26 Março 2015
Quando leio os cientistas políticos contemporâneos descrevendo "o fim do sistema de Westfália", a próxima "superação do Estado-nação" e argumentando uma forma ou outra de governança global, eu sempre penso no segundo capítulo de Isaías. Na visão de Isaías, o pluralismo é uma característica permanente da vida humana e da sociedade internacional.
A opinião é do filósofo político estadunidense Michael Walzer, professor emérito do Institute for Advanced Study (IAS), de Princeton, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 22-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o filósofo, "na visão de Isaías, o pluralismo é uma característica permanente da vida humana e da sociedade internacional, e as muitas nações todas são, e serão até nos últimos dias, soberanas e autodeterminadas – caso contrário, não poderiam ser repreendidas, de bom direito, por aquilo que fazem".
"Não somos capazes de fazer com que lobos e cordeiros entrem em acordo pacificamente, - conclui Walzer - mas somos capazes de fazer com que "muitos povos" vivam juntos em paz?"
Eis o texto.
"No final dos tempos, o monte do Templo do Senhor estará firmemente plantado no mais alto dos montes, e será mais alto que as colinas. Para lá correrão todas as nações. Para lá irão muitos povos, dizendo: 'Venham! Vamos subir à montanha do Senhor, vamos ao Templo do Deus de Jacó, para que ele nos mostre seus caminhos, e possamos caminhar em suas veredas'. Pois de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor. Então ele julgará as nações e será o árbitro de povos numerosos. De suas espadas eles fabricarão enxadas, e de suas lanças farão foices. Nenhuma nação pegará em armas contra outra, e ninguém mais vai se treinar para a guerra" (Isaías, capítulo 2, 1-4).
Essa esplêndida visão também se repete no livro de Miqueias. Não me interessam as discussões acadêmicas sobre quem descreveu por primeiro as muitas nações que afluem em Jerusalém – Isaías ou Miqueias, ou um profeta desconhecido que foi a fonte para ambos; e nem tentarei entender quando a descrição foi pronunciada ou escrita. Essas não são questões relevantes aqui.
O segundo capítulo de Isaías é claramente um texto messiânico, porque descreve os últimos dias, não os nossos dias, mas as suas profecias não sugerem a ruptura radical descrita, ao contrário, no capítulo 11 (se aceitarmos a interpretação "forte").
Ao contrário, é a visão de um mundo que é diferente, mas não tão difícil de se imaginar; certamente, não é um mundo inatural ou desnaturado. Embora o texto possa não soar como realista à primeira leitura – é uma visão, afinal –, quero defender o seu realismo. Também quero convencer o leitor de que essa é a melhor das concepções da paz bíblica e que é o relato de uma sociedade internacional que poderíamos até aspirar a realizar.
A descrição maimonediana do tempo messiânico, com a sua alternativa a uma interpretação literal dos versículos sobre os lobos e os cordeiros, provavelmente é consequente à leitura aproximada de textos como esse. A visão de Isaías, no entanto, não começa com a aceitação por parte de toda a humanidade da verdadeira religião – nesse sentido, é como o tratado de paz entre Acab e Ben-Hadad, que não requer a conversão de Ben-Hadad.
O segundo capítulo de Isaías começa mais modestamente, falando de "muitos povos" (nem todos os povos) que se exortam uns aos outros a aprender os caminhos do Senhor: "Venham! Vamos subir... ele nos mostrará seus caminhos".
O profeta imagina uma disponibilidade a aprender que, obviamente, não existia no seu tempo, mas é uma disponibilidade e não ainda a fé aquilo que as suas palavras descrevem. Não é exatamente triunfalismo religioso (embora se aproxime disso) e, o que é mais importante para nós, não há aqui nenhum triunfalismo político.
Israel não é vitorioso na batalha, nem domina de modo imperial na visão de Isaías. Há passagens proféticas – justamente em Isaías – que descrevem os reis israelitas enquanto recebem o tributo dos vizinhos derrotados, mas aqui não há nada disso.
Com efeito, seria difícil formular um relato bíblico de um domínio imperial universal – mesmo para um rei davídico – já que é só Deus que pode ser, como diz o profeta Zacarias, "rei sobre toda a terra". Maimônides entende esse segundo texto de Isaías justamente quando insiste no fato de que os profetas "não desejavam os dias do Messias para que Israel pudesse exercer o domínio sobre o mundo ou governar sobre as nações, ou ser exaltado pelas nações".
O Deus que ensina e a lei que é ensinada na visão de Isaías são singulares em natureza, mas os povos que sobem estão no plural, e a sua pluralidade é a chave, acredito, para entender o significado profundo do texto. O pluralismo é expressado na plenitude da sua força na versão de Miqueias da profecia, quando ele conclui com uma passagem que provocou muitos comentários:
"Todos os povos caminham, cada qual em nome do seu deus; nós, porém, caminhamos em nome do Senhor, nosso Deus para sempre!" (Miqueias, capítulo 4, 5).
Isso parece ser incoerente com o versículo anterior, "e nós caminharemos pelas suas veredas", onde "suas" se refere ao "Deus de Jacó". Ao contrário, nesse versículo do livro de Miqueias, "seu" se refere decididamente a outros deuses.
No entanto, o texto inclui também a referência ao Deus de Jacó, portanto, devemos imaginar os povos caminhando simultaneamente em nome de diversos deuses, presumivelmente em direções diferentes, o que é impossível até mesmo no tempo messiânico, enquanto o mundo segue o seu curso normal.
Miqueias oferece aquilo que eu acredito que seja o reconhecimento mais radical do pluralismo religioso na Bíblia inteira. Vou focar a atenção, no entanto, somente no texto de Isaías, onde o pluralismo não é de caráter religioso, mas étnico ou nacional.
Ainda haverá "muitas nações" na era messiânica. Esse fato segue a rejeição dos profetas de assegurar um domínio universal a Israel. Dado o programa de redução dos armamentos que Isaías descreve – espadas convertidas em arados, lanças em foices –, essas nações deverão viver em paz, não porque tenham uma dissuasão em relação ao combate, mas porque não terão armas para combater. Nada de espadas nem de lanças, nem mesmo carros, nem carros armados. No entanto, não viverão em harmonia.
Ainda haverá conflitos e disputas entre eles, que exigirão os juízos de Deus e as suas repreensões. Ele "será o árbitro de povos numerosos". Esse é um versículo extraordinário: o que estão fazendo para exigir a atenção crítica de Deus? Não sabemos em que Isaías está pensando aqui, provavelmente não no comércio internacional, embora os negócios comerciais também possam fornecer uma oportunidade para juízos e repreensões.
Em todo o caso, Isaías certamente não imagina a harmoniosa coexistência entre lobos e cordeiros. Porém, somos convidados a acreditar que essa não é somente uma condição melhor em relação a que conhecemos; essa é a promessa de Deus para os últimos dias – não haverá nada melhor do que isso.
Quando leio os cientistas políticos contemporâneos descrevendo "o fim do sistema de Westfália", a próxima "superação do Estado-nação" e argumentando uma forma ou outra de governança global, eu sempre penso no segundo capítulo de Isaías.
O profeta descreve, efetivamente, um tipo de governo universal, mas inclui apenas um dos três poderes convencionais: o Deus de Jerusalém tem apenas a função de juiz em um tribunal mundial. Eu suponho que devamos imaginá-lo como juiz na aplicação dos seus regulamentos – "árbitro" deveria querer dizer isso.
No entanto, ele só age depois do fato, como faz todo tribunal; ele deixa as decisões (o legislativo) e a autoridade executiva de primeira ordem nas mãos das muitas nações, que é justamente o que os atuais proponentes do "fim da soberania" não pretendem fazer.
Na visão de Isaías, o pluralismo é uma característica permanente da vida humana e da sociedade internacional, e as muitas nações todas são, e serão até nos últimos dias, soberanas e autodeterminadas – caso contrário, não poderiam ser repreendidas, de bom direito, por aquilo que fazem.
Embora esse não seja, de alguma forma explícita, um texto sobre a liberdade, é justamente a liberdade o seu tema profundo. A pluralidade das nações e a liberdade das nações estão juntas. A visão de Isaías é voluntarista desde o princípio: "Venham, vamos subir" é um convite, não uma ordem. E os conflitos que exigem o juízo de Deus, além disso, devem ser obra de povos livres.
Isaías é um universalista, mas o seu universalismo deixa muito espaço para a particularidade. Muitas nações livres que vivem livremente sob uma única lei – essa é a sua visão. Devemos torná-la nossa? Poderíamos nos preocupar com um tribunal mundial em que os juízes são humanos, em vez de divinos – um tribunal de sete, ou nove, ou 21 homens e mulheres, em vez de um único Deus onisciente que aplica uma única lei; poderíamos querer estabelecer limites para a extensão e a energia das suas "repreensões". Também poderíamos querer deixar espaço para o ensinamento e para a aprendizagem descritos pelo profeta.
No entanto, essa é uma visão com a qual devemos fazer as contas. Não somos capazes de fazer com que lobos e cordeiros entrem em acordo pacificamente, mas somos capazes de fazer com que "muitos povos" vivam juntos em paz?
Essa é, ao menos, uma possibilidade.
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Um Deus árbitro de muitos povos. Artigo de Michael Walzer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU