12 Agosto 2007
“Não custa lembrar que a Vale foi a empresa que mais contribuiu para a campanha do candidato Lula, em 2006”, declarou o sociólogo Ivo Lesbaupin em entrevista, por e-mail, à IHU On-Line. Lesbaupin, para resgatar a história da mineradora, descreve o avanço do neoliberalismo no Brasil, o plebiscito pela reestatização da Vale, o posicionamento da CNBB, dos movimentos sociais e do governo Lula. Em sua análise, o professor da UFRJ critica o atual governo por ser apenas uma continuação do anterior. Na conversa que segue, Lesbaupin afirma que “o governo procura manter viva a idéia de que é o governo dos movimentos sociais, mas isto é mera propaganda. Quando os movimentos começam a se articular para protestar contra as políticas do governo, os representantes do governo promovem uma reunião com Lula, para tentar acalmá-los”.
Ivo Lesbaupin é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, é mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, da França. É, também, autor e organizador de diversos livros, entre os quais Igreja, movimentos populares, política no Brasil (São Paulo: Loyola, 1983); As classes populares e os direitos humanos (Petrópolis: Vozes, 1984); Igreja: Comunidade e Massa (São Paulo: Paulinas, 1996); e O desmonte da nação: balanço do governo FHC (Petrópolis: Vozes, 1999).
Eis a entrevista.
IHU On-Line - O senhor já afirmou que uma das características do avanço do neoliberalismo é a redução do Estado ao mínimo. Para o avanço do neoliberalismo no Brasil, qual é o significado da estatização da Vale do Rio Doce?
Ivo Lesbaupin – Para sermos mais precisos, seria preciso dizer que o discurso do neoliberalismo é a redução do Estado ao mínimo. Os neoliberais argumentam que o Estado cresceu demais, gasta demais e é, por isso mesmo, insustentável. Por isso, é preciso reduzir os gastos públicos, o funcionalismo público, seus salários, privatizar as empresas estatais. Com isso, se tornaria o Estado mais leve, mais ágil. No entanto, o que ocorre de fato quando as políticas neoliberais são implementadas? O Estado diminui? Absolutamente. Em todos os países onde o neoliberalismo foi implementado, a arrecadação tributária, ao invés de diminuir, aumentou. Veja o caso do Brasil: quando Fernando Henrique Cardoso chegou ao poder, nossa carga tributária correspondia a 29% do PIB. Ao sair, oito anos depois, ela tinha subido para 35,5% do PIB. E, com Lula, continuou subindo, chegando hoje a 37% do PIB. Aí é que está a questão: o Estado extrai mais impostos dos cidadãos, mas não para melhorar os serviços públicos, mas sim para pagar a dívida e seus juros. O Estado é reduzido ao mínimo para o social – saúde, educação, habitação, transporte, trabalho etc. -, mas é aumentado para o capital financeiro.
Vamos tomar o caso das privatizações. Um dos dois principais motivos alegados para a privatização das empresas estatais era o pagamento da dívida pública: com os recursos oriundos da venda destas empresas, reduziríamos a dívida. O que ocorreu de fato? As empresas foram vendidas, mas a dívida, tanto a externa quanto a interna, aumentou exponencialmente. A dívida externa passou de US$ 148 bilhões para US$ 248 bilhões, entre 1995 e 2002, e a dívida interna decuplicou, passando de R$ 62 bilhões para R$ 662 bilhões, no mesmo período.
Veja-se o caso da Vale do Rio Doce. A empresa foi constituída em 1942. Cinqüenta e cinco anos depois, em 1997, ela era a maior mineradora mundial de minério de ferro, possuía a maior frota de navios transportadores de grãos do mundo, duas ferrovias com nove mil quilômetros de extensão, com 16% da movimentação de cargas do país, constituía um complexo de 54 empresas e sua receita havia crescido de R$ 198 milhões por ano, no início dos anos 70, para R$ 5,5 bilhões em 1995. Neste mesmo ano, o Instituto Brasileiro de Economia considerou a Vale a primeira entre as empresas nacionais. Tudo isso foi construído com dinheiro público, com recursos do povo brasileiro, portanto.
Pois bem, ela foi privatizada em 1997 por R$ 3,3 bilhões – que é menos do que ela obtinha por ano em 1995 e é menos do que ela lucra hoje em apenas três meses.
IHU On-Line - Por que um preço tão baixo por uma empresa tão importante?
Ivo Lesbaupin – O edital que serviu de base para o leilão da privatização subdimensionava grosseiramente quase tudo o que a Vale tinha na época, mas, pior que isso, o edital omitia boa parte dos minérios que a empresa explorava: titânio, calcário, dolomito, fosfato, estanho/cassiterita, granito, zinco, grafita, nióbio. Nós poderíamos imaginar um empresário capitalista vendendo sua empresa, deixando de considerar, no cálculo do seu valor, a maior parte dos seus ativos? É por isso que o que se pretende não é a reestatização da Vale, é a anulação da sua privatização. Aquela privatização foi uma fraude, um engodo. E o povo brasileiro tem de retomar o controle deste patrimônio que lhe pertence de direito e que lhe foi expropriado.
IHU On-Line - Se a população aprovar, por meio deste plebiscito agendado para a semana da Pátria, a reestatização da CVRD, qual será o significado disto para o neoliberalismo atual no país? E para o Governo Lula?
Ivo Lesbaupin – Se a população aprovar a anulação da privatização da Vale, será a primeira prova concreta de que a privatização das empresas estatais – que se iniciou nos anos 1990 – foi um processo fraudulento, em que se passou por cima da vontade popular, ou melhor, em que o proprietário do patrimônio - o povo brasileiro - teve seu patrimônio vendido sem ter sido consultado, na expressão do jurista Fábio Konder Comparato. O que é um escândalo.
Veja o absurdo: a dívida externa no Brasil se constituiu, em sua maior parte, durante o regime militar, sem que o povo brasileiro fosse consultado. Ele se torna devedor e está pagando até hoje, às custas da vida, do trabalho e da saúde dos milhões de brasileiros, esta dívida que não pediu para contrair. Em seguida, sob pretexto de pagamento desta mesma dívida, o povo brasileiro tem seu patrimônio público – construído no decorrer de sessenta anos, com seu suor e sacrifício – vendido, novamente sem a sua consulta.
Com a vitória do plebiscito, uma das principais idéias dos neoliberais, a redução do Estado, pela transferência ao setor privado das empresas estatais, terá sido derrotada.
Para o Governo Lula, será também uma derrota. Não custa lembrar que a Vale foi a empresa que mais contribuiu para a campanha do candidato Lula, em 2006. Embora, no segundo turno da campanha presidencial de 2006, Lula tenha combatido a privatização para se diferenciar de seu adversário, não é esta a prática do seu governo. Desde a primeira carta de intenções do Governo Lula ao FMI, em fevereiro de 2003, o governo se compromete a privatizar os quatro bancos estaduais que ainda eram públicos. Compromete-se também a realizar a Reforma da Previdência do setor público, que nada mais é do que a privatização de parte da previdência, através dos fundos de pensão. Numa manobra pouco conhecida do grande público, o Governo Lula manteve os leilões anuais das áreas de exploração do petróleo – introduzidos pelo Governo FHC -, que transfere parte destas áreas nacionais para empresas multinacionais. Os movimentos sociais, especialmente o movimento dos petroleiros, se mobilizam todos os anos para impedir este leilão, mas o governo o mantém.
Ainda no primeiro mandato, o governo enviou para o Congresso a proposta de criação das PPP (Parcerias Público-Privado), que não é senão uma forma de privatização sem o nome. Agora mesmo, acaba de ser tornada pública a oferta de oito estradas federais para serem exploradas pela iniciativa privada. O governo cede a concessão destas estradas para o setor privado; a empresa que ganha a concessão investe recursos para conservar a estrada e constrói pedágios. Através da cobrança do pedágio, as empresas recuperam o valor investido e, depois de ter recuperado este valor - o que leva alguns poucos anos -, passam a reinvestir parte para a conservação da estrada e o resto é lucro livre. Em suma, o povo brasileiro paga impostos para ter direito a infra-estrutura em transportes e o Estado os recolhe e constrói as estradas. Mas é uma empresa privada que passa a deter a concessão desta estrada e que recolhe, via pedágio, os recursos para conservá-la e para os seus lucros. Então, o povo paga duas vezes: no imposto e no pedágio. Se a estrada federal fosse concessão pública, é possível que devesse também cobrar pedágio: a diferença é que o pedágio público não precisa gerar lucro para seu proprietário, o que reduz enormemente o seu valor.
IHU On-Line - Qual é a importância deste plebiscito dentro da atual conjuntura política?
Ivo Lesbaupin – Desde a introdução das políticas neoliberais entre nós, a partir do Governo Collor, o país vem sendo governado como se o povo não existisse. Para todos os efeitos, para a avaliação das políticas, o que interessa são os “mercados”, algo que corresponde a, no máximo, 2% da população. O povo é consultado nas eleições, mas, em seguida, o governo eleito age em total desconsideração do programa em que o povo votou. A política econômica adotada é aquela que atende aos interesses do capital financeiro, dos bancos e dos rentistas, e do grande empresariado. A mídia expressa o pensamento destes setores. Os trabalhadores, os desempregados, os sem-terra e os sem-teto, ou seja, a grande maioria da sociedade, deixam de ter voz ativa. E não têm qualquer espaço, nos veículos de comunicação, para manifestar seu descontentamento. O plebiscito é a oportunidade de o povo expressar sua vontade, de torná-la conhecida. É uma prática de democracia direta. Seria o caso de lembrar aqui que democracia é o regime da soberania popular: quem detém o poder é povo – “todo poder emana do povo...” -, os eleitos são representantes da vontade popular. Mas não é isto que ocorre: então, o plebiscito é um meio para permitir que o “soberano” expresse sua voz.
IHU On-Line - Como o senhor vê o posicionamento da CNBB quanto a esta bandeira de reestatização da Vale do Rio Doce?
Ivo Lesbaupin – Na época da privatização da Vale, em 1997, um dos grandes tribunos que se ergueram contra este crime foi D. Luciano Mendes de Almeida. Seus discursos ficaram famosos. Os argumentos que utilizou em defesa da Vale do Rio Doce como patrimônio público são reproduzidos na cartilha sobre a Vale que a campanha está divulgando atualmente. No DVD que foi feito sobre a Vale este ano, um dos depoimentos mais fortes é o de Dom Demétrio Valentini. Um dos setores sociais mais envolvidos na campanha pelo plebiscito são as pastorais sociais, ligadas à CNBB. De modo que, embora eu ainda não tenha visto um pronunciamento oficial da Conferência - nem sei se vai haver -, acredito que o conjunto do episcopado seja favorável à anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Nós sabemos que, nos documentos produzidos pela CNBB, o neoliberalismo não costuma ser bem visto.
IHU On-Line - Como o senhor vê a luta dos movimentos sociais dentro do governo Lula? Eles estão sendo ouvidos?
Ivo Lesbaupin – Os movimentos sociais foram um importante fator para a vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2002. Quando o Governo Lula começou a frustrar suas esperanças, dando continuidade à política econômica de FHC e às reformas neoliberais, os movimentos ficaram confusos e divididos: não sabiam se deviam apoiar ou criticar o governo, então parte apoiava e parte criticava. Naquele tempo, a interpretação dominante era que se tratava de um “governo em disputa”. É verdade que alguns destes movimentos - refiro-me à parte da direção da CUT e à parte da direção da UNE, por exemplo - foram cooptados pelo governo, através de uma série de concessões. Mas a maioria dos movimentos sociais se manteve independente. Quando a direita partidária, especialmente através da mídia, passou a atacar o governo Lula - a partir do escândalo do “mensalão” -, os movimentos sociais manifestaram seu apoio ao governo, para não perder as poucas conquistas que tinham tido. Apoiaram, mas pressionando para que o governo mudasse sua política econômica. O governo aceitou o apoio, mas nada mudou.
Nas eleições presidenciais de 2006, os movimentos chegaram divididos, uma parte maior muito crítica ao governo. Mas, no segundo turno, decidiram apoiar Lula contra a volta do neoliberalismo sem freios. Neste segundo turno, o candidato Lula teve um discurso mais à esquerda, contra as privatizações, dando a esperança de que iria mudar. Ganhou as eleições, mas nada mudou. Na primeira ocasião em que o Ministro Dulci (1) se reuniu com representantes dos movimentos sociais no início do segundo mandato, estes foram muito duros com o governo: denunciaram que Lula está governando com o programa que foi derrotado nas eleições.
O governo procura manter viva a idéia de que é o governo dos movimentos sociais, mas isto é mera propaganda. Quando os movimentos começam a se articular para protestar contra as políticas do governo, os representantes do governo promovem uma reunião com Lula, para tentar acalmá-los. Mas a tática não está mais dando certo: primeiro, porque ninguém mais acredita que se trata de um “governo em disputa”. Cresce a postura crítica e os movimentos sociais estão cada vez mais se articulando para pressionar o governo nas ruas.
IHU On-Line - Para o senhor, quais foram os principais impactos que a sociedade brasileira sofreu com a privatização da Vale do Rio Doce? Os brasileiros estão preparados para recebê-la de volta?
Ivo Lesbaupin – O Governo Fernando Henrique Cardoso privatizou 76% do patrimônio público brasileiro. Entre as privatizações realizadas, a da Vale do Rio Doce foi certamente a que mais nos atingiu, porque foi entregue a empresa pública que explorava os nossos minérios, alguns dos quais têm um valor incalculável, outros que têm uma duração prevista de 400 anos para serem explorados. Como é que um governo entrega ao setor privado uma empresa que tem tamanho valor estratégico? Digo “entrega”, porque receber R$ 3,3 bilhões por uma empresa como a Vale é aceitar uma gorjeta. Há cinco séculos, portugueses e espanhóis invadiram e dominaram inúmeros países para retirar deles seus minérios, entre os quais o Brasil; o Estado brasileiro constrói, ao longo de cinco décadas, uma empresa respeitada internacionalmente, para explorar os seus minérios em benefício de seu povo; e, de repente, um governo se julga no direito de alienar este patrimônio como se nada representasse?
Com a privatização da Vale, nós perdemos a soberania sobre nossos próprios recursos naturais, deixamos de fazê-los valer a nosso serviço, entregamos a outros e deixamos, portanto, de tirar o lucro que esta atividade e esta empresa fornecia. Agora, outros tiram os lucros e se apropriam dela, em lugar do seu proprietário original, que foi expropriado.
IHU On-Line - Como o senhor acha que a discussão sobre a reestatização deve ser feita, levando em conta que a CVRD é grande consumidora de água e outros recursos naturais?
Ivo Lesbaupin – A Vale deve voltar a ser uma empresa do povo brasileiro, mas sua gestão deve ser feita de acordo com os interesses deste povo. Do mesmo modo que as outras empresas estatais, sua gestão deve levar em conta as exigências ecológicas colocadas hoje em dia, assim como as exigências sociais. Não lhe basta seguir critérios técnicos; há que serem seguidos critérios sociais e ecológicos. Afinal, é em benefício do povo que ela deve explorar estes recursos. Para o capitalista de hoje, o que interessa é produzir, pouco importando os limites dos recursos do país. É assim que nossas matas vão embora, as árvores sendo cortadas, a madeira vendida e exportada. O amanhã não lhes interessa. Para nós, a utilização dos recursos deve ser pensada de forma sustentável: temos de romper com uma visão “produtivista”. Daí que a empresa deverá ter um conselho composto com representantes da sociedade civil, de modo que sua atuação seja pensada com a contribuição dos cidadãos - a quem, em última instância, ela pertence.
Nota:
(1) Luiz Dulci é o secretário-geral da Presidência da República no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Em 1980, Foi um dos fundadores do PT. Ele coordenou, ao lado de Lula e de outros sindicalistas, o movimento que levou à formação do partido.
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A Vale do Rio Doce e o neoliberalismo no Brasil. Entrevista especial com Ivo Lesbaupin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU