“De 2006 a 2021, foram notificadas 13.216 intoxicações por agrotóxicos no Paraná, sendo 74,5% de agrotóxicos de uso agrícola, 23,6% de agrotóxicos de uso doméstico e 1,9% de agrotóxicos de saúde pública”, informa a farmacêutica
O uso excessivo e indiscriminado de agrotóxicos no Brasil e a consequente contaminação da população tornam urgente barrar a aprovação do Projeto de Lei nº 6299/2022, que flexibiliza o controle e a aprovação de agrotóxicos no país e concentra as decisões junto ao Ministério da Agricultura, conhecido como PL do Veneno. “Esta aprovação será um desastre na saúde da população e para o meio ambiente. Não sei o quanto o novo governo poderá avançar, mas seria muito importante a aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PL nº 6670/2016). Com os atuais níveis de agrotóxicos nos alimentos e na água que consumimos, são urgentes a implementação de medidas para a diminuição do consumo dos agrotóxicos e, ao mesmo tempo, o incentivo massivo para a agricultura familiar e a agroecológica”, observa Yumie Murakami, que participa do projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal do Paraná – UFPR, Observatório do Uso de Agrotóxicos e Consequências para a Saúde Humana e Ambiental no Paraná.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ela comenta o uso de agrotóxicos, especialmente na fumicultura, e as implicações para a saúde humana. Somente no Paraná, informa, segundo dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal – SINDIVEG, em 2020 foram consumidas cerca de 118 mil toneladas de agrotóxicos. “No Paraná, em 2020 os 20 agrotóxicos mais consumidos perfazem 74,5% do total, 14 são proibidos em ao menos um país, sendo dez proibidos na Comunidade Europeia. Ainda, 19 possuem estudos que os relacionam com efeitos crônicos em humanos e o único em que não foi encontrado esta relação causa mortes em abelhas. Destes 20 agrotóxicos, 18 foram encontrados nas análises de água e alimentos realizados pela Secretaria de Estado da Saúde”, relata.
Yumie Murakami (Foto: Reprodução | Vvale)
Yumie Murakami é graduada em Farmácia Industrial pela UFPR. É farmacêutica da Secretaria de Saúde do Estado do Paraná.
IHU – O Brasil é considerado um dos países que mais utilizam agrotóxicos. Dentro desta realidade, qual é a situação particular do Paraná?
Yumie Murakami – O Paraná disputa com o estado de São Paulo a segunda colocação no consumo de agrotóxicos. Em 2020, os dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama informam que o Paraná foi o terceiro maior consumidor, com 71.025 mil toneladas. Porém os dados do Sistema de Monitoramento do Comércio e Uso de Agrotóxicos no Estado do Paraná – SIAGRO, da Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento, informam, no mesmo ano, 106.685 toneladas, 50% a mais do que o informado pelo Ibama. Por outro lado, dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal – SINDIVEG informam que, no mesmo ano, o Paraná consumiu cerca de 118 mil toneladas. Estes dados são diferentes, mas apontam para um consumo elevado de agrotóxicos no estado.
IHU – O que suas pesquisas têm demonstrado sobre a intoxicação por agrotóxicos? Como esse fenômeno ocorre e em que situações é mais comum?
Yumie Murakami – O Observatório do Uso de Agrotóxicos é um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal do Paraná. Um dos objetivos é estudar os dados de consumo de agrotóxicos e a relação com o panorama econômico, social e político do estado e o perfil de morbimortalidade dos agravos e doenças relacionadas aos agrotóxicos. No Paraná, em 2020 os 20 agrotóxicos mais consumidos perfazem 74,5% do total, 14 são proibidos em ao menos um país, sendo dez proibidos na Comunidade Europeia. Ainda, 19 possuem estudos que os relacionam com efeitos crônicos em humanos e o único em que não foi encontrado esta relação causa mortes em abelhas. Destes 20 agrotóxicos, 18 foram encontrados nas análises de água e alimentos realizados pela Secretaria de Estado da Saúde.
De 2006 a 2021, foram notificadas 13.216 intoxicações por agrotóxicos no estado, sendo 74,5% de agrotóxicos de uso agrícola, 23,6% de agrotóxicos de uso doméstico e 1,9% de agrotóxicos de saúde pública. Quanto às circunstâncias das intoxicações, destacam-se as acidentais (39%) e tentativas de suicídios (37%). Intoxicações em crianças de até 14 anos perfazem 13% do total. Segundo dados das análises de agrotóxicos em alimentos, 73,2% das amostras apresentaram resíduos de agrotóxicos, sendo 16,9% com agrotóxicos não permitidos para o cultivo e/ou agrotóxicos acima do Limite Máximo de Resíduos.
Na água de consumo humano, dados da antiga Superintendência dos Recursos Hídricos e Meio Ambiente – SUREHMA, de 1976 a 1984, já informavam que 84% das amostras dos rios apresentavam resíduos de agrotóxicos. Dados do relatório “Vigilância Ambiental de Resíduos de Agrotóxicos em Água para Consumo Humano no Paraná, 2017-2019”, da Secretaria de Estado da Saúde, informam que foram coletadas amostras de 57 municípios, sendo que foram encontrados resíduos de agrotóxicos em 44 municípios (77,2%). Foram coletadas 357 amostras e em 49,6% foram encontrados resíduos de agrotóxicos. Na água de mananciais superficiais, foram encontrados resíduos de agrotóxicos em 55,5% das amostras, na água de mananciais subterrâneos foram encontrados resíduos de agrotóxicos em 40,3% das amostras. Em água tratada, 53,3% das amostras apresentaram os resíduos de agrotóxicos. Então, toda a população está exposta aos riscos dos agrotóxicos.
IHU – Na literatura, há muitos relatos de fumicultores contaminados por agrotóxicos. Qual é a especificidade desse tipo de plantio em relação ao uso de agrotóxicos? Por que muitos dos casos de contaminação e doenças crônicas estão associados aos trabalhadores desse segmento?
Yumie Murakami - A plantação de fumo envolve várias etapas, do preparo da terra, semeadura, vários manejos na plantação, colheita, secagem, classificação e o enfardamento das folhas para comercialização. Todas as etapas são realizadas manualmente e até a etapa de colheita são utilizados muitos agrotóxicos. Então estes trabalhadores estão diretamente expostos a diferentes agrotóxicos de forma muito intensa. Além disso, a partir das etapas da colheita, eles estão sujeitos às intoxicações por folha verde do tabaco, que são intoxicações agudas que provocam muito mal-estar. Um documento muito interessante, intitulado “Subsídios para Diretrizes para a Atenção Integral dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Fumicultura”, da Fiocruz, elenca os vários riscos à saúde a que estes trabalhadores estão expostos.
IHU – Quais os principais problemas de saúde relativos à intoxicação por agrotóxico?
Yumie Murakami – Há muitas doenças relacionadas aos agrotóxicos: trabalhadores expostos a agrotóxicos têm chance aumentada de desenvolver câncer (colorretal, esôfago, fígado, pâncreas, linfoma Hodgkin, linfoma não Hodgkin, mieloma múltiplo, rim, bexiga, próstata, testículo, tireoide, pele, mama, ovário, cervical, pulmão, sarcoma de tecidos moles) e filhos de trabalhadores expostos a agrotóxicos também têm chance aumentada de desenvolver neuroblastoma, sarcoma de Ewing (tumor ósseo), carcinoma renal, retinoblastoma, câncer de pulmão. Além disso, doenças neurológicas como Alzheimer, Parkinson e Esclerose Lateral Amiotrófica, neuropatias, transtornos psiquiátricos, alterações endócrinas, malformações, abortos, infertilidade, baixa qualidade do sêmen, danos às células embrionárias e da placenta, genotoxicidade, atrasos no desenvolvimento, danos às células hepáticas, entre outros.
IHU – Diante dos problemas de saúde já registrados em função do uso de agrotóxicos, por que a utilização destes produtos persiste, inclusive em lavouras de fumo?
Yumie Murakami – Infelizmente, a vida e a saúde das pessoas não são prioridades no sistema capitalista. A pressão da indústria de agrotóxicos para o uso cada vez maior destes venenos, aliado à pouca capacidade do Estado de monitorar, e as consequências à saúde humana e ambiental resultam nesta tragédia que são os agrotóxicos no Brasil.
IHU – Quais são as condições de trabalho nas indústrias formuladoras de agrotóxicos de Curitiba e região metropolitana que já foram objeto das suas pesquisas? O que é possível evidenciar conversando com os trabalhadores?
Yumie Murakami – Encontramos situações e processos de trabalho críticos para a saúde dos trabalhadores, como fracionamento de matéria-prima sem sistema de exaustão, ocasionando a exposição direta dos trabalhadores, o derretimento de agrotóxicos em tambores abertos com contaminação de todo o ambiente de trabalho, pisos impregnados com agrotóxicos, o envase de produtos sem exaustão, o rompimento de embalagens de agrotóxico em pó, com grande dispersão dos produtos no ambiente, uma ausência de monitoramento periódico da saúde dos trabalhadores, entre outros problemas. De forma geral, foi verificado que os trabalhadores desconheciam os riscos a que estavam submetidos, principalmente sobre a toxicidade dos agrotóxicos.
IHU – Quais são os agrotóxicos mais tóxicos disponíveis no mercado e quais estão mais associados a doenças crônicas e casos de intoxicação?
Yumie Murakami – Um estudo muito interessante, intitulado “Situação regulatória internacional de agrotóxicos com uso autorizado no Brasil: potencial de danos sobre a saúde e impactos ambientais” (FRIEDRICH et al., 2021), informa que “foram identificados 399 ingredientes ativos de agrotóxicos registrados no Brasil para uso agrícola, excluindo-se os microbiológicos e agentes biológicos de controle. Destes, não têm autorização na Islândia, 85,7%, na Noruega, 84,7%, na Suíça, 54,5%, na Índia, 52,6%, na Turquia, 45,6%, em Israel, 44,4%, na Nova Zelândia, 43,4%, no Japão, 42,4%, na Comunidade Europeia, 41,5%, no Canadá, 39,6%, na China, 38,6%, no Chile, 35,8%, no México, 31,6%, na Austrália, 28,6%, nos Estados Unidos, 25,6%. 120 ingredientes ativos de agrotóxicos estão relacionados a danos à saúde e ao ambiente. Considerando os ingredientes ativos de agrotóxicos para os quais estão disponíveis dados de comercialização no país, 67,2% deste volume estão associados a pelo menos um dano crônico grave avaliado neste estudo”.
IHU – O que se pode esperar do novo governo em relação aos agrotóxicos? Quais os desafios neste sentido?
Yumie Murakami – Hoje, o mais urgente é barrar a aprovação do Projeto de Lei do Veneno, pois esta aprovação será um desastre na saúde da população e para o meio ambiente. Não sei o quanto o novo governo poderá avançar, mas seria muito importante a aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PL nº 6670/2016). Com os atuais níveis de agrotóxicos nos alimentos e na água que consumimos, são urgentes a implementação de medidas para a diminuição do consumo dos agrotóxicos e, ao mesmo tempo, o incentivo massivo para a agricultura familiar e a agroecológica. Também espero que o novo governo faça justiça para as comunidades indígenas e quilombolas atacadas e assassinadas sistematicamente. Protegê-los é proteger a Amazônia e outros biomas. Ainda, reconstruir as instituições de saúde, meio ambiente, educação, cultura e outras que foram inviabilizadas pelo governo Bolsonaro é urgente.