Por: André | 26 Março 2015
“O que, em geral e fora do território, é conhecido como a Revolução de Rojava, é uma mudança importante na filosofia política e programática que aconteceu no Curdistão. No entanto, esta mudança não se limita à região de Rojava... É um movimento em expansão que se define por ‘uma sociedade ecológica, democrática e de igualdade de gênero’ – um conjunto de ideias, instituições e práticas que compõem o panorama político, econômico e social da chamada ‘Autonomia Democrática’ e ‘Confederalismo Democrático’”.
Fonte: http://bit.ly/1FHEWF4 |
A análise é de Alexander Kolokotronis e publicada no sítio Comité de Solidaridad con Rojava e el Pueblo Kurdo, 15-03-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
O que, em geral e fora do território, é conhecido como a Revolução de Rojava, é uma mudança importante na filosofia política e programática que aconteceu no Curdistão. No entanto, esta mudança não se limita à região de Rojava, ou o que muitos chamam de Curdistão sírio ou Curdistão ocidental – uma região em que o Partido da União Democrática participou ativamente desta mudança. Na parte “turca”, ou o norte do Curdistão, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão tem sido o líder mais importante. No Curdistão Oriental (nas fronteiras iranianas), o Partido da Vida Livre no Curdistão também levou a uma mudança na orientação ideológica. É um movimento em expansão que se define por “uma sociedade ecológica, democrática e de igualdade de gênero” – um conjunto de ideias, instituições e práticas que compõem o panorama político, econômico e social da chamada “Autonomia Democrática” e “Confederalismo Democrático”.
Como indicado em Autonomia Democrática no Curdistão do Norte – livro escrito por um grupo da Tatort Curdistão (uma organização de defesa dos direitos humanos com sede na Alemanha, Tatort se traduz por “Na cena do crime”) que, para sua pesquisa, se deslocou da Alemanha para o Curdistão, a mudança de paradigma para Autonomia Democrática e Confederalismo Democrático significou renunciar, em vez disso, à criação ‘de um Estado-nação socialista’, buscando criar “uma sociedade na qual as pessoas possam viver juntas sem instrumentalismo, patriarcalismo, racismo, ‘uma sociedade ética e política’ com uma estrutura democrática baseada na autogestão institucional” (Tatort Kurdistão, Autonomia Democrática no Curdistão do Norte).
Em suma, a “democracia sem Estado”
Ao contrário do que muitos poderiam crer, a mudança ideológica não aconteceu nos últimos meses, nem sequer no ano passado. Em vez disso, a luta por essa vitória dura mais de uma década. Começou quando Abdullah Öcalan, líder histórico do antes marxista-leninista Partido dos Trabalhadores do Curdistão, proclamou a Declaração do Confederalismo Democrático. Nela, Öcalan desconstruiu o Estado-nação, considerando a entidade organizacional é um obstáculo à autodeterminação, em vez de uma expressão dela. Öcalan afirma: “Dentro do Curdistão, o confederalismo democrático se estabelecerá nas aldeias, povoados e assembleias da cidade, e aos seus delegados será confiada a real tomada de decisões”. Para Öcalan isto significa que “o confederalismo democrático do Curdistão não é um sistema estatal, mas um sistema democrático de um povo sem um Estado”.
Este sistema de Autonomia Democrática e Confederalismo Democrático inclui as redes de empresas autogestionadas de trabalhadores, entidades de autogoverno comunal, assim como as federações e associações operacionais de grupos que se sobrepõem de acordo com os princípios da auto-organização. Mais ainda, esta nucleação opera em base à democracia participativa direta, assim como também as estruturas de bairro através de um sistema de conselhos.
O ano de 2005 foi um período de mudanças não apenas teóricas ou ideológicas. Ele também marcou o início da construção dos conselhos. No meio urbano, isto aconteceu nos níveis centrais de bairro, distrito e cidade. Em 2008 e 2009, esses conselhos foram reorganizados com a finalidade de incluir a entrada e o poder de várias “organizações da sociedade civil, associações de mulheres e de meio ambiente, partidos políticos e grupos profissionais, como jornalistas e advogados” (Tatort...).
No entanto, antes de continuar é importante discutir as raízes ideológicas do Confederalismo Democrático.
As raízes teóricas do Confederalismo Democrático
Muito se falou sobre a influência do eco-anarquista americano Murray Bookchin sobre Abdullah Öcalan, preso desde a sua detenção em 1999. Na verdade, através de seus advogados, Öcalan fez contato com Bookchin. Infelizmente, Bookchin estava muito doente para encetar um diálogo sério com Öcalan, mas Bookchin enviou sua esperança de que os curdos seriam capazes de avançar com sucesso rumo a uma sociedade livre. No entanto, a influência mais ampla de Bookchin no movimento Confederalista Democrático não pode ser negada.
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Bookchin é um desconhecido para muitos fora – e inclusive dentro – dos círculos anarquistas. No entanto, a dimensão da sua atividade política e de seus escritos é imensa. Como Janet Biehl diz em seu artigo “Bookchin, Öcalan e a Dialética da Democracia”, após a morte de Bookchin em 2006 o Partido dos Trabalhadores do Curdistão foi mais longe ao chamar Bookchin de “um dos maiores cientistas sociais do século XX”.
Bookchin definiu o que ele chamou de Ecologia Social em seu livro Refazendo a sociedade, dizendo que “os problemas básicos que colocam a sociedade contra a natureza surgem de dentro do próprio desenvolvimento social” e que ter posto sociedade e natureza em uma oposição binária foi ao mesmo tempo descritiva e prescritivamente errado. Mais elaborada e sucintamente, “a dominação do homem pelo homem precedeu a noção de dominar a natureza. De fato, a dominação humana do ser humano deu lugar à própria ideia de dominar a natureza”.
Com a ecologia social, Bookchin buscou ampliar em alcance, matizes e profundidade a forma como vemos os sistemas de opressão e as formas como se entrelaçam e frequentemente servem à produção da hierarquia social. Bookchin olha tanto as raízes da hierarquia como as suas diversas manifestações e institucionalizações se apóiam mutuamente, assim como as condições da sua abolição e a fundação de instituições sobre a base das relações não hierárquicas.
Assim como muitos anarquistas, Bookchin vê o Estado como a mais alta manifestação da organização hierárquica. Por que a oposição ao Estado? Nas próprias palavras de Bookchin, em seu livro Refazendo a sociedade:
“No mínimo, o Estado é um sistema profissional de coerção social, não apenas um sistema de administração social, como ainda é ingenuamente considerado pelos teóricos políticos públicos e a maioria dos pensadores burgueses e ‘profissionais’. A palavra ‘profissional’ deve ser destacada, assim como a palavra ‘coerção’. Existe coerção na natureza, nas relações pessoais, nas comunidades não estatais e não hierárquicas. Se só utilizamos a coerção para definir o Estado, nós o estaríamos reduzindo a um fenômeno natural, o que sem dúvida não é. Somente quando a coerção se institucionaliza em uma forma profissional, sistemática e organizada de controle social, ou seja, quando as pessoas são arrancadas de sua vida cotidiana da comunidade e se chega não apenas a ‘administrar’, mas a fazê-lo com o apoio do monopólio da violência, podemos falar com propriedade de Estado”.
Em termos de identidade, a coerção é utilizada pelo Estado com a finalidade de moldar um caldeirão de culturas e etnias que Joost Jongerden e Ahmet Hamdi Akkaya assinalam em seu artigo “O Confederalismo Democrático como Primavera Curda: O Partido dos Trabalhadores do Curdistão e a busca de Democracia Radical”, no livro A Primavera Curda, na tentativa de forjar “uma população de única identidade”. As mais das vezes, este tipo de projeto é violento. O Estado turco não foi uma exceção.
A Turquia não permite que se fale outro idioma em seu território, além do turco, nem que outro idioma seja ensinado nas instituições do Estado, incluindo as escolas públicas, e muitas vezes realizara invasões em uma faixa de municípios e organizações da sociedade civil. O caso de Abdullah Demirbas é um exemplo do tratamento recebido por toda a população curda da Turquia. Ele foi eleito, em 2004, prefeito de Sur, um distrito de Amed. Uma de suas promessas foi conduzir sua administração em curdo. No entanto, de acordo com Tatort Curdistão “três anos mais tarde o Conselho de Estado o destituiu por usar o curdo na administração e o assírio e o inglês na prestação dos serviços municipais”. Foi reeleito em março de 2009 por uma ainda maior margem de votos, mas em maio foi preso novamente por supostos vínculos com a União de Comunidades do Curdistão, assim como por “crimes de linguagem”, pelo que foi condenado a dois anos de prisão.
Embora haja diferenças entre Bookchin e o povo curdo, a quem Bookchin influenciou, o que foi mais forte neste ascendente são as metas da construção do “duplo poder” e da implementação de um sistema de governo composto de diferentes formas não estatais, a construção de uma democracia igualitária.
Com uma estratégia de construção do duplo poder busca-se o objetivo de construir, de acordo com Janet Biehl em seu artigo mencionado, “uma luta contra o poder e a destruição do Estado-nação”. Isso significa a construção de uma estrutura social paralela. Ou melhor, a construção de uma rede complexa de instituições alternativas decididamente diferente e que agem em contradição e oposição ao sistema dominante, ou seja, o Estado-nação e o capitalismo. Esta ideia não é original de Bookchin, já que podemos encontrá-la de forma explícita em Vladimir Lênin e León Trotsky, e, ainda antes, nos escritos de Pierre-Joseph Proudhon. Também o próprio Öcalan abarca esta perspectiva de construção do duplo poder com as chamadas “associações regionais de administração municipal que formariam uma rede” e, como tais, “uma administração política não-estatal”.
Como disse um membro do Conselho da Sociedade Democrática “não se trata só de autonomia, trata-se de autonomia democrática”. Como tal, isto significou a organização de instituições fora do Estado que se baseiam e funcionam segundo a auto-organização e a autogestão. Tecer juntos uma rede de solidariedade é, em parte, um produto macro-político da relação entre estas instituições. Estas instituições estão sendo construídas em numerosos níveis locais concêntricos.
Em seu artigo, Jongerden e Akkaya citam um membro de uma junta de bairro em uma das zonas mais pobres da cidade de Amed, que diz: “Nosso objetivo é resolver os problemas de nossas vidas, de nosso bairro, e resolvê-los por nós mesmos sem ser dependentes ou necessitar do Estado”. É o que melhor expressa o significado das comunidades curdas que buscam estabelecer a Autonomia Democrática. Desta forma, Jongerden e Akkaya definem a Autonomia Democrática como as “práticas em que as pessoas produzem e reproduzem as condições necessárias e o desejo de viver através da participação direta e a colaboração de uns com os outros”.
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No entanto, é a combinação de Autonomia Democrática e Confederalismo Democrático que possibilita “ir além do Estado-nação”. Isto se manifesta “como um modelo de rede de auto-organização de pequena escala localizada e auto-administração”. Com o Congresso da Sociedade Democrática, uma rede deste tipo se dá a si mesma sua forma institucional e seu perfil. Em 2005, o Congresso da Sociedade Democrática foi fundado com a intenção de reunir uma diversidade de grupos.
O Congresso da Sociedade Democrática inclui uma cota de gênero: para o seu funcionamento, pelo menos 40% de seus membros e postos de direção devem ser ocupados por mulheres. A estrutura organizativa do Congresso da Sociedade Democrática consiste na Assembleia Geral, que se reúne ao menos duas vezes ao ano, e no Comitê Permanente. A Assembleia Geral é formada com ao menos 1.000 delegados, 60% dos quais provêm de organizações de base, e 40% são funcionários, como os representantes eleitos ou prefeitos. A Assembleia Geral elege um Comitê Permanente de 101 pessoas. Também há um Conselho de Coordenação, formado por 15 pessoas, e que trabalha nas áreas ideológicas.
A Cidade de Amed – Norte do Curdistão
Amed, uma das cidades maiores da região e que pelas estimativas oficiais tem mais de 1,5 milhão de habitantes, faz parte do Congresso da Sociedade Democrática. Assim como em outras cidades do Curdistão, Amed é composta de conselhos e assembleias em todos os níveis. Isto inclui os conselhos de rua, conselhos de bairro, 13 conselhos de distrito, e um ajuntamento. O conselho da cidade é composto por 500 pessoas, que inclui o prefeito, funcionários eleitos, delegados de organizações de mulheres e de jovens, organizações não governamentais, partidos políticos e outros.
O conselho da cidade organiza-se em torno de cinco áreas: social, política, ideológica, econômica e ecológica. Dentro destas cinco áreas, comitês são formados, todos eles com 40% de cota de gênero, como foi mencionado acima. A área de política tem um Comitê Coordenador, que inclui conselhos de mulheres (não são estritamente conselhos de mulheres, que estão auto-organizados, e conselhos mistos de gênero), conselhos de juventude, partidos políticos entre outros. A área econômica centra-se na formação de cooperativas. A área social concentra-se em temas como educação e saúde.
Quanto aos assuntos jurídicos, os comitês administram os conflitos e controvérsias. Seu objetivo é participar da resolução de conflitos a fim de que as partes possam chegar a um consenso. Isto se aplica a questões transversais a toda uma gama de problemas. Em outras zonas do norte do Curdistão, como nas Gewer [comunas libertárias], comissões legais não são integradas apenas por advogados, mas também por ativistas feministas e políticos.
A Cidade de Heseke – Curdistão Ocidental
Heseke, em Rojava, possui um desenho institucional similar a Amed. Como em Amed, o Congresso da Sociedade Democrática tem uma cota de gênero de 40%. Seu conselho é composto por 101 pessoas, assim como cinco representantes de outras cinco organizações, incluindo o Partido da União Democrática e a Juventude Revolucionária. Também há um conselho de coordenação, composto por 21 pessoas. Heseke conta com 16 conselhos de distrito.
Os conselhos distritais têm entre 15 e 30 pessoas, que se reúnem a cada dois meses. Entre 10-30 comunas compreendem um determinado distrito, com 20 municípios que compõem aproximadamente mil pessoas. Isto significa que há, pelo menos, um delgado para cada 100 pessoas em um distrito, que é uma representação muito mais direta que muitas outras estruturas institucionais de todo o mundo. Devemos ter presente também a frequência de convocação das assembleias dos povos, um fenômeno que também se estende através do Curdistão e serve como base para a Autonomia Democrática; muitas áreas no Curdistão têm assembleias populares semanais.
Em Heseke, “as comunas têm comissões que abordam todas as questões sociais, como a organização da defesa, justiça, infraestrutura, jovens, economia e formação de cooperativas”. As comissões para a ecologia ocupam-se também do saneamento e de problemas ecológicos específicos. Também há “comitês para a economia das mulheres, para ajudar as mulheres a desenvolver a independência econômica” (Tatort...).
Esta estrutura também envia delegados ao conselho geral de Rojava. Assim como em muitas outras áreas, no Curdistão prefere-se as resoluções e decisões tomadas por consenso em vez do voto majoritário simples.
O abraço de heterogeneidade
A ‘Carta do Contrato Social’, uma constituição proclamada pelos cantões de Rojava, começa seu documento com um abraço do pluralismo:
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“Nós, os povos das áreas de autodeterminação democrática – curdos, árabes, assírios, sírios, turcomanos, armênios e chechenos – pelo livre arbítrio, nos comprometemos a garantir a justiça, a liberdade, a democracia e os direitos das mulheres e das crianças, em conformidade com os princípios do equilíbrio ecológico, da liberdade das religiões e crenças e da igualdade, sem discriminação por motivos de raça, religião, credo, doutrina ou de gênero, para formar o tecido político e moral de uma sociedade democrática, para funcionar com o entendimento mútuo e a convivência com a diversidade e o respeito pelo princípio da autodeterminação e a autodefesa dos povos”.
Isto por si só, no prefácio da Carta, contradiz as representações muitas vezes simplificadas do Oriente Médio, feitas pelos meios de comunicação ocidentais. De acordo com a tradução de Zaher Baher do Fórum Anarquista Curdistão de seu testemunho intitulado “A experiência do Curdistão Ocidental demonstrou que os povos podem fazer mudanças”, a Carta indica em sua primeira página que “as áreas de democracia e autogestão não aceitam os conceitos de Estado nacional, militar ou de religião, nem de administração ou poder centralizados, mas estão abertos a formas compatíveis com a tradição da democracia e do pluralismo, a todos os grupos sociais e as identidades culturais e a democracia de tipo ateniense e expressão nacional através da sua organização”.
No entanto, caso se queira falar verdadeiramente de um abraço de heterogeneidade, este deve envolver o não-humano tanto quanto o humano. Isto significa ir além do multilinguismo e da diversidade cultural que muitos no norte e no Curdistão ocidental abraçaram – inclusive institucionalmente – e olhar a forma como é abordada a questão ecológica.
Ecologia
Para Aysel Dogan, um ativista ecologista e presidente da Academia Alevi para Crenças e Culturas de Dersim (Alevi, ramo do islamismo xiita; Derism ou Tunceli, cidade da Turquia, foi o centro da rebelião curda de 1921 massacrada pelo Mustafá Kemal), “a melhor maneira de criar o sistema ecológico é construir cooperativas” (Tatort...). Outras atividades com mentalidade ecológica incluem o desenvolvimento de bancos de sementes, o protesto contra qualquer plano de energia nuclear, e impedir a entrada de empresas de mineração.
Todas elas são vistas como um meio para fomentar uma consciência social de orientação ecológica. Grande parte também inclui a educação, e, como tal, a educação ecológica faz parte do surgimento de escolas e outras instituições de ensino na região, e da cooperação interconectada com outros esforços de emancipação.
Educação
Várias escolas foram abertas no Curdistão. Uma delas é a Academia de Ciências Sociais, na Mesopotâmia, fundada no final de agosto em Qamislo no cantão Cizîrê de Rojava, que opera de acordo com “um modelo alternativo de educação”. De acordo com Notícias de Rojava, somente em Cizîrê há 670 escolas com 3.000 professores dando cursos de língua curda para 49 mil estudantes.
As academias de línguas, culturas e de estudos históricos orientadas para a preservação e a construção de identidades não se limitam a Rojava. Elas também estão em franco crescimento no Curdistão do Norte. Em julho de 2012, já havia “13, com vários focos, incluindo nove academias gerais, duas da mulher e duas religiosas, uma para alevitas e outra para outras crenças islâmicas” (Tatort...). Informa-se sobre uma semana de greve de estudantes curdos nas escolas públicas em resposta às limitações impostas à sua língua dentro desses espaços e outras políticas de assimilação.
Comentando sobre uma série de escolas que escapam à órbita do Estado turco e seus representantes na Academia Geral na cidade de Amed, dizem: “Estas escolas querem trabalhar fora da escola do Islã oficial e conectar-se aos movimentos islâmicos de oposição, que rejeitam a ideia de um estado islâmico, embora continuem ligadas ao Islã” (Tatort...).
Segundo indicou a Academia Política de Amed, grande parte da população curda tem uma orientação política anti-capitalista, e uma perspectiva sem Estado, especialmente em nível de base. O Tatort Curdistão informa sobre um curso nessa escola: “Todos os participantes refletem sobre o que aprenderam e formulam uma crítica ao Estado e à classe dominante”. Estas escolas políticas também ensinam coisas fora da análise de classe, como a história da mulher e o desenvolvimento do patriarcado.
Em Amed, também se encontra um centro para mulheres que lhes proporciona apoio que vai das habilidades técnicas e práticas ao ensino da língua curda e a alfabetização e cursos de direito e os direitos das mulheres. Outros centros oferecem cursos de saúde e sexualidade. Também há seminários sobre autonomia democrática.
O poder das mulheres
De múltiplas maneiras, as mulheres estão tomando o poder para si no Curdistão, como resultado dos objetivos principais do movimento. Algo disto já indicamos ao falar da cota de gênero que se institucionalizou em quase todos os níveis da sociedade, e através dos sítios e das academias de aprendizagem. Outro exemplo é a Academia de Mulheres de Amed.
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O Tatort Curdistão cita líderes desta escola: “a libertação da mulher e de gênero é tão importante quanto a libertação da sociedade”. Elas trabalham em projetos como a transcrição de histórias orais e participam da “escrita feminina da história”. Oferecem cursos através de um modelo de intervenção participativa.
Em muitas destas academias e no Movimento Livre Democrático de Mulheres também participam mulheres que procuram capacitar outras para saírem de suas casas. Algumas mulheres, a partir deste movimento, assumem uma perspectiva particularmente radical em relação ao Estado e seu papel na produção de uma lógica hierárquica para dentro da unidade familiar.
Junto com conselhos, escolas e centros de mulheres, existem cooperativas de mulheres nas quais o objetivo é “ajudar as mulheres a criar suas próprias relações de produção, na qual podem trabalhar e participar”, como indica Tatort Curdistão, citando pessoas envolvidas no desenvolvimento cooperativo das mulheres. Através destas alterações de desenvolvimento nas relações de gênero, outras desenvolvem a relação das mulheres com o local de trabalho (inclusive antes havia muito poucos postos de trabalho), com seus esposos e parentes varões (rompendo tabus culturais e papéis de gênero), e com o conjunto da sociedade (inserção cada vez maior no programa Autonomia Democrática). Através destas cooperativas muitas mulheres tornaram-se economicamente independentes e participaram do desenvolvimento de suas capacidades individuais. Assim, através de ambas as coisas estão rompendo com a internalização feminina do patriarcado.
Como assinala Baher, em toda a região norte e oeste do Curdistão há “um sistema chamado Liderança e Organização em Conjunto”, que significa “a direção de qualquer instituição, administração ou militar, deve incluir as mulheres”. Tais critérios organizacionais se manifestam nos conselhos e comitês mencionados neste artigo.
Além disso, as mulheres têm suas próprias forças de segurança. “Portanto, dentro das Unidades de Proteção Popular, houve a formação de Unidades de Proteção da Mulher. A Unidade de Proteção da Mulher, um forte grupo militar formado por 7.000 combatentes esteve à frente da luta contra o Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS). Como era de se esperar, o surgimento da Unidade de Proteção da Mulher afetou significativamente muitas concepções sobre os papéis de gênero condenados de antemão, incluindo as noções dos sistemas de filtragem e os sistemas de dominação masculina”.
O poder da juventude, dos trabalhadores e a autogestão
Com Autonomia Democrática surgiram comitês de juventude, inclusive de menores de 18 anos. Assim como em outros casos, os comitês de juventude têm voz e voto na realização de iniciativas e projetos, por exemplo, na construção e modificação dos espaços de recreação. Além disso, no entanto, algumas das perspectivas mais radicais vieram com uma visão clara da juventude curda.
Tatort Curdistão cita um jovem curdo: “Nós não nos consideramos nacionalistas. Somos internacionalistas socialistas”. Também cita uma declaração: “Neste momento estamos entrando em uma nova fase da revolução através da construção de comunas, coletivos e cooperativas. A auto-organização popular da economia tem o objetivo de assentar as bases para uma mudança global nas relações sociais dominantes... o movimento é a construção da aldeia, das cooperativas de jovens e mulheres... Os diferentes níveis de autogestão nos permitem entrar mais facilmente no processo organizativo”.
Há vários resultados na federação de cooperativas e comunas. De acordo com um membro de uma cooperativa de mulheres em Baglar, as 22 comunas libertárias Gewer foram tão longe a ponto de abolir o dinheiro como meio de troca.
A luta contra o Estado Islâmico
O apoio pela metade dos Estados Unidos para a defesa curda do Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS) não deveria surpreender, especialmente considerando os estreitos laços entre os Estados Unidos e a Turquia. Dada a extensa história de repressão da Turquia sobre os mais de 20 milhões de curdos que residem dentro de suas fronteiras, e dado que atualmente os curdos estão na primeira linha na luta contra o ISIS, a deficiente resposta da Turquia ao ISIS também não deveria surpreender.
Entre 2009 e julho de 2012, mais de 8.000 pessoas foram presas “por sua suposta pertença à União das Sociedades do Curdistão, em virtude da Lei Antiterrotista” (Tatort...). Relatórios e mais relatórios, segundo a mesma fonte, afirmam que ao menos 10.000 pessoas foram presas em operações contra a União das Sociedades do Curdistão. A prisão dos curdos é tamanha que há exemplos em que 35 pessoas estão presas em uma única cela, e são obrigadas a dormir uma encima da outra. A superlotação nas prisões chegou a tal ponto que as celas de tipo F, originalmente destinadas à reclusão solitária, muitas vezes abrigam quatro pessoas.
A política da Turquia de ampliar sua base de energia hidroelétrica através da construção de represas serviu duplamente como meio para destruir a cultura curda. Como disse Aysel Dogan, chefe da Academia Alevi para Crença e Cultura: “Os lugares santos estão em perigo devido às barragens. O Estado enviou um suposto cientista aqui para dar um parecer. Ele disse que aqui só há pedras. Mas estas pedras são sagradas para nós”.
Muitas questionam o baixo nível de resposta ao ISIS, até agora, da Turquia e dos Estados Unidos. No dia 22 de setembro, a BBC informou que a Turquia fechou a fronteira para dezenas de milhares de refugiados curdos. Isto não surpreende se verificarmos a relação entre a Turquia e os curdos, e mesmo a cautela do governo dos Estados Unidos diante de uma política que reforce a defesa curda. Só ultimamente o governo dos Estados Unidos forneceu armas às forças curdas em Kobane. Relatórios recentes do Movimento de Solidariedade de Trabalhadores mostram vitórias dos curdos sobre o ISIS. No entanto, é de se perguntar até que ponto o governo dos Estados Unidos está disposto a apoiar as forças curdas que têm fortes tendências contra o Estado e o capitalismo.
Simultaneamente a tudo isso, a Turquia permitiu a passagem das peshmerga curda iraquiana para que pudessem chegar a Kobane, em Rojava, e assim, participar da luta contra o ISIS. A princípio isso pode parecer uma mudança de política por parte da Turquia para com os curdos, mas não é bem assim se tivermos em conta que entre as quatro regiões do Curdistão, foi de longe melhor a sua relação com o Governo Regional do Curdistão Iraque, Curdistão Sul. O Governo Regional do Curdistão, dirigido por Massoud Barzani, sempre esteve em violenta tensão com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, e, naturalmente, a Turquia comemora esses episódios de violência entre os dois lados curdos. O Governo Regional do Curdistão também guarda desconfiança em relação às atividades em Rojava do Partido da União Democrática, que mantém uma relação cordial com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão.
Conclusões
Para qualquer socialista libertário os processos no Curdistão, na última década, são fortemente encorajadores. Muitos curdos pensam que o Confederalismo Democrático pode ser um órgão com potencial capacidade transnacional. Muitos dentro do Curdistão, incluindo o próprio Öcalan, acreditam que o Confederalismo Democrático será um meio para obter a paz e a emancipação no Oriente Médio.
Os defensores do Confederalismo Democrático, como indica sua aparente abertura à diversidade cultural, não consideram isto simplesmente como uma solução para a população curda, mas também apontam para a multiplicidade de grupos e etnias que formam uma região mais ampla. Öcalan chegou a afirmar que a dualidade de poderes deve ser construída em uma escala global, no sentido de formar um corpo transnacional capaz de competir com as Nações Unidas.
A Autonomia Democrática e o Confederalismo Democrático constituem não somente um impulso ideológico e institucional para livrar-se do Estado e do capitalismo, mas também constituem um sistema capaz de substituir as estruturas políticas e representativas por práticas autônomas e participativas. No entanto, as instituições e práticas que constituem a Autonomia Democrática e o Confederalismo Democrático devem se aprofundar para o interior e para o exterior e avançar na crítica de todos os marcos sociais hierárquicos, e na realização de uma perspectiva social não hierárquica e anti-hierárquica, uma visão que deve ser seguida para a implementação e a atualização.
[Um esclarecimento que não deveria ser necessário. Traduzir e divulgar um material não significa compartilhar o mesmo, é compartilhar algo que consideramos que é suficientemente importante para ser conhecido por todos, independentemente de como pensamos. As nossas opiniões surgem a partir do nosso conhecimento; caso contrário, seria um desastre. (Fernando Moyano, tradutor para o espanhol)]
Fontes:
http://opencuny.org/theadvocate/2014/10/30/the-no-state-solution-institutionalizing-libertarian-socialism-in-kurdistan/
https://redlatinasinfronteras.wordpress.com/2015/02/23/el-socialismo-libertario-en-kurdistan/
http://libcom.org/news/experiment-west-kurdistan-syrian-kurdistan-has-proved-people-can-make-changes-zaher-baher-2
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A solução sem Estado. Institucionalização do Socialismo Libertário no Curdistão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU