar Sanson | 15 Outubro 2012
"O governo do PT vem destruindo sistematicamente todo o cabedal de leis que protegiam os índios. Dilma tem este grande projeto de desenvolvimento. O desenvolvimento não é contrário aos índios. É preciso respeitá-los, respeitar os ribeirinhos, respeitar os quilombolas, chamá-los para conversar respeitando seus interesses. O governo do PT não conversa com ninguém. Por isso os índios no Brasil estão tão revoltados. O governo quer fazer barragens a ferro e fogo. O governo não pergunta", afirma o sertanista Sydney Possuelo, ex-petista, em entrevista à revista Época, 14-10-2012.
Segundo ele, "conheci todos os líderes da esquerda brasileira. Só entendem de operário e camponês. Não sabem nada de índio. Índio não dá voto. Não representa ninguém. Índio serve para quê? Para o governo do PT, índio é um obstáculo ao desenvolvimento".
Eis a entrevista.
Por quanto tempo o senhor foi sertanista?
Por 42 anos. Comecei muito jovem. Os sertanistas conhecidos na época eram os irmãos Villas-Bôas, Orlando (1914-2002) e Claudio (1916-1998). Eles tinham feito muitas expedições e contatado índios isolados. E eu, jovenzinho, era encantado por essas coisas. Buscava aventura. Em 1957, descobri onde Orlando morava em São Paulo e fui pedir para trabalhar com eles. Comecei a auxiliá-los na preparação das expedições, comprando material e levando ao Xingu. O material era levado pelos aviões do Correio Aéreo Nacional. A viagem demorava dois dias a bordo de um Douglas C-47.
Como era o contato com os índios isolados naquela época?
Os sertanistas da FUNAI seguiam a metodologia criada há 100 anos pelo marechal Rondon. Ele era bem-intencionado, mas sua política de apropriação dos índios ao território nacional foi trágica. Pacificação era o nome dado à aproximação com as tribos isoladas, como se elas estivessem em guerra com o homem branco, como se não estivessem em paz com si mesmas no coração da selva. Rondon contatou muitas tribos. Quase todas desapareceram pouco depois do contato. Os índios morreram de gripe e tuberculose. Quem não morreu de doença foi morto por garimpeiros ou colonos.
O senhor chefiou o setor de índios isolados da FUNAI. Como era feito o contato com etnias isoladas?
Entre os anos 1970 e 1980, fiz contato com sete etnias isoladas. Uma delas são os índios araras. Era a época da construção da Rodovia Transamazônica. Perto de Altamira, no Pará, os araras eram arredios e guerreiros. Havia muitos casos de conflito com mortes entre os araras e colonos, operários das construtoras e o pessoal da FUNAI. Havia três grupos de araras, num total de 200 índios. A primeira coisa que fiz foi vacinar todo meu pessoal contra as doenças que poderiam infectar os índios. A segunda coisa foi proibir a entrada de qualquer um na terra dos índios. Eles foram deixados em paz. Assim, pude iniciar a aproximação. Levamos seis meses para contatar o primeiro grupo, dois anos para o segundo e oito anos para conhecer o terceiro grupo, em 1980. Este último grupo era pequeno e arredio. A maioria dos índios já havia morrido. Sobraram umas 25 pessoas, entre as quais oito homens adultos, os que atacavam na região.
O que aconteceu depois?
Os araras tinham nos recebido em suas ocas e queriam saber onde ficavam as nossas. Não podia levá-los a Altamira. Temia que adoecessem ou fossem mortos por parentes de quem eles mataram. Mas os índios insistiam em ir à casa dos brancos. Por três vezes, saíram da aldeia e foram pegos andando na Transamazônica. Por fim, levei-os a Altamira. Mas antes lavei as paredes do posto da FUNAI com creolina e cerquei tudo, para impedir que os índios entrassem em contato com a população local. Não deu certo. Os araras deram um jeito de abrir o portão e foram andar na cidade.
Eles adoeceram?
Num primeiro momento, não. Levei-os de volta à reserva e fiquei com eles uma semana. Como ninguém adoeceu, permiti que partissem. Os 60 índios se dividiram em três famílias, e cada qual foi para seu lado. Alguns permaneceram conosco. Dois dias depois, caíram doentes. Entre os índios, bastam 48 horas para uma gripe virar pneumonia. Eles morrem em dois dias. Depois de medicá-los, dividi meus homens em três equipes e fomos atrás dos outros índios. Levou três dias para achar duas famílias. Todos estavam doentes, muito fracos, quase morrendo. Não queriam tomar injeção. Apliquei soro fisiológico em mim para eles aceitarem. Levei outros dois dias para alcançar a terceira família. Uma menina, um adulto e uma mulher tinham morrido. Achamos o corpo da mulher caído na mata, em estado de decomposição. Uma menina pequena, sua filha, mantinha-se colada ao corpo da mãe e insistia em tentar mamar no peito. Salvamos a criança.
Como vive a tribo hoje?
A situação é muito ruim. O alcoolismo se alastrou. Quem não morreu virou alcoólatra. Os poucos que continuam saudáveis foram inseridos no estrato mais baixo da sociedade. Agora, o governo quer tirar suas terras para fazer a hidrelétrica de Belo Monte. Essa é a história trágica das tribos contatadas.
Esse episódio levou o senhor a acabar com a política de contato com as tribos isoladas?
Essa ideia já estava na minha cabeça, pois tinha presenciado muitas tragédias semelhantes. Queria que aquela fosse a última. Voltei a Brasília e convenci o então presidente da FUNAI, o atual senador Romero Jucá (PMDB), a manter as tribos isoladas do jeito que estavam. A nova política da FUNAI, implantada em 1986, visava proteger essas tribos. Era necessário saber onde viviam, demarcar suas terras e estabelecer um sistema de vigilância para impedir que garimpeiros, seringueiros ou colonos invadissem a reserva.
O senhor saiu do setor de índios isolados da FUNAI em 2OO6.
Saí, não. Fui defenestrado. E me jogaram pela janela. Fui demitido pelo presidente da FUNAI, Mércio Gomes, indicado por Lula em 2003. Era 2006, e eu estava na fronteira do Suriname quando um jornalista me telefonou para repercutir uma declaração de Mércio. Ele dissera que os povos indígenas tinham terra em demasia. Respondi que essa frase a gente escuta de madeireiro, de seringueiro, de político, de todos os que roubam as terras dos índios, jamais de um presidente da FUNAI. Dois dias depois, fui demitido.
Qual foi sua reação?
Fui procurar o ministro do Interior, ao qual a FUNAI era subordinada, apenas para entender que minha demissão não era um ato isolado, mas uma decisão de governo. Não comungava das ideias do Partido dos Trabalhadores.
O senhor sobreviveu ao governo Juscelino, à ditadura e à redemocratização.
Não sobrevivi ao PT. Nunca me filiei a nenhum partido. Sempre fui PT de coração, e todas as vezes que o Lula se candidatou votei nele. Até que foi eleito. Foi depois disso que comecei a rever minha posição. Após dois anos de governo, virei antilulista. Em parte pelas falcatruas que a gente vê por aí, como o mensalão. Mas sobretudo por causa da política deste governo com relação aos índios. Lula prometeu um monte de coisas e não fez nada. Depois veio a Dilma, e a coisa ficou pior. O governo do PT vem destruindo sistematicamente todo o cabedal de leis que protegiam os índios. Dilma tem este grande projeto de desenvolvimento. O desenvolvimento não é contrário aos índios. É preciso respeitá-los, respeitar os ribeirinhos, respeitar os quilombolas, chamá-los para conversar respeitando seus interesses. O governo do PT não conversa com ninguém. Por isso os índios no Brasil estão tão revoltados. O governo quer fazer barragens a ferro e fogo. O governo não pergunta.
Um exemplo é a hidrelétrica de Belo Monte?
Exatamente. O governo decide e pronto. Se quem protesta é branco, é retirado à força. Se for índio ou quilombola, é simplesmente ignorado.
Quando voltar ao Brasil, o senhor vai fazer o quê?
Voltarei em 2013. Neste governo petista, lugar para mim não tem. Se tivesse, não aceitaria. Conheci todos os líderes da esquerda brasileira. Só entendem de operário e camponês. Não sabem nada de índio. Índio não dá voto. Não representa ninguém. Índio serve para quê? Para o governo do PT, índio é um obstáculo ao desenvolvimento.
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“Conheci todos os líderes da esquerda brasileira, só entendem de operário e camponês, não sabem nada de índio” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU