27 Setembro 2018
Por que excluir pessoas, com o pretexto de que elas não seguem as regras instituídas? Não são as regras que primam... O essencial é seguir a Cristo.
A reflexão é de Raymond Gravel (1952-2014), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 26° Domingo do Tempo Comum - ciclo B (30 de setembro de 2018). A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Num 11,25-29
2ª leitura: Tg 5,1-6
Evangelho: Mc 9,38-43.45.47-48
No domingo passado, fomos convidados a acolher o pequeno, o pobre, a criança e a nos tornar servidores de todos. Hoje, somos convidados a não excluir àquele e àquela que vive o evangelho de outra maneira e que não faz parte do nosso grupo, da nossa Igreja. Não é questão de reservar Deus para alguns, para os escolhidos, para as elites. Não é também questão de fixar Deus a uma religião, a um grupo, a um sacerdote, a uma igreja. Não é questão de se enriquecer enquanto os pobres estão na miséria. Quando nos dirigimos a Deus, à sua Palavra, quando aderimos aos ensinamentos do Cristo do evangelho, o Espírito criador do novo, da novidade, nada nem ninguém pode impedi-lo.
O evangelho deste domingo nos diz três coisas:
Ninguém é proprietário de Deus ou de Cristo
“João, um dos doze (então um apóstolo, um bispo, um dirigente, um responsável da Igreja), disse a Jesus: Mestre, vimos um homem que expulsa demônios em teu nome. Mas nós lhe proibimos, porque ele não nos segue” (Mc 3,38). O evangelista não diz: Ele não faz parte dos que te seguem, mas nós te seguimos. Que pretensão! Não é mais a fé em Cristo o que conta: é a fé nos apóstolos o que João reivindica. Uma palavra como essa se atualiza facilmente hoje. Os dirigentes da Igreja do século I se parecem estranhamente com os apóstolos da atualidade e com os responsáveis da nossa Igreja.
Quando no alto da nossa grandeza se fala que o mundo está perdido porque ele abandonou a autoridade da Igreja, nos apropriamos de Deus como se ele nos pertencesse. E ainda, as nossas sociedades laicas que se inspiram nos valores cristãos de abertura, acolhida, respeito, dignidade, igualdade, tolerância e justiça estão mais próximas de Deus e da sua Palavra do que estamos nós mesmos. Pessoalmente, quando eu escuto alguns dirigentes de Igreja condenar as pessoas que defendem os homossexuais, os divorciados que casam novamente, as mulheres que abortaram, os feridos da vida, eu me pergunto: Quem se acham que são? Eles se assemelham aos apóstolos do Evangelho que querem impedir que as pessoas ajam em nome de Cristo.
Infelizmente, há muito tempo, na Igreja, decidiram em nome de Deus, impondo-se aos crentes, doutrinas, princípios, regras que favoreceram muito mais a injustiça, a exclusão, a intolerância, a desigualdade... Colocando a doutrina antes do evangelho, perderam-se os fundamentos mesmos da nossa fé cristã que deve expressar-se no respeito ao outro, na acolhida incondicional, na justiça, na igualdade, na abertura, na tolerância, no perdão, na misericórdia, no amor gratuito, na dignidade de todos, na confiança e na esperança. O evangelho deve preceder todas as doutrinas; caso contrário, não é mais o evangelho. É a Cristo que devemos seguir e não aos apóstolos. Os apóstolos devem nos conduzir a Cristo. E se a doutrina cria excluídos, é preciso aboli-la, modificá-la, adaptá-la.
Já no Antigo Testamento, sabia-se que Deus não pertencia a ninguém. No extrato do livro dos Números que temos hoje, Moisés achou que a sua carga era demasiado pesada, mais ainda porque o povo gritava o tempo todo. Moisés forma, então, um conselho de sábios, setenta pessoas que são convidadas a entrar na Tenda do Encontro, o templo, a Igreja do seu tempo, para uma celebração da Crisma onde o Espírito de Deus descerá para que eles se tornem profetas e que possam partilhar a tarefa de Moisés. Mas eis que dois dos setenta não vão à celebração; Eldad e Medad; eles ficam em casa. Porém, o autor do livro dos Números nos diz que eles também receberam o Espírito de Deus, mesmo não estando presentes na celebração da Crisma. Então, Josué, o servidor de Moisés, interveio: “Moisés, meu senhor, proíba-os de fazer isso“ (Nm 11,28). Como se Deus não pudesse mais dar seu Espírito sem passar pela autoridade de Moisés. Conhecemos a resposta de Moisés: “Você está com ciúme por mim? Oxalá todo o povo de Javé fosse profeta e recebesse o espírito de Javé!” (Nm 11,29).
Trabalhar para Cristo é segui-lo
A resposta de Jesus ao apóstolo João: à pessoa que trabalha para mim “não lhe proíbam, pois ninguém faz um milagre em meu nome e depois pode falar mal de mim. Quem não está contra nós, está a nosso favor” (Mc 9,39-40). A resposta de Cristo à Igreja atual é a mesma que a de João: a família reconstituída, o casal de divorciados unido novamente que educa seus filhos segundo os valores do evangelho trabalham por Cristo; eles são Igreja também. O homossexual que se engaja em nome da sua fé cristã para fazer o mundo mais justo e mais fraterno trabalha por Cristo; ele é Igreja também. O padre que vive um relacionamento amoroso e que trabalha bem no seu ministério trabalha por Cristo; ele é Igreja também. As mulheres que foram ordenadas sacerdotes e que estão ao serviço de suas comunidades cristãs trabalham por Cristo; elas também são Igreja. Então, por que excluir essas pessoas, com o pretexto de que elas não seguem as regras instituídas? Não são as regras que primam... O essencial é seguir a Cristo.
Pode ser que mesmo essas pessoas sejam mais profetas do que os que são oficialmente, segundo as regras da instituição. A primeira leitura nos diz isso. O autor do livro dos Números salienta, falando das sessenta e oito pessoas que foram à celebração para receber a Crisma: “Quando o espírito pousou sobre eles, puseram-se a profetizar; mas, depois, nunca mais o fizeram” (Nm 11,25). No fundo, não é porque tenham seguido as regras e respondido aos critérios de seleção que eles se tornaram automaticamente profetas. É pelas suas ações que se reconhecem os verdadeiros profetas. Ainda hoje isso é assim. Há casais reconstituídos que são maiores sinais de amor do que alguns casados que estão ainda juntos e que não se amam de verdade, assim como há muitas pessoas que se engajam em projetos sociais e que são mais cristãos do que muitos outros que vão à igreja todo domingo. Lembro as observações dos juízes da Corte Suprema do Canadá quando decidiram sobre o casamento gay... As suas observações estavam muito mais próximas do evangelho do que as que vinham do Vaticano. É incrível! Mas é a realidade!
Aviso aos dirigentes da Igreja
O evangelista Marcos avisa a pessoa que rejeita, condena, exclui um pequeno, um pobre, um ferido pela vida. Tal aviso se dirige primeiramente aos dirigentes da Igreja, porque só eles podem rejeitar, condenar e excluir os pequenos; os cristãos comuns não têm esse poder: “E se alguém escandalizar um destes pequeninos que acreditam, seria melhor que ele fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada no pescoço” (Mc 9,42). É bastante dura essa sentença! É a maneira forte dos Hells Angels. Se se aplicasse hoje, eu penso que nos surpreenderíamos de ver algumas pessoas no fundo do oceano.
E lá, Marcos fala dos três membros que podem nos ajudar a fazer a nossa missão ou que podem nos atrapalhar e nos impedir de assumi-la: a mão, o pé e o olho...
– A mão, para partilhar ou para guardar.
– O pé, para ir ao encontro do outro ou para se deter e não avançar mais.
– O olho, para ver o outro, abrir-se à realidade, acolher e comunicar-se com ele, ou o olho para fechá-lo ao outro, julgá-lo, condená-lo e excluí-lo.
O que Marcos nos diz, no fundo, é que se os membros não nos ajudam a levar adiante a nossa missão, seria melhor perdê-los para não nos perder a nós mesmos.
Finalizando, uma palavra sobre a segunda leitura de hoje, a carta de Tiago, em que o autor nos diz que temos de ficar atentos à riqueza: ela pode nos fechar sobre nós mesmos, nos impedir de partilhar, nos tornar injustos com os outros: “Vejam o salário dos trabalhadores que fizeram a colheita nos campos de vocês: retido por vocês, esse salário clama, e os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidosdo Senhor dos exércitos” (Tg 5,4). “Vocês tiveram na terra uma vida de conforto e luxo; vocês estão ficando gordos para o dia da matança!” (Tg 5,5). “Vocês condenaram e mataram o justo, e ele nãoconseguiu defender-se” (Tg 5,6).
Para terminar, eu gostaria de simplesmente partilhar com vocês a reflexão do exegeta francês, Jean Debruynne: “Imediatamente, o grupo dos Apóstolos, por boca de João, reclama a propriedade exclusiva de Jesus. Eles querem a exclusividade dos direitos autorais sobre os fatos e os gestos de Jesus. Eles pretendem ser os únicos que podem emitir o passaporte, a carteira de identidade cristã. Jesus, pelo contrário, lhes anuncia a desapropriação. Querer fechar o evangelho é querer impedi-lo de ser o que realmente é: o evangelho. O Espírito de Deus é livre. Ninguém poderá obrigá-lo a seguir a via hierárquica. O problema dos Apóstolos é excluir. O de Jesus é chamar e ouvir”.
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