Por: Jonas | 16 Abril 2015
Uma nova democracia se prepara para ingressar no círculo das potências que, com o pretexto da luta contra o terrorismo, colocam o conjunto de seus cidadãos no cerco de uma estreita vigilância digital. A Assembleia Nacional francesa começou, ontem, a análise de um projeto de lei sobre “a informação”, elaborado pelo Executivo. Três meses após os atentados contra o semanário Charlie Hebdo e o supermercado kosher do leste de Paris, o governo socialista optou pelo modelo norte-americano: propor uma lei que permite aos serviços secretos, polícia e outras tantas dependências administrativas desse tipo espionar mais ou menos a todo o mundo. Como deixou perfeitamente retratado o matutino Libération, em uma de suas últimas manchetes: “Todos espionados, todos vigiados”.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 14-05-2015. A tradução é do Cepat.
O projeto de lei dota os seis serviços secretos ou de Inteligência com meios suplementares para investigar. Entre outros, um dos problemas está, por exemplo, no fato de que a maioria desses serviços poderá atuar sem a supervisão de um juiz. Basta-lhes apenas uma autorização administrativa para ter acesso a dados privados fora de todo controle judicial. De agora em diante, será possível que os serviços de Inteligência recorram livremente a um dos dispositivos digitais mais controvertidos que existem, os chamados Imsi-Catchers. Trata-se de um joguinho mediante o qual é possível captar os metadados de uma conversa telefônica, e inclusive escutá-la. Basta imaginar o que traria como resultado um sistema assim, colocado em uma estação central ou um aeroporto.
O primeiro-ministro francês, Manuel Valls, afirmou que o projeto de lei “proibirá a vigilância em massa”. No entanto, seu conteúdo está longe de legitimar essa posição. Os serviços de Inteligência tem o caminho aberto para interceptar comunicações de pessoas supostamente suspeitas; ter acesso a redes e bases de dados; forçar operadores que oferecem acesso à Internet, redes sociais, motores de busca e empresas que lidam com bases de dados para entregarem informação sobre os conteúdos, quando uma pessoa ou um grupo estiver no radar da suspeita de atividades terroristas. A lei obriga as empresas que oferecem acesso à rede a instalar “caixas pretas” que devem captar de forma automática os “sinais débeis” dos comportamentos típicos dos terroristas. Em suma, toda a sociedade estará no moinho da pesca de informação. Os serviços de Inteligência e o Executivo fazem todos pagar o tributo da inoperância que demonstraram com os autores das matanças de Paris, em janeiro passado. Os serviços se concentraram na ameaça potencial do Estado Islâmico e deixaram com as mãos livres os militantes da Al-Qaeda na Península Arábica.
A filosofia da lei inverte de fato a pirâmide da informação secreta: os serviços de Inteligência não arrancam suas investigações a partir de um alvo suspeito, mas de uma massa de metadados extraídos para encontrar um alvo. Concretamente, todo mundo será espionado até que apareça esse suspeito. A lei levantou duras críticas e protestos. “É pior do que a NSA”, comentou Adriane Charmet, coordenadora do grupo militante pelas liberdades digitais La Cuadratura del Net. De fato, o texto de lei contém ambiguidades irritantes e escorregadias que podem fazer de qualquer inocente um culpado em potência. Um dos parágrafos que definem o marco de ação dos novos dispositivos se refere à “prevenção do prejuízo à forma republicana das instituições”. Frase pomposa que, no entanto, como explica o presidente do sindicato dos advogados da França, Florian Borg, pode permitir que caso haja uma manifestação com certo risco, “o organizador da manifestação seja vigiado”.
Sindicato da Magistratura, jornalistas, Anistia Internacional, Liga dos Direitos Humanos e outras ONGs denunciaram o alcance desta lei altamente policial. O juiz Marc Trevit, até algumas semanas atrás membro do polo antiterrorista do Tribunal de Instância de Paris, disse ao semanário L’Express que tal lei “abre caminho à generalização de métodos intrusivos”. Não é para menos: microfones ocultos, câmeras, balizas de geolocalização, programas de espionagem, dispositivos de espionagem caracterizados serão utilizados de maneira massiva e recorrente. O que antes era reservado ao polo antiterrorista e às investigações sobre essa ameaça, será o grande instrumento em expansão.
As autoridades se defendem dizendo que a futura Comissão Nacional de Controle das Técnicas da Informação (CNCTR) terá amplos poderes para supervisionar as práticas. Contudo, a lei é tão permissiva com as liberdades que chega inclusive a permitir que, em “caso de urgência excepcional”, os serviços intervenham sem nenhuma autorização. Com o tom e a linguagem militar que o caracteriza, Valls qualificou como “mentirosos e irresponsáveis” os setores que ousam comparar a lei francesa com o Patriot Act norte-americano. Os membros do Observatório Digital das Liberdades consideram, não sem razão, que o projeto de lei é pura e claramente “liberticida”.
Raquel Guarrido, integrante do Partido de Esquerda, lamentou que “a luta contra o terrorismo sirva novamente para fazer passar medidas de vigilância de massas”. Google, Facebook, Twitter, Yahoo!, os vendedores de acesso à Internet, e inúmeras plataformas digitais e dispositivos eletrônicos serão os novos aliados da segurança mundial. Os islamistas radicais são muito eficazes: suas ações conseguem, além de semear o terror, fazer com que as democracias ocidentais atuem como as ditaduras das quais eles derivam. Vigilância massiva, violação da privacidade, transferência de poderes do judicial para o policial. Mal que pesa aos ‘tecnodominados’, a Internet é um fabuloso recreio para entrar na consciência de cada habitante desta Terra.
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França. Todos vigiados em nome da segurança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU