Por: André | 27 Setembro 2015
“Se Francisco tivesse ficado na especulação dos pensadores teológicos mais excelsos, é provável que hoje não se comentaria em quase todos os meios de comunicação o que os congressistas dos Estados Unidos tiveram que ouvir ali, em seu grandioso Capitólio. Se tiveram que ouvi-lo, sem dúvida alguma é porque o Papa que temos leva consigo, incorporado em sua vida, a ‘perigosa memória’ de Jesus.”
A análise é de José María Castillo, teólogo e padre, e publicada por Religión Digital, 25-09-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Na quinta-feira, 24 de setembro de 2015, pela primeira vez na história, um papa de Roma fez um discurso no Capitólio de Washington, dirigindo-se aos congressistas da maior potência do mundo. Jorge Mario Bergoglio não enrolou. Foi direto aos assuntos que mais diretamente afetam a grande maioria dos habitantes do planeta.
Mesmo sabendo que alguns dos temas que Francisco ali expôs não sejam precisamente aqueles que melhor soam aos ouvidos de muitos dos legisladores que ali ouviram o Papa. “Se é verdade que a política deve servir à pessoa humana, não pode ser escrava da economia e das finanças”, disse o Bispo de Roma a um Congresso formado em sua maioria por milionários a serviço dos interesses obscuros e inconfessáveis dos mercados.
Se a isto somamos a condenação inapelável do tráfico de armas, das guerras, o pronunciamento contra a pena de morte e a solidariedade com os pobres deste mundo, tudo isto devia ter soado no Congresso dos Estados Unidos como, anos atrás, soaram em toda a América os discursos proféticos de Martin Luther King.
Dito isso, vou ao ponto que quero destacar nesta reflexão. Qual é a teologia do Papa Bergoglio? Esta pergunta é compreensível. Porque, como é do conhecimento de todos, são muitos os que, em ambientes eclesiásticos, sentem saudades da sapiência teológica do Papa anterior, Bento XVI, cuja presença distinguida e linguagem cuidada de sábio alemão contrastam com a imprevisível e – para alguns – desalinhada figura de Francisco. Já ficou claro para todo o mundo que o Francisco se sente mais em casa entre o povo simples da rua do que entre distinguidos e seletos estudiosos dos mais refinados saberes.
É por isso Francisco menos teólogo que Ratzinger? Não é menos. Também não é mais. É diferente. Aqui seria bom recordar que, no Novo Testamento, encontram-se duas formas de fazer teologia.
Há, por um lado, a “teologia especulativa”, de Paulo. E há, em outro contexto, a “teologia narrativa” dos Evangelhos. Ou seja, a especulação ideológica, mais própria da cultura helenista (própria de Paulo), e o relato histórico, característico da tradição bíblica. Não se poderia dizer que Ratzinger se move como peixe na água com a teologia especulativa, ao passo que Bergoglio encontra-se em seu ambiente quando desce das alturas, da especulação do “ser”, para o concreto e tangível do “acontecer”?
É evidente que o pensamento especulativo seduz determinadas mentalidades por sua profundidade e sua capacidade analítica. Mas não é menos certo que, na hora da verdade, o que decide a felicidade ou a infelicidade das pessoas não é a profundidade da cabeça pensante, mas a clara evidência do que acontece, o que acontece conosco a cada dia, o que nos faz felizes ou infelizes.
O que aconteceu na Igreja é que, com o passar do tempo, quando a teologia ficou sistematizada e foi organizada em tratados (que ainda são estudados nos seminários e ensinados nos catecismos), a teologia especulativa de Paulo foi mais determinante que a teologia narrativa dos Evangelhos. E assim – por exemplo – ensina-se mais às pessoas a “religião de redenção”, pregada por Paulo (G. Bornkamm), e se ensina talvez menos a “memória perigosa e subversiva” (J. B. Metz) de Jesus.
Felizmente, o Papa Francisco não se cansa de repetir que temos que voltar ao Evangelho, que temos que lê-lo, meditá-lo, entendê-lo, levá-lo no bolso. Se não fizermos isto, e se isto não se tornar vida em nós, cairemos irremediavelmente no cristianismo da mentira e do engano. Digo-o com clareza e com poucas palavras.
Se Francisco tivesse ficado na especulação dos pensadores teológicos mais excelsos, é provável que hoje não se comentaria em quase todos os meios de comunicação o que os congressistas dos Estados Unidos tiveram que ouvir ali, em seu grandioso Capitólio. Se tiveram que ouvi-lo, sem dúvida alguma é porque o Papa que temos leva consigo, incorporado em sua vida, a “perigosa memória” de Jesus.
Por isso, tirou da “parresía” necessária, para dizer na cara dos homens mais poderosos do mundo que eles têm que organizar as coisas de outra maneira. Não se pode suportar que alguns poucos nadem em todas as abundâncias, enquanto a imensa maioria da humanidade se afoga, morre, entre gritos de desespero.
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“O discurso do Papa no Congresso soou como os discursos proféticos de Martin Luther King”, afirma José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU