20 Novembro 2014
"Vivi plenamente, acima de tudo no longo período de clandestinidade, a violência disseminada pela Segunda Guerra Mundial, fui gravemente ferido e sou um dos poucos sobreviventes à explosão de uma mina, a qual saltei enquanto fugia de uma emboscada inimiga", escreve Umberto Veronesi, renomado oncologista e ex-ministro da Saúde da Itália, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 17-11-2014. A tradução é de Ivan Pedro Lazzarotto.
Eis o artigo.
Dom Giovanni frequentava seguidamente a nossa fazenda, chegava sempre de bicicleta. Partia da paróquia do Redentor, que ficava na periferia de Milão em uma área chamada de Loreto, e pedalava até a campanha para depois parar para conversar ou, por vezes, para comer comigo e com os meus pais. Mas era na primavera, quando chegava a Festa dos Aspargos, que Dom Giovanni se tornava o nosso hóspede de honra e a festa acabava sempre com um grandioso almoço. Para mim e para os meus irmãos, cinco homens e uma mulher, precocemente órfãos de pai, era muito mais que “o Dom”: era um confidente, um conselheiro afetuoso e um amigo capaz de resolver também as pequenas infelicidades das crianças.
Dom Giovanni tinha muito orgulho de mim: desde pequeno eu não perdia uma missa ou um terço, eu era um coroinha impecável e até mesmo fui elevado ao cargo de “pajem”, uma verdadeira honra na Igreja atualmente. Por isso foi ele, talvez, quem mais sofreu quando, muitos anos depois, revelei que havia perdido a fé.
Lhe falei em um dia de primavera. Depois de uma longo período de silêncio no qual não havíamos mais nos visto ou nos falado, Dom Giovanni se apresentou ao Instituto Nacional do Câncer de Milão, onde eu trabalhava como assistente. Tinha um tumor no cólon em estágio bastante avançado e me fez prometer que o operaria pessoalmente. Assim fiz e a cirurgia correu perfeitamente. No dia da resignação, na porta de saída do hospital, me fez prometer outra coisa: iria encontrá-lo ao menos uma vez a cada quatro meses na sua nova paróquia (em uma cidadezinha de campanha) para nos presentear com um pouco de tempo exclusivo para nós. Iniciou-se assim um período de conversações e de troca intelectual sobre o sentido da vida, da ciência e da fé, que marcou para todo o sempre o meu pensamento. (...)
Depois de dois, talvez três anos que havíamos nos reencontrado, ocorreu um momento doloroso: consultando-o encontrei uma massa dura e volumosa no abdômen. Não foram necessárias muitas palavras para explicar a ele que existia uma metástase hepática e que (naquela época era assim) os meios para trata-la eram muito limitados. Prometi a ele então uma terceira vez: “Não irás sofrer Giovanni, prometo isso a você”. Ele me agradeceu muito por este meu gesto, pois não fazia parte daqueles fiéis que acreditam que a dor nos aproxima de Deus. Na nossa última noite juntos ele me disse: “Te agradeço pela caridade que demonstras, mesmo que na ausência da fé. Existe tanta fé sem caridade”. A promessa que ele jamais me fez foi a de que eu me reaproximasse da fé, e sou eternamente grato a ele por isso. (...) Não saberei dizer qual foi o meu primeiro dia sem Deus. Certamente depois da experiência da guerra nunca mais coloquei os pés dentro de uma igreja, mas a decaída da minha fé começou muito antes. Durante o Liceu (ensino médio) reprovei por duas vezes, literalmente eu levava tudo na brincadeira: não ia bem nos estudos.
Eu era o típico garoto de periferia, as minhas atitudes eram ousadas, sempre tive a necessidade de me colocar à prova: era a única forma que eu conhecia para vencer a timidez e afirmar a minha personalidade. De fato, sempre fui dissidente, rebelde aos lugares comuns e as convenções aceitas sem crítica alguma, e essa minha natureza mal era conciliada com o integralismo da doutrina católica que tinha sido a base da minha educação desde criança. (...) Depois chegou a guerra e os meus questionamentos ficaram ainda mais dramáticos.
Com 18 anos não queria ir à guerra, mas acabei em uma operação e me encontrei vestindo um uniforme que não tinha nenhum valor para mim; fui altamente armado para matar outros rapazes, em todo e por todo iguais a mim, exceto ao fato que se encontravam do lado oposto.
Vivi plenamente, acima de tudo no longo período de clandestinidade (ligada à Resistência), a violência disseminada pela Segunda Guerra Mundial, fui gravemente ferido e sou um dos poucos sobreviventes à explosão de uma mina, a qual saltei enquanto fugia de uma emboscada inimiga. Além dos massacres nas batalhas, toquei com a mão também na loucura do nazismo e não pude deixar de me questionar como fez Hannah Arendt antes e Bento XVI muitos anos depois: “Onde estava Deus em Auschwitz?”. (...) A escolha de me tornar médico está profundamente ligada a mim pela pesquisa da origem daquele mal que o conceito de Deus não podia explicar. No início eu queria ser psiquiatra para entender em qual ponto da mente nasce a loucura gratuita que podia causar os horrores dos quais fui testemunha. Me aproximando da medicina, porém, presenciei um mal ainda mais inexplicável do que a guerra, o câncer, e desafiando a renúncia que então prevalecia, decidi fazer minhas indagações através do conhecimento e em saber se seria possível vencer aquele imensa e absurda dor. (...)
Para quem o mal não é uma ideia abstrata mas sim algo que se vê, que se toca e, no meu caso, tem um nome, tumor, se torna muito difícil identifica-lo como uma manifestação da vontade de Deus. Pensei muitas vezes que o cirurgião, e acima de tudo o cirurgião oncologista, tenha realmente um relacionamento especial com o mal. O bisturi que perfura o corpo de uma mulher ou de um homem o mantém longe da metafísica da dor. Na sala de cirurgia, quando o paciente adormece em função da anestesia, é a ti cirurgião que a vida foi confiada. O último olhar de medo ou de confiança é para ti. E tu, cirurgião, não pode pensar que um anjo da guarda irá guiar a tua mão quando iniciar a operação, quando em poucos instantes deve decidir o que fazer, quanto remover, como parar uma hemorragia.
Você está sozinho naqueles momentos, sozinho com a tua capacidade, com a tua concentração, com a tua lucidez, com a tua experiência, com os teus estudos, com o teu amor (ou também com a tua caridade como dizia Dom Giovanni) para o doente, seja esse o padre que consolava as tuas lágrimas quando eras criança, ou a mãe que está para ganhar um filho que queria amamentar com aquele seio que tu recentemente retiraste, ou um paciente desconhecido que esperava de ti somente a cura, que não chegou. Da mesma forma que em Auschwitz, para mim o câncer se transformou em uma prova da não existência de Deus. Desenvolvi essa convicção acima de tudo no Instituo Nacional do Câncer de Milão, onde a cada pouco frequentava o setor de pediatria. Como pode acreditar na Providência ou no amor divino quando vê uma criança tomada por células malignas que vão consumindo dia após dia na frente dos teus olhos? Existem palavras em algum livro sagrado no mundo, existem verdades reveladas, que podem atenuar a dor dos seus pais? Eu acredito que não, e prefiro o silêncio ou o sussurro do “não sei”.
Porque – e para as crianças hoje acontece cada vez mais – a dúvida se transforma em esperança concreta e depois na cura, e quanto isso acontece, é pura alegria.
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O dia em que deixei de acreditar em Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU