22 Outubro 2015
"Se o projeto eclesiológico de Francisco era, até agora, de uma Igreja 'em saída', 'acidentada', misericordiosa como um 'hospital de campanha', ele acrescenta o 'caminho da sinodalidade' como um modo da Igreja se apresentar à sociedade" comenta Sérgio Ricardo Coutinho, professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura de Brasília e de “Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais” no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília.
Eis o artigo.
Depois de exatos 30 anos do seu encerramento, só agora chegou ao fim o Sínodo Extraordinário de 1985. Mas, por quê?
Conforme Massimo Faggioli, desde o tempo dos debates do Concílio Vaticano II até os dias de hoje, a eclesiologia tem sido uma questão muito delicada e complexa, porque está ligada à interpretação teológica e à própria recepção do Vaticano II, por um lado, e ao desenvolvimento institucional da governança do catolicismo mundial nos últimos cinquenta anos, por outro. [1]
Neste último sábado, 17/10, durante evento comemorativo dos 50 anos do Sínodo dos Bispos, o Papa Francisco fez um discurso memorável. E, arrisco dizer, com este, abre-se uma nova fase da interpretação e recepção do Vaticano II, encerrando o longo período de desconfianças desde o célebre Sínodo de 1985.
A primeira e mais delicada questão para o equilíbrio de poder dentro do catolicismo após o Vaticano II é o debate sobre a relação entre o papado e os bispos. Em novembro de 1964, no final do debate sobre a Lumen gentium, o Papa Paulo VI e membros da Comissão Teológica Internacional prepararam um texto intitulado Nota explicativa praevia, que pretendia “esclarecer” alguns aspectos do tratamento conciliar sobre a colegialidade episcopal que se encontra no capítulo terceiro daquela Constituição Pastoral. De modo particular, a Nota explicativa esclarece que o uso do termo collegium com relação aos bispos não significava sociedade de iguais e que o papa, como cabeça do collegium, podia agir tanto pessoal como coletivamente.[2]
De certa forma, esta Nota explicativa foi a forma encontrada pela Cúria romana para manter viva a eclesiologia do papado, do Vaticano I, para contrabalançar a eclesiologia mais colegial do Vaticano II. No entanto, ao longo destes 50 anos de recepção, não houve uma integração destas duas eclesiologias. Segundo o historiador jesuíta Klaus Schatz, a eclesiologia da iurisdictio, que é a do Vaticano I, e a redescoberta da antiga eclesiologia da communio pelo Vaticano II foram postas lado a lado, mas permaneceram desconectadas, e essa falta de conexão é mais séria na prática eclesial do que na teologia. A tensão é exacerbada pela política romana de não permitir enfraquecer a autoridade de Roma ante as crises na Igreja pós-conciliar e fazer uso da “colegialidade” segundo parecer oportuno ao serviço de uma direção mais eficiente da Igreja, mas sem permitir que ela se torne um elemento perturbador e crítico ou um fator de risco para a autoridade do papa. [3]
No Sínodo extraordinário de 1985, quando foi convocado pelo Papa João Paulo II para comemorar os 20 anos de encerramento do Vaticano II, outra questão eclesiológica precisava ser resolvida: a noção de Igreja enquanto “Povo de Deus”.
Segundo Joseph Komonchak, em algum momento entre o concílio e o sínodo se acreditou que para acentuar o mistério da Igreja era preciso minimizar a Igreja como Povo de Deus, a ponto de alguns observadores chegarem a falar que o sínodo “enterrou” a expressão “Povo de Deus”. [4]
De fato, nos debates do sínodo e nos seus documentos finais, era claramente possível ver que algumas decisões teológicas feitas pelo Vaticano II tinham sido revisadas e reinterpretadas pelo papa João Paulo II. A noção de Igreja “Povo de Deus” perdeu o ímpeto que ganhara vinte anos antes no concílio.
Pois bem, o Papa Francisco pôs fim, em um único discurso, à Nota explicativa praevia de 1964 e às conclusões do Sínodo de 1985.
“Desde o início de meu ministério como bispo de Roma tenho intentado valorizar o Sínodo, que constitui uma das heranças mais preciosas da última reunião conciliar”. Assim, Francisco, mais uma vez, explicita seu desejo de aprofundar a eclesiologia do Vaticano II por meio do Sínodo. Cita os 3 últimos papas (Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) e os seus desejos de aperfeiçoarem a prática da sinodalidade. Mas o modo como Francisco fez para melhorá-lo foi o de propor a realização deste atual Sínodo das Famílias em duas partes e apelando para uma ampla consulta aos fiéis católicos do mundo.
Diz ele: “Devemos prosseguir por este caminho. O mundo em que vivemos, e que estamos chamados a amar e servir também em suas contradições, exige da Igreja a potencialização de sinergias em todos os âmbitos de sua missão. É precisamente o caminho da sinodalidade, o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”.
Se o projeto eclesiológico de Francisco era, até agora, de uma Igreja “em saída”, “acidentada”, misericordiosa como um “hospital de campanha”, ele acrescenta o “caminho da sinodalidade” como um modo da Igreja se apresentar à sociedade. Como João Paulo II, deseja uma Igreja internamente mais coesa, não pelo disciplinamento e centralização, mas por meio de maior participação e envolvimento na tomada de decisões em todos os níveis eclesiais: leigos, clero e bispo de Roma.
De fato, Francisco toca na questão espinhosa do exercício da autoridade na Igreja. Como bem afirma Bernard Sesböue, três dimensões na organização eclesial (ou melhor três estruturas) são atestadas na Igreja primitiva: a dimensão pessoal da presidência episcopal, a dimensão colegial e a dimensão comunitária. [5]
É sobre cada um destes princípios que Francisco organiza seu discurso. Para isso, ele não fica somente em um discurso teológico mas apresenta as estruturas de sinodalidade que já existem na Igreja que, no entanto, precisam ser mais valorizadas e até mesmo aprofundadas.
Como na Lumen Gentium, Francisco inicia pela dimensão comunitária valorizando o “Povo de Deus” e a infalibilidade do crer (“infalible in credendo”), “instintiva” nos leigos para discernir novos caminhos, a partir de uma melhor compreensão do sensus fidei (recentemente a Comissão Teológica Internacional elaborou um documento em que chama a atenção para uma melhor valorização do sensus fidei na Igreja), deixando de lado qualquer possibilidade deles serem apenas receptores e impedindo à uma rígida divisão na Igreja entre os que ensinam e entre os que aprendem. O povo pode ensinar também.
Daí podermos entender sua estratégia, para este Sínodo, do recurso de uma ampla consulta ao sensus fidei do povo de Deus. Apesar das grandes dificuldades para “escutar” todas as vozes, e também pelos muitos bloqueios nos níveis nacionais, regionais e locais, foi um modo importante de participação.
Ainda neste primeiro nível, Francisco lembra que o exercício da sinodalidade se realiza nas Igrejas particulares. Ali existem, além do Sínodo diocesano onde leigos e presbíteros são chamados a colaborar com o bispo para o bem da comunidade eclesial, outros “organismos de comunhão”: o Conselho Presbiteral, o Colégio de Consultores e o Conselho Pastoral Diocesano. “Somente na medida em que estes organismos permanecem conectados com a ‘base’ e partem do povo, dos problemas de cada dia, pode começar a tomar forma uma Igreja sinodal: tais instrumentos, que algumas vezes procedem com cansaço, devem ser valorizados como ocasião de escuta e de participação”.
O segundo nível é o da colegialidade episcopal. Neste ponto, Francisco chama a atenção para o papel das Conferências Episcopais, enquanto uma das instâncias intermediárias de colegialidade episcopal. Mas reconhece que este espírito ainda não se realizou plenamente. Daí, repete o que tinha escrito na Exortação Evangelii gaudium: “em uma Igreja sinodal, como já afirmei, ‘não é oportuno que o Papa substitua os Episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que se colocam em seus territórios. Neste sentido, advirto para a necessidade de proceder a uma saudável descentralização’” (EG 16) (aqui surgiram as únicas palmas vindas mais do fundo da Sala Paulo VI onde estavam os auditores, peritos e bispos. Na parte da frente, onde estavam os cardeais, somente alguns se manifestaram).
Em seguida, ele passa a tratar do último nível “aquele da Igreja universal”. Aqui, neste momento do discurso, Francisco rompe completamente com a Nota explicativa praevia de 1964 de uma forma magnífica.
Antes ele esclarece sobre a necessidade de o Sínodo atuar sempre “cum Petro et sub Petro”. Este princípio não limitaria a liberdade dos membros do colégio, mas sim é o garantidor da unidade de todos os seus membros. Os bispos estariam em uma comunhão episcopal (cum Petro) e em uma comunhão hierárquica (sub Petro).
Francisco articula os princípios da presidência (sub Petro) com o da colegialidade (cum Petro) com uma compreensão da antiga Tradição da Igreja do primeiro milênio (citando Santo Inácio de Antioquia), e não daquela tradição que vai até somente a Reforma de Gregório VII. Vale à pena reproduzir literalmente suas palavras aqui: “O Papa não está, por si mesmo, por cima da Igreja; e sim dentro dela como Batizado entre os Batizados e dentro do Colégio episcopal como Bispo entre os Bispos, chamado por sua vez, como Sucessor do apóstolo Pedro - a guiar a Igreja de Roma, que preside no amor a todas as igrejas”.
Assim, defende a necessidade e a urgência de se pensar a uma “conversão do papado” (ao nosso ver ele já iniciou este processo) para que se possa compreender a questão do “poder hierárquico” a partir da prática de Jesus de Nazaré: que o primeiro se faça último. Desta forma, diz Francisco, “nesta Igreja, como que em uma pirâmide invertida, onde o topo se encontra por debaixo na base. Por isso, quem exerce a autoridade se chamam ‘ministros’: porque, segundo o significado originário da palavra, são os menores de todos. (...) E, num horizonte semelhante, o mesmo sucessor de Pedro é o servus servorum Dei”.
Francisco inverte a pirâmide hierárquica e a coloca de cabeça para baixo. Talvez Francisco não tenha pensando, mas a melhor representação gráfica seria a de três círculos concêntricos onde, de fora para dentro, estariam a comunidade de fiéis, dentro dela a colegialidade e no interior das duas a presidência do romano pontífice, numa perspectiva mais horizontal que vertical.
Ele não falou explicitamente, mas implicitamente Francisco repropõe o primado na forma de um “primus inter pares”. E isto, de fato, tem implicações ecumênicas e políticas profundas.
Do ponto de vista ecumênico, Francisco vê no princípio da sinodalidade, e no serviço de quem preside na caridade as Igrejas, elementos significativos para o amadurecimento e para a reaproximação com as demais comunidades cristãs.
E do ponto de vista político, o princípio da sinodalidade pode ser um sinal visível para o mundo da democracia e da administração da coisa pública, bem como colocar a Igreja à serviço da humanidade, “caminhando junto” com suas alegrias e tristezas, em vista das gerações futuras.
Independentemente do resultado deste Sínodo da Família, a recepção do Vaticano II entra em uma nova fase: a de um novo aggiornamento ad intra e ad extra da Igreja. Do ponto de vista eclesiológico este Sínodo marca, contra todos os “reacionários”, a “reforma” e a “revolução” de Francisco.
Por isso, Francisco tem razão ao citar São João Crisóstomo: “Igreja e Sínodo são sinônimos”.
Notas:
[1] FAGGIOLI, Massimo. Vaticano II: a luta pelo sentido. SP: Paulinas, 2013, p. 140.
[2] Id. Ibid., p. 141.
[3] Apud. FAGGIOLI, p. 143.
[4] Apud. FAGGIOLI, p. 124.
[5] SESBOÜÉ, Bernard. Magistério e Consciência. In: Perspectiva Teológica. Belo Horizonte, Ano 44, Número 124, p. 410, Set/Dez 2012.
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O fim do Sínodo de 1985: a aula de eclesiologia de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU