05 Mai 2014
O teólogo suíço Hans Küng escreveu mais de 70 livros que influenciam não só a atual busca por reforma na Igreja Católica como também teólogos e praticantes que se envolvem na teologia ecumênica e no diálogo inter-religioso. Pedimos ao destacado estudioso Leonard Swidler e o experiente jornalista John Wilkins para nos guiarem na apreciação do amplo escopo da obra do autor. Não só Swidler e Wilkins são especialistas no pensamento de Küng, mas igualmente leram o terceiro e último volume das memórias do autor, que ainda está para ser traduzido do original alemão.
As duas retrospectivas oferecem reflexões sobre o seu último livro, intitulado “Can We Save the Catholic Church? / We Can Save the Catholic Church!” [“Podemos salvar a Igreja Católica? Podemos salvar a Igreja Católica!], publicado pela William Collins.
Abaixo publicamos a reflexão de Leonard Swidler, professor na Temple University, na Pensilvânia. Nos próximos dias publicaremos a de Wilkins.
O presente artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 01-05-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Há uma série de razões pelas quais é particularmente oportuno que eu esteja escrevendo sobre os últimos escritos do teólogo o Pe. Hans Küng. Em primeiro lugar, nós dois temos 85 anos de idade – um ano mais jovem do que aquele nosso colega da Universidade de Tübingen, Joseph Ratzinger, hoje Papa Emérito Bento XVI. Em segundo lugar, eu me encontrava em Tübingen já antes de Hans no fim do década de 1950, como aluno trabalhando em minha tese de doutorado em História pela Universidade de Wisconsin e em minha licenciatura em Teologia Sagrada, pela Universidade de Tübingen.
Cheguei a Tübingen, na Alemanha, em 1957. Durante o segundo semestre de 1958 participei de um interessante curso oferecido pela faculdade protestante de teologia sobre um livro recém-publicado na época que comparava a doutrina da justificação – de acordo com o teólogo protestante suíço do século XX Karl Barth – com a doutrina do Concílio de Trento, do século XVI. O livro concluía, de forma dramática, que ambas eram a mesma coisa em essência.
Seu autor era um impetuoso novato no cenário teológico, o suíço católico Hans Küng. À época nem eu nem ninguém sabia quem ele era – exceto Ratzinger, que era professor assistente do Dr. Hermann Volk da faculdade de teologia católica da Universidade de Münster. Foi este mesmo Volk que, como cardeal de Mainz, Alemanha, interpelou Hans para falar sobre seu best-seller intitulado “On Being a Christian” [Ser cristão]. A certa altura, Volk deixou escapar: “Herr Küng, Ihr Buch ist mir zu plausibel!” (Sr. Küng, o seu livro me é muito plausível!”)
Hans e eu nos “encontramos” pela primeira vez quando ele, na qualidade de orientando em Tübingen de meu orientador de doutorado, Heinrich Fries, me escreveu na Universidade de Munique, onde eu estava dando continuidade à minha pesquisa, para falar sobre a publicação de minha tese. Um ano mais tarde, depois de eu ter sido abrigado no departamento de História da Universidade de Duquesne, em Pittsburgh (EUA), o convidei a vir para cá trabalhar como professor visitante de teologia.
Naquela altura, o entusiasmo para com o Concílio Vaticano II (1962-1965) que estava por vir começava a crescer, e rapidamente a tradução inglesa de seu livro “The Council, Reform, and Reunion” lhe rendeu o status de um teólogo de destaque.
Em seguida, fez viagens para ministrar palestras ao longo dos EUA, incluindo a Universidade de Duquesne, onde as entradas para participar do evento se esgotaram duas semanas antes. Centenas de pessoas se puseram num outro auditório onde a palestra pôde ser ouvida. Hans me disse que tinha tantas ofertas de trabalho – começando por Harvard – que teria de declinar o meu convite junto de todos os outros.
Foi em meio ao entusiasmo frenético envolvendo o Concílio que minha esposa, Arlene Anderson Swidler, veio com a ideia de preencher uma lacuna nos estudos teológicos, e então lançamos um periódico acadêmico devotado ao diálogo ecumênico: o Journal of Ecumenical Studies [Revista de Estudos Ecumênicos]. Reunimos um grupo principal de editores associados, incluindo Markus Barth (um dos filhos de Karl Barth) e Hans Küng. A primeira edição em 1964 (50 anos atrás) continha artigos escritos por dois peritos do Vaticano II, que estava atingindo seu auge na época. Era eles: Küng e Ratzinger. Para mim e Arlene, este era apenas o início de uma amizade e colaboração cm Hans em inúmeros projetos que duraria mais de meio século.
É através das lentes de nossa longa relação que li o volume 3 das memórias de Hans Küng.
Hans deve ter – com a determinação suíço-alemã – guardado e arquivado cada trabalho acadêmico e cada nota que ele tomou em suas inumeráveis viagens, encontros, conferências e diálogos. Tudo está cuidadosamente documentado, não de forma pedante mas, sim, de forma que garanta ao leitor (ou leitora) que se está diante do “wie es eigentlich gewesen”, ou seja, do que realmente aconteceu.
Muitos pensadores e realizadores atuais consideram que esta obra, presumivelmente a última de três, contendo as memórias do autor seja um “quem é quem” do século XX e XXI em termos intelectuais, culturais e políticos. Hans obviamente se envolveu na redação do livro até o último instante, pois há o registro de que, no dia 28 de junho de 2013, ele escrevera ao Papa Francisco pedindo sua permissão para reproduzir nota elogiosa manuscrita que o pontífice lhe tinha endereçado em espanhol. (É claro, o teólogo recebeu uma resposta positiva.)
Hans quer fazer deste volume o seu “vaya con Dios” [vá com Deus], no sentido de que, no fim, ele olha para trás e reflete sobre o que julga ser uma vida plena, completa. Despediu-se das longas semanas em que praticava esqui – “um dos esportes mais fascinantes” – nos Alpes Suíços em meados de 2010.
O título do livro “Podemos salvar a Igreja Católica? Podemos salvar a Igreja Católica!”, de 350 páginas, diz tudo. Esta segunda parte do título não faz parte do original (que é “Ist die Kirche noch zu retten?”, ou seja: “A Igreja ainda pode ser salva?”), mas ecoa um sentimento que pode se encontrar em todos os seus sete capítulos. Küng vê a história no longo prazo se mover através de uma série contínua de mudanças paradigmáticas menores e maiores que enfrentam sempre resistência até que se atinge um ponto de inflexão e, então, um novo paradigma assume o centro do pensamento e da ação.
Ele está convencido – assim como eu também estou – de que estamos em meio de uma importante mudança de paradigma que, como esperado, está sendo veementemente questionada. Não obstante, ela está substituindo o antigo paradigma – neste caso, o católico-medieval, o da Contrarreforma.
É interessante e animador ler que, há alguns meses quando Hans enviou uma nota de agradecimento e um exemplar em espanhol de seu livro para o Papa Francisco (e aos cardeais do novo Conselho dos Cardeais, cada um em sua própria língua), em poucos dias ele recebeu aquele cartão manuscrito mencionado acima. Neste, Francisco agradeceu a Hans pela nota enviada e pelo livro, o qual, disse ele, iria ler com prazer.
É óbvio que Hans conhece intimamente os problemas profundos da Igreja Católica – do passado e do presente – mais do que qualquer outra pessoa viva, e ele apresenta estas falhas estruturais enormes com uma clareza escaldante. No entanto, ele não critica simplesmente, como também traz alguns planos de ação. Hans e agora os leitores percebem a profundidade da doença em vários aspectos da Igreja. Mas, tendo presente as lições da história, sabe-se que a mudança não só é possível como inevitável.
Além disso, Hans fornece bases para uma coragem interior necessária para dar início (ou continuidade) a estes esforços, os quais irão acelerar aquela mudança positiva na Igreja Católica. É uma visão de Igreja a que Hans, como muitos outros, devotou (e continua a devotar) a sua vida.
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Hans Küng conhece os problemas da Igreja e sabe que a mudança é inevitável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU