Por: Cesar Sanson | 24 Setembro 2013
Ao refletir sobre geografia de São Paulo, é inevitável lembrar ideias do velho barbudo sobre natureza desumanizadora do trabalho, em sociedades segregadas. O comentário é de Juliana M. Dias em artigo publicado por Outras Palavras, 23-09-2013.
Eis o artigo.
Por que algumas pessoas têm direito de usufruir da cidade, enquanto outras apenas vivem para enfrentá-la, num esforço diário por sobrevivência? O Brasil tem a imagem de ser cordial e amante da igualdade, mas ainda permanece essencialmente escravocrata e segregacionista. Basta um olhar em qualquer metrópole para vermos que a questão vem de séculos. Isto não significa um desejo de viver em eterna contemplação improdutiva, uma volta à vida bucólica e menos ainda uma crítica às sociedades industriais ou ao capitalismo, mas uma tentativa de reflexão sobre a busca pela realização profissional, o que as pessoas fazem com seu tempo livre, a sobrevivência versus a vivência. Nada disso é igual para todos, nem nunca foi.
Moro em São Paulo, no bairro do Paraíso (adjacências do Centro) e trabalho em um escritório no Brooklin (Zona Sul). Levo o mesmíssimo tempo para percorrer os 6 quilômetros de distância estando a pé ou de ônibus, exatas 1h20 – a diferença é que a pé chego com 600 calorias a menos. Isso é um sintoma de se viver em uma cidade que sucateou o seu Centro, deixando-o entregue ao abandono, onde ninguém quer morar, nem passar.
O desenho urbano hoje é definido por nova região de concentração de empregos, o chamado “quadrante sudoeste” que reúne os “melhores” bairros, menores índices de mortalidade e violência, melhores serviços, temperaturas mais baixas (porque é mais arborizado), melhor infraestrutura de transporte e um chão tão caro que chega a ser irreal. É a região rica da cidade, que no Rio corresponderia à Zona Oeste. Nela, de forma geral, “ricos” moram, trabalham e precisam percorrer trajetos mínimos para acessar todas as suas atividades de lazer — academia, shopping, pet shop. Esse quadrante abrange bairros como Pinheiros, Vila Madalena, Brooklin, Jardins e Vila Olímpia, entre outros. Esses dados e o mapa são dos estudos do professor Flavio Villaça (USP) sobre segregação.
Entre patrões e empregados, existem diferenças fundamentais com relação ao uso da cidade nesse “quadrante sudoeste”. Os empregadores, em geral, moram e trabalham na região; têm filhos que lá estudam; deslocam-se de carro. Já os empregados chegam de áreas distantes. Muitos moram na Zona Leste, região mais populosa da cidade, que conta com apenas uma linha de metrô (que alcança poucos de seus bairros) e uma de trem metropolitano (insuficiente e muito saturada). Uma viagens de ida ou vinda estende-se frequentemente por duas horas.
Mas as pessoas que vivem em um condomínio fechado de alto padrão, no quadrante sudoeste, não o fazem por terem “corações de pedra” ou serem “vilões contra a classe trabalhadora”. É uma questão cultural. A cidade é injusta porque a distribuição de renda o é, também. As oportunidades são desiguais. Há fraturas profundas entre as classes sociais, ainda que tenhamos passado por grandes modificações nos quadros da miséria nos últimos governos.
Imagine que você é filho ou neto de alguém que, por circunstâncias diversas, fez faculdade, teve carreira profissional bem-sucedida, pode comprar casa e pagar seus estudos em uma boa escola e uma universidade. Você morou por toda a vida em uma casa no Alto de Pinheiros (exemplo de bairro rico da Zona Oeste), que um dia será sua. Nunca viveu sem carro. Mas a cidade abriga, também, filhos de sertanejo, que veio para São Paulo tentar a sorte, empregaram-se na construção civil, construíram um cômodo em um lote invadido de Parelheiros (extremo sul) e casaram-se com empregadas domésticas. Seus filhos terão estudado, por toda a vida, em uma escola municipal. Começaram a trabalhar cedo. Nunca prestaram vestibular.
Entre os privilégios ou dificuldades que marcarão a vida desses dois personagens, quais estão ligados méritos; e quais são provenientes das oportunidades que tiveram por “herança”? Quais das conquistas do primeiro personagem fazem dele um merecedor da “melhor parte” de uma cidade, que deveria ser de todos? Bons estudos costumam desembocar em boas carreiras, mesmo que isso demande grande esforço e trabalho. Onde estarão vivendo essas duas famílias e seus descendentes, até que algum deles consiga quebrar um elo dessas correntes hereditárias? E por falar em correntes, é preciso tentar adivinhar as cores das peles desses dois personagens, que você provavelmente já imaginou? Qual deles é o descendente do imigrante europeu; qual é o bisneto do escravo? Isso está incrustado na nossa cultura, simplesmente. É uma herança da nossa miscigenação intensa, porém segregada.
Quem é mais pobre mora longe do trabalho e outros destinos. Perde no transporte tempo precioso que poderia ser usado para desenvolver uma atividade intelectual ou prazerosa. É devastador o que a falta de tempo e dinheiro estudo, leitura e outras atividades culturais pode fazer com uma pessoa; mas é ainda mais devastador não ter o direito de, simplesmente, não fazer nada: não ter tempo livre para criar, produzir autonomamente, divertir-se.
Um modelo de vida urbano baseado em sacrifícios traz, além de defasagem intelectual, diversos problemas de saúde. Algumas profissões a que estão obrigadas as pessoas obrigadas ao trabalho para mera sobrevivência são desgastantes, degradantes, aborrecidas ou humilhantes. Mas a grande maioria é exercida para enriquecer alguém. Por mais que o trabalho, qualquer um, seja “edificante” (existe mérito no esforço), é preciso ter estrutura familiar e/ou financeira para desempenhar sua vida profissional com prazer, o que geralmente determina o sucesso.
Não sou comunista, mas cito aqui o barbudo alemão, para reflexão: “O trabalho é externo ao trabalhador, não pertence ao seu ser, que ele não afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito… O trabalho não é a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele.”
É preciso ligar as peças do quebra cabeças que faz com que a cidade simplesmente só funcione para algumas pessoas. Em qual momento ela (ou elas, já que estamos falando de metrópoles brasileiras) fugiram do controle? Vivemos o paradoxo de ter que usar o carro para ir para o trabalho e ter que trabalhar para pagar o carro. Copiamos dos filmes hollyowoodianos dos anos 1950 a fascinação por automóveis, autoestradas, eletrodomésticos, consumo. Ele não é um mal em si, e é bom que muitos tenham saído da miséria e podido ter consumir, mas quando isso se faz de forma pouco consciente, baseado em desigualdade e substituindo investimentos em serviços públicos de qualidade, surge uma infelicidade quase palpável, algum tipo de angústia crônica.
Essa não é uma discussão apenas urbanística, mas profundamente íntima. Trata das relações que começaram a se desenvolver quando o Brasil incorporou as injustiças de mundo desigual num deságue doloroso e sangrento. O local onde vivemos reflete esse peso histórico, tornando o usufruto da cidade privilégio de poucos, enquanto a maioria apenas a usa como meio de subsistência.
Sim, as cidades precisam de mais metrôs, de catracas livres, do fim da cultura do automóvel, de energia limpa. Mas também precisam de periferias que sejam autônomas e estruturadas para que os destinos se invertam. E para isso as cabeças precisam deixar de ser apenas operantes para se tornarem pensantes.
Referências:
VILLAÇA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estudos Avançados, São Paulo , v. 25, n. 71, Apr. 2011.
JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000
ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Global, s. d.
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Karl Marx no Quadrante Sudoeste - Instituto Humanitas Unisinos - IHU