12 Novembro 2013
"A maioria das ações pedem medicamentos pela marca e não pelo composto medicamentoso, melhor dizendo, pedem o medicamento ‘de grife’ e não o genérico . Existe quem “afirme” até que em alguns casos é mais “fácil e rápida” a obtenção do ‘grifado’ por meio do Judiciário, do que a do genérico por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, argumento fraco para os que acreditam na existência de um lobby que envolveria a indústria farmacêutica e o médico prescritor, tese que pode ser “engrossada” pelos números do Ministério da Saúde: 35,5% das ações evidenciavam o nome do laboratório", escreve Marcelle Coelho do Rosario, advogada, professora de Bioética, mestranda em Filosofia na Unisinos.
Eis o artigo.
Faz pouco tempo que as pesquisas sobre fármacos que pudessem nos levar à cura de doenças raras começaram a ganhar expressão e força no cenário mundial, que até então, de forma geral, voltava seus esforços para sanar as chamadas doenças comuns ou de massa.
Conhecidas também como “doenças-órfãs” as doenças raras apesar de não terem uma definição única , podem ser caracterizadas como aquelas que preenchem o requisito mínimo de atingir a um número extremamente baixo de indivíduos, em comparação com outras enfermidades, tempo e região .
Os constantes avanços tecnológicos nas áreas biomédicas nos trazem os primeiros resultados dessas pesquisas, agora voltadas para as minorias: os medicamentos-órfãos (que como o próprio nome indica, são aqueles destinados às doenças-órfãs), e com eles inúmeras polêmicas.
Polêmicas dilacerantes, pois o quantum envolvido nas pesquisas é altíssimo, o que (pelo menos tecnicamente) faz com o custo final para o consumidor do novo fármaco seja proporcional ao investimento. Melhor dizendo, a indústria farmacêutica ao decidir investir valores em pesquisas está (como exige o “bom e velho” mercado) contando com uma probabilidade de lucro, que se traduz pela conta: valor investido mais ‘x’.
O primeiro problema que tal cálculo gera no Brasil é a inacessibilidade do medicamento-órfão por parte do portador da doença. Não há interesse de a indústria o produzir, vez que a maioria dos indivíduos não pode suportar tal custo e, não obstante o fato de algumas doenças raras serem cuidadas com medicamentos especiais já integrantes da lista do Sistema Único de Saúde – SUS , é flagrante a precariedade do que é ofertado pelo governo frente à necessidade individual do cidadão portador do raro mal.
Desta forma, na maioria expressiva dos casos, os portadores de doenças raras começaram a pedir socorro ao Judiciário pátrio para que fosse sentenciado o governo a cumprir, dentre outros, o artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CR/88), que determina na forma que segue:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (grifos meus)
Obviamente, que não se trata unicamente de ações para que um indivíduo tenha acesso a um tipo tão específico de fármaco como, a título de exemplo, fora acima apontado, pois a CR/88 refere-se à ‘saúde’, o que implica não só em demandas de remédios (raros ou não, ele pode ainda não integrar a listagem do SUS), mas também de tratamentos, próteses, a realização de exames etc.
O movimento referido é nomeado judicialização da saúde. Como visto anteriormente, trata-se do exercício de um direito constitucional que garante ao brasileiro que se julga carecedor de serviços de saúde (de prestação obrigatória por parte do Estado) ser atendido na razão do postulado, vez que o SUS não o disponibiliza.
Hoje, uma simples pesquisa nos bancos de sentenças dos tribunais de justiça revela um crescente repentino de demandas (porque as pessoas até bem pouco tempo não tinham ainda ‘despertado’ para tal direito/possibilidade!) de remédios psiquiátricos, instrumentos de toda sorte, fraldas geriátricas, iogurtes sem lactose, pomadas para pacientes acamados permanentemente e, as famosíssimas demandas para internações em UTI, que deixam para trás (e muito!) em números as de medicamentos-órfãos.
Ocorre que, diferente do modo que pensam alguns, a interpretação e aplicação do artigo acima transcrito não é tão simples. Questões levantadas em torno de conceitos como raridade, equidade e efetividade, sobre o respeito aos princípios bioéticos , sobre o sentido exato da frase (...) “direito de todos e dever do Estado” (...), são apenas alguns dos ingredientes que podem afastar ou aproximar tais intepretações.
Fiquemos então com as duas principais vertentes: os que são favoráveis ao acesso através do Estado-Judiciário; e os que pensam tratar-se de ‘um erro’ tais determinações na forma atual.
Para a negativa da concessão estão a postos os argumentos utilitaristas. Levar-se-á em consideração, para efeitos didáticos, o caso concreto da medicação citada acima, na nota de número 6, o Imiglucerase:
“No Brasil, o programa de medicamentos excepcionais contempla a dispensação de alguns medicamentos designados órfãos. Como exemplo podemos citar: Eritropoietina, Hormônio do Crescimento, Penicilamina, Toxina Botulínica e o Imiglucerase. O medicamento Imiglucerase é considerado um dos mais caros do mundo. É utilizado no controle da Doença de Gaucher, que é uma doença genética, rara. Essa doença afeta, principalmente, pessoas do leste europeu, descendentes de judeus (Basara e Montagne, 1994). O gasto com o medicamento varia de acordo com a dose de cada paciente, que depende de peso corporal, estágio da doença, mas em média está entre 130 a 160 mil dólares/ano.
(grifos meus)
Segundo informa o sítio do governo brasileiro Portal Saúde os gastos com o Imiglucerase, no ano de 2007 foi de U$ 125.000.000,00 (Cento e vinte e cinco milhões de Dólares) para atender a 430 pacientes .
Não seria justo (?), dizem os utilitaristas, que um valor deste porte, que poderia estar maximizando benefícios para a sociedade, estar ‘privilegiando’ alguns, principalmente em se tratando de condições que não afetam (sic!) a sociedade como um todo. Tal atitude teria um ar de ‘permissividade’, pois sob a capa do Judiciário estariam garantidos direitos, que mesmo constitucionais, implicariam com o seu cumprimento no direto descumprimento de outro(s) direito(s) dos cidadãos e deveres do Estado, como por exemplo: o respeito ao plano de orçamento da União e dos Estados Federados.
Não há no planejamento orçamentário uma rubrica destinada a aquisição de medicamento e prestações de serviços que possam atender a um indivíduo, especificamente. Para os que entendem a judicialização perniciosa seria inviável!
Ainda que seja respeitado o Princípio da Equidade a progressão dos tipos de doenças raras e outras tantas necessidades especialmente individuais, a variante do número de pacientes em cada uma delas e a fonte de obtenção dos recursos parece não ser um cálculo com resultado positivo, sobre o qual é chamada a atenção para a finitude dos recursos e a necessidade premente de sua priorização.
Para a defesa contamos principalmente com a observação sine qua non dos princípios bioéticos da Equidade, da Beneficência, da Não-maleficência, da Justiça e do princípio dos princípios, o Princípio da Dignidade Humana que fundamenta a existência de uma pessoa, lidos de acordo com o caso e com a veemente afirmação de que é função precípua do Estado-Nação a defesa da vida de seus nacionais. Forma em que, há uma exigibilidade de que seu bem maior seja priorizado, ou seja, a vida do cidadão deve ser resguardada, protegida, amparada antes de qualquer outra necessidade, sendo o ideal para a quem defende tais demandas que os governantes criassem mecanismos que pudessem o sustentar.
Os primeiros indícios apontam para a imperativa proposta de novas políticas, que não abandonem o cidadão pátrio e consigam igualmente manter a saúde da gestão pública nacional. Traduzidas em ações afirmativas, estas políticas devem ter uma realização efetiva, já flagrante que disposições que não saem do papel, não alcançam o status de justa.
Deste ponto de vista, conclui-se que a judicialização é justa, legal e legítima; que, não sendo possível o acesso aos serviços de saúde (inclusa aí a dispensação de fármacos) de que necessita o cidadão, deve ele, sim, pedir socorro ao Estado-Judiciário.
Outro aspecto que gera acaloradas discussões é que grande parte das demandas judiciais que rogam acesso a determinado fármaco poderiam vir travestidas de justiça para ocultar interesses, no mínimo, escusos. Não se trata exatamente da discussão sobre ‘conceder ou não conceder’, de se estar “sendo ou não justo”, mas do que conceder.
A maioria das ações pedem medicamentos pela marca e não pelo composto medicamentoso, melhor dizendo, pedem o medicamento ‘de grife’ e não o genérico . Existe quem “afirme” até que em alguns casos é mais “fácil e rápida” a obtenção do ‘grifado’ por meio do Judiciário, do que a do genérico por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, argumento fraco para os que acreditam na existência de um lobby que envolveria a indústria farmacêutica e o médico prescritor, tese que pode ser “engrossada” pelos números do Ministério da Saúde: 35,5% das ações evidenciavam o nome do laboratório.
Existem também aqueles que se permitem exercícios imaginários mais profundos e radicais (somente com a intenção de elencar as presumíveis causas da judicialização) sobre alguns possíveis casos em que o médico poderia convencer o seu paciente de que “somente aquele remédio Y” poderia curá-lo, inclusive chegando ao extremo de incitá-lo à demanda judicial, com frases como “Não, senhor! Eu vou passar este que é o melhor remédio para você, é o mais moderno! Entra na Justiça que é ganho certo!”, contando com as comissões ofertadas pelo “incrível mundo dos laboratórios”.
Especulações a parte, não se discute porém, que uma das vertentes mais delicadas que pode estar contribuindo para a judicialização da saúde encontra-se no dado fornecido pelo Ministério da Saúde: a maioria expressiva dos juízes concede o requerido.
Mas, o fato de a maioria dos magistrados sentenciar favoravelmente ao autor da ação, por si só não apresenta nada que deva ser estranhado, diriam alguns e com razão. Acontece que é evidente que a magistratura necessita de capacitação para o enfrentamento destes novos processos surgidos em função do desenvolvimento tecnológico nas áreas da saúde.
O enorme número de sentenças que atendem o postulante nestas áreas ocorre, em muitos dos casos, porque os juízes, sem preparo técnico para dar o devido entendimento, se sente ‘obrigado’ frente à possibilidade de se perder uma vida, faltando-lhes, em muitos dos casos, análises específicas quanto às competências administrativas do fornecedor primário da prestação requerida ou quanto ao conhecimento de facetas pertinentes as áreas da saúde, verbi gratia.
Tanto é assim, que o Estado do Rio de Janeiro, no ano passado, criou, após o Conselho Nacional de Justiça manifestar sua preocupação com o fato, o Comitê Estadual de Saúde, com o objetivo precípuo de promover o diálogo entre os saberes das áreas de saúde e os jurídicos, como propõe a Bioética, bem como o estabelecimento de parâmetros mínimos (caso possível) para que estas decisões possam ocorrer de forma mais harmoniosa, como a construção da uniformização das interpretações de leis referentes à saúde pública em geral. Também, não foge à preocupação dos ilustres membros do referido comitê a preocupação com as políticas públicas de gestão e o incentivo às parcerias com os laboratórios nacionais.
Espera-se que este intercâmbio de conhecimentos engendre uma política mais equilibrada para a gestão dos recursos da saúde. Já é possível ver um, ainda pequeno, mas muito importante, resultado, como no caso do Glicosímetro, que pode custar até R$ 2.000,00 (Dois mil Reais), e era alvo de inúmeras demandas. Após algumas sentenças fundamentadas com fortes argumentos técnicos os municípios passaram a fornecê-lo, reduzindo a amplitude das demandas judiciais.
Certamente todos os lados acreditam em suas razões e as discussões ainda têm um longo caminho para percorrer. Contudo, mister que sejam identificados quais os reais fatores que atuam para construção da judicialização da saúde no Brasil, permitindo, com isso, a alteração do cenário atual.
Que sigam os debates!
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A judicialização da saúde é direito constitucional? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU