04 Novembro 2015
Trocou seu sobrenome paterno, Klausner, depois de deixar sua família de imigrantes judeus lituanos e ucranianos para trás e ingressar em um kibutz, aos 15 anos. Essa determinação de transformação da realidade o acompanhou por toda a vida e o levou a enfrentar desde o pacifismo à corrente majoritária de opinião em Israel, favorável à ocupação da Palestina. Amos Oz (Jerusalém, 1939) recebe Babelia de chinelos na sala do sótão em um distrito burguês do norte de Tel Aviv. Parece cansado e alega problemas indeterminados de saúde para explicar sua ausência na Espanha para a próxima apresentação de seu último romance, Judas (Sirueal).
A entrevista é de Juan Carlos Sanz, publicada por El País, 30-10-2015.
Eis a entrevista.
Ainda existe a Jerusalém em que nasceu? Não encontramos o beco onde acontece seu romance Judas
Desapareceu. Tudo mudou: 50 ou 60 anos em Jerusalém são como 200 anos no resto de Israel. Perdeu sua beleza de paraíso perdido. Judas não é um documentário, nem uma espécie de memórias. Neste romance, escuta-se o eco de dois dos principais acontecimentos da história de Jerusalém: o sacrifício de Isaac, refletido na morte de um homem jovem [na guerra de independência de Israel, 1948-1949], e a crucificação de Jesus.
É uma ficção sobre a história dessa terra e seus conflitos?
No coração desse romance, está a história de três pessoas muito diferentes. Um velho que rechaça com força todas as religiões e todas as ideologias do mundo, cada uma delas começa com sonhos de redenção, embora todas acabem com inquisições, jihads, cruzadas, gulags, câmaras de tortura, e aceita o mundo como ele é. Vê-se confrontado por um jovem idealista, Shmuel, que acredita ser possível mudar o mundo. Que tem pôsteres de Fidel Castro e de Che Guevara na parede do seu quarto. E se encontra com uma mulher muito atraente, Atalia Abravanel, que está brava com o mundo que ficou nas mãos dos homens durante milhares de anos, um mundo que foi convertido em um matadouro. No fim, os três quase [enfatiza] amam uns aos outros. Essa mudança é uma espécie de milagre laico.
Você planta possibilidades. Se Abravanel [o pai de Atalia] tivesse imposto suas ideias pacifistas a Ben Gurion na Executiva Sionista... Se Jesus não fosse morto na cruz e se dedicasse a reformar o judaísmo...
O romance está repleto de grandes perguntas. Mas não se pode pedir que dê as respostas. Essa obra é uma música de câmara, um quarteto de cordas com diferentes vozes.
Para um grupo, para uma nação, um traidor é sempre alguém que merece ser fuzilado?
Escrevi esse romance porque me chamaram de traidor muitas vezes. A primeira vez, quando tinha oito anos, em Jerusalém. Meus amigos me acusavam de traição por falar com um sargento inglês, por não apoiar a Intifada judaica contra os britânicos. A última vez que me chamaram de traidor foi no verão de 2014, quando critiquei a atuação de Israel na guerra contra o Hamas, em Gaza. Às vezes um traidor é alguém que está um pouco à frente da sua época. Alguém que muda aos olhos de quem nunca muda. Milhões de americanos chamaram Lincoln de traidor porque ele libertou os escravos negros. Gorbachov, também, pelas mudanças que realizou no bloco soviético... O principal traidor no romance é Shmuel: não gosta do seu pai e nem da sua mãe.
Você também abandonou sua família. Mudou inclusive de sobrenome.
Eu me reconheço em muitos atos de traição. Às vezes, é uma medalha de honra.
O trio de Judas parece uma espécie de família que sofre.
Não é uma história doce de amor. É uma história sobre pessoas que, em meio a uma grande dor, estão quase se amando. Mas também é a história do amor de Judas por Jesus.
Tem um trecho do texto: “Judas é o primeiro, o único e o último dos cristãos”.
Olha, em Israel, não se ensina o Novo Testamento nas escolas. Aos 16 anos, pensava que não poderia entender a arte do Renascimento, nem a música de Bach, ou os romances de Dostoievski sem ter lido os Evangelhos.
Era sua busca pela cultura europeia?
Leia o Novo Testamento e ame Jesus. É impossível não fazer isso. Mas eu estava descontente com o tratamento dado à história de Judas. Não por razões religiosas judaicas, mas por um espírito detetivesco que tinha nessa idade. Quanto dinheiro eram 30 moedas de prata? Não era muito dinheiro, e Judas não era um homem pobre da Galileia, como os outros apóstolos. Por que venderia seu mestre, seu professor, seu Deus, pelo equivalente atual a 600 euros? Pelas mesmas razões de um detetive, não posso acreditar na história de Judas. Não tem base. E é o Chernobyl do antissemitismo cristão em mais de 2.000 anos. Os judeus são odiados em muitos lugares por essa história.
Judas queria salvar o mundo, que o Reino dos Céus começasse imediatamente, que Jesus conseguisse o ‘prime time”.
Então, você quer a redenção de Judas e dos judeus com esse romance?
Acredito que a versão alternativa de Shmuel sobre Judas é mais convincente que a dos Evangelhos. Acerta ao dizer que queria salvar o mundo, que o Reino dos Céus começaria imediatamente. Estava convencido que se Jesus fosse crucificado em Jerusalém, a Páscoa chegaria ao prime time. Para ele, que ressuscitava os mortos e caminhava sobre a água, deveria ser fácil sair vivo daquela cruz.
Jesus também dizia que era um homem.
Sim. Mas Judas só percebeu isso quando Jesus morreu. Ele não queria ir a Jerusalém. Tinha medo.
No seu romance, você fala também do medo ao antissemitismo. O que é isso?
É complicado. Nem todos que criticam Israel são antissemitas. Eu mesmo faço isso. Se criticam o que os judeus fazem, pode-se ter razão ou não, mas é algo legítimo. Mas se criticam os judeus por serem quem são, existe antissemitismo. Onde está a linha vermelha? Não sei, mas ela existe. Vejamos a pintura do Renascimento, começando por Leonardo da Vinci. Em A última ceia, observa-se Jesus presidindo junto com os apóstolos, todos eles com um bom aspecto. E no final da mesa, há um pequeno e feio inseto, com grandes orelhas e nariz pontiagudo, com os dentes podres e um sorriso desagradável. Essa imagem de Judas está na mente de muitos cristãos. Quando os nazistas acreditaram nas caricaturas antissemitas dos judeus, tomaram-nas como arte tradicional cristã.
Você disse que usa palavras para trabalhar.
Escrever um romance não é uma questão de ideias, conceitos ou mensagens. Acima de tudo, é uma questão de escolher palavras, as palavras certas.
O hebraico é apenas a sua língua materna?
Não posso ser objetivo com o hebraico porque sou um fanático. Não pelo país, por Israel, mas pela linguagem... É meu instrumento musical. Foi ressuscitada em uma língua moderna que contém a bíblica e a pós-bíblica. Posso ler sem grandes dificuldades um livro escrito em hebraico na Espanha, 800 anos atrás.
Já chegou a hora de um prêmio Nobel de Literatura para um autor que escreve em língua hebraica?
Creio que já tive minha cota de prêmios literários, mais do que mereço. [Ganhou o Príncipe das Astúrias em 2007]. Prometo que, se não receber o Nobel, não vou morrer insatisfeito.
Nessas ruas em que descreve a Jerusalém onde nasceu, muita gente pode acabar reconhecendo sua própria cidade.
Acredito que a boa literatura, somente quando é muito provinciana, local, converte-se em universal. García Márquez em Macondo..., Cervantes também é muito provinciano. Tento romancear uma história para que as pessoas enfrentem elas mesmas.
Isso significa muitas vezes ter que sofrer.
É assim que é.
Você teve que enfrentar a perda da sua mãe, que se suicidou.
Não escrevo para entreter, mas para que as pessoas se façam perguntas. Jesus sempre amou? Amava os comerciantes quando eles o expulsaram do templo?
Continua sendo “uma pomba”, um pacifista?
Sim. Mas tenho inimigos. Já disse que me chamam de traidor.
Tem proteção?
Não. Algumas vezes, a polícia veio verificar meu carro. Acredito que se tratam de inimigos verbais. Dizem que eu deveria ser enforcado e me deixam bilhetes ou me ligam dizendo que vão me matar. Mas ninguém que quer matá-lo de verdade avisa antes.
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Amos Oz: “Critico Israel e não sou antissemita” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU