12 Setembro 2012
"Em lugar dos anunciados 100 mil a 150 mil genes, descobrimos que tínhamos pouco mais de 20 mil, quase o mesmo número de um vermezinho chamado C. elegans, que mede apenas 1 mm. Mais recentemente, descobrimos que perdemos até do tomate, que tem mais de 30 mil genes. Termos menos genes que o tomate é inaceitável, concordam? Era óbvio que nosso genoma, com toda a complexidade do ser humano, não podia ser explicado por esses 21 mil genes, que representam só 2% do nosso genoma. Qual é o papel dos outros 98%?" afirma Mayana Zatz, geneticista e professora no Instituto de Biociências da USP, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 09-09-2012.
Eis o artigo
Foi notícia em todos os jornais: mais de 400 cientistas de 32 laboratórios anunciaram no dia 6 de setembro o projeto Encode (do inglês encyclopedia of coding elements, ou enciclopedia de elementos codificadores), nove anos depois do anúncio do término do projeto Genoma Humano. Para dizer a verdade, para nós que trabalhamos com doenças genéticas, descobrir que as mutações ou erros nos genes frequentemente não são determinísticas, e que o DNA que era chamado injustamente de "lixo" (junk DNA) tem na realidade um papel importante, não foi surpresa.
Desde o fim da década de 80, quando começamos a identificar as mutações que causam doenças genéticas, observamos que pessoas portadoras do mesmo erro genético podiam ter quadros clínicos completamente diferentes. Os exemplos são inúmeros. Lembro-me de uma família com vários irmãos afetados por uma forma de distrofia muscular, que causa a degeneração progressiva dos músculos e uma fraqueza crescente. Conseguimos descobrir qual era a mutação que causava o problema naquela irmandade. Mas, enquanto uma das irmãs mais novas havia perdido a capacidade de andar aos 20 anos e dependia de uma cadeira de rodas para se locomover, a irmã mais velha conseguia andar independentemente depois dos 50. Segundo ela, isso se explicava por sua fé e orações.
Outro exemplo que me marcou era de uma família com vários afetados por uma outra forma de distrofia muscular. Para descobrir qual era a mutação coletamos sangue de todos os familiares. Como alguns moravam no Nordeste, combinamos que iriam nos mandar o sangue e viriam para a consulta após termos o resultado. Depois de algumas semanas, conseguimos identificar qual era o gene responsável por aquela patologia. Todos os afetados tinham uma mesma mutação em um gene que já havia sido descrito como responsável pela degeneração muscular. Encontramos a mesma mutação em dois dos parentes que viviam no Nordeste e, como combinado, os convocamos para uma consulta, já com o relatório pronto descrevendo o resultado do exame genético. Teriam finalmente a explicação para sua fraqueza muscular, pensei.
Entretanto, qual não foi nossa surpresa ao ver que os dois, já com mais de 40 anos, eram fortes e saudáveis! Jogavam futebol, conseguiam correr e pular sem nenhuma dificuldade. Contaram-nos que haviam fornecido amostras de sangue para colaborar com a pesquisa, para ajudar os parentes afetados. Escondi o relatório em uma gaveta, envergonhada. Era mais uma prova de que muita coisa poderia acontecer no nosso genoma muito além dos genes. Como explicar que pessoas com a mesma mutação podiam ter quadros tão diferentes? Era uma pergunta que nos perseguia muito antes do início do projeto Genoma Humano.
Em 1990 foi iniciado o projeto, que tinha como objetivo identificar até 2005 todos os genes responsáveis por nossas características hereditárias. Será que ele nos forneceria as respostas para essas questões? As apostas eram que tínhamos entre 100 mil e 150 mil genes. Surpreendentemente, em 2003, dois anos antes do esperado, foi anunciado o término do Projeto Genoma Humano. Tive o privilégio de estar em Cancún, México, quando o dr. Francis Collins, um dos cientistas responsáveis por esse projeto, anunciava o grande feito: "We did it, we did it", repetia, radiante. E daí? Qual era a importância daquilo? Logo começaram as decepções. Em lugar dos anunciados 100 mil a 150 mil genes, descobrimos que tínhamos pouco mais de 20 mil, quase o mesmo número de um vermezinho chamado C. elegans, que mede apenas 1 mm. Mais recentemente, descobrimos que perdemos até do tomate, que tem mais de 30 mil genes. Termos menos genes que o tomate é inaceitável, concordam? Era óbvio que nosso genoma, com toda a complexidade do ser humano, não podia ser explicado por esses 21 mil genes, que representam só 2% do nosso genoma. Qual é o papel dos outros 98%? Como explicar a discordância clínica em pessoas portadoras da mesma mutação supostamente patogênica? Se já desconfiávamos que muitas das informações responsáveis pela enorme complexidade do ser humano não estariam nos genes, mas no imenso "deserto" entre eles, agora tínhamos a certeza.
Em 2003, foi iniciado o projeto Encode, uma continuação do Genoma Humano, que acaba de ser anunciado, confirmando nossas suspeitas. Os cientistas acreditam que 80% do nosso genoma tem atividade, tem alguma função. Mas isso é só um começo. De acordo com Ewan Birney, um biologista computacional do Reino Unido, isso que acaba de ser anunciado talvez seja só 10% do que ainda resta descobrir. Sempre defendi que esse DNA que está entre os genes é um material genético muito importante. Não podíamos classificá-lo como lixo só porque sua função não era ainda conhecida. E é justamente isso que está mostrando o gigantesco projeto Encode. Ele poderá revolucionar não só nossos conhecimentos acerca do funcionamento do nosso genoma, mas também o tratamento de inúmeras doenças genéticas. Será que o projeto Encode vai nos dar novas pistas para descobrir finalmente por que pessoas portadoras da mesma mutação, muitas vezes pertencentes à mesma família, podem ter quadros tão discordantes? Entender qual é o mecanismo que protege algumas pessoas dos efeitos deletérios de uma mutação poderá abrir novas perspectivas de tratamento para inúmeras doenças.
Por um lado, entender nosso genoma será muito mais complexo. Os cientistas identificaram 4 milhões de variantes ao longo do nosso genoma que têm função regulatória e controlam o funcionamento dos nossos genes. São essas variantes que controlam os genes que vão ser ligados (ativados) ou desligados (silenciados), se eles vão expressar uma quantidade maior ou menor de um produto. Os pesquisadores analisaram também quase 150 tipos celulares para verificar como a expressão do genoma difere entre uma célula e outra, o que diferencia uma célula de fígado de uma de rim, por exemplo.
A boa noticia é que isso nos abre muitas novas perspectivas para tratar inúmeras doenças genéticas ou complexas como câncer, diabete, artrite reumatoide ou outras doenças autoimunes. Se por um lado alterar um gene é extremamente difícil, poderemos atuar na sua regulação ao desvendar os mecanismos responsáveis. Poderemos aumentar a expressão de um gene que está pouco funcional ou, ao contrário, silenciá-lo se ele estiver muito ativo ou produzindo em excesso.
As células-tronco, não como agentes de terapia celular, mas obtidas de pacientes, poderão ser parceiras muito importantes. Deixe-me explicar. Quando falamos de células-tronco as pessoas sempre pensam no seu potencial para regenerar tecidos ou, quem sabe, órgãos no futuro. Mas elas têm outro papel muito importante. A partir de células da pele de uma pessoa - ou paciente- podemos gerar, no laboratório linhagens celulares que representem todos os tecidos daquela pessoa: músculos, sangue, ossos, células nervosas, entre outras. Isso nos permite analisar o funcionamento dos genes, como eles se expressam em diferentes tecidos, por que uma mutação pode afetar um tecido e não outro e principalmente por que pessoas com a mesma mutação podem ter quadros clínicos tão diferentes. E, o melhor de tudo: podemos testar inúmeras drogas ou estratégias para reverter o defeito causado por aquela mutação nas células daquele paciente. Podemos manipulá-las, estudá-las, compará-las e realizar inúmeras experiências que seriam impossíveis nas pessoas. As células passam a ser nossos pacientes.
Entender como essa maravilhosa orquestra do genoma humano funciona é fascinante. Teremos assunto para muitos anos de pesquisas. Esperemos que as informações obtidas pelo projeto Encode possam nos ajudar a desvendar os mistérios por trás dessa nossa imensa variabilidade e nos fornecer novas pistas para tratamentos.
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