“Para a escola melhorar após a pandemia, a primeira medida a ser tomada seria revogar a contrarreforma do ‘novo’ ensino médio, pois ele nega os conhecimentos para entender que a vida é integrada”, afirma o pesquisador
A reforma do ensino médio que entrou em vigor neste ano "estabeleceu uma regressão" no ensino ao instituir os itinerários formativos, "sepulta a concepção de educação básica" e "descaracteriza as licenciaturas", afirma Gaudêncio Frigotto na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Em síntese, pontua, "nada tem de 'novo' o 'novo ensino médio'. Pelo contrário, ele engendra, para a maioria dos jovens que frequentam o ensino público nos estados da federação, a negação do ensino médio de qualidade, condição para a leitura autônoma da realidade social, política e cultural e o preparo para o processo produtivo sob a atual base técnica".
A seguir, ele defende a revogação da reforma e argumenta que a universalização do ensino médio de qualidade "é condição fundamental para formar gerações de novos pesquisadores e cientistas para produzirem ciência e tecnologia competitiva". E acrescenta: "A contrarreforma do 'novo' ensino médio destroça justamente essas bases. É só examinar as propostas dos 'arranjos curriculares' que estão sendo publicadas para ver que a maior carga horária é para disciplinas instrumentais ou ao que denominam de 'projeto de vida'. Neste caso, especialmente, 'arranjo' cabe bem como dissimulação para qualquer coisa!"
Gaudêncio Frigotto (Foto: MST)
Gaudêncio Frigotto é graduado em Filosofia e em Pedagogia, mestre em Administração de Sistemas pela Fundação Getúlio Vargas - FGV e doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Atualmente, é professor de Economia Política da Educação na Universidade Federal Fluminense – UFF.
IHU - O que a chamada “reforma do ensino médio” revela sobre o momento da educação no país?
Gaudêncio Frigotto - Do ponto de vista histórico, o que marca as conjunturas na sociedade são fatos que alteram as relações sociais em curso. O momento atual, no plano político, econômico, social, cultural e educacional, começa a ser definido no golpe de estado de 2016 e se agrava a com o governo eleito em 2018. Não por acaso a denominada “reforma do ensino médio” foi definida nos primeiros três meses do golpe mediante, inicialmente, a Portaria Nº 1.145, de 10 de outubro de 2016, que instituiu o Programa de Fomento à Implementação do Ensino Médio em Tempo Integral. Esta portaria foi transformada, 12 dias depois, na MP 746/16 com o objetivo de fomentar a implantação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Finalmente passou a ser lei em 16 de fevereiro de 2017 (Lei n°13.415).
Esta rapidez tem a marca das mudanças autoritárias. Com efeito, não por acaso, quem assumiu a Secretaria Geral do Ministério da Educação no governo golpista de Michel Temer foi Maria Helena Guimarães de Castro, a pessoa chave na gestão Paulo Renato de Souza. Foi só tirar da gaveta as mudanças que não puderem implantar à época, dada a resistência de entidades científicas, sindicais e movimentos sociais.
Essa lei alterou significativamente o currículo no ensino médio, efetivando uma contrarreforma que estabeleceu uma regressão aos tempos de não equivalência dos ramos de ensino na década de 1940, mediante os Itinerários Formativos. A regressão se completa mediante a regulamentação da Base Nacional Curricular Comum – BNCC. Isto, na realidade, sepulta a concepção de educação básica e descaracteriza as licenciaturas.
Com a ascensão de um bloco de forças de extrema direita com concepções e práticas nazifascistas ao governo em 2019, as teses do Movimento Escola Sem Partido passaram a ser, junto à militarização de escolas públicas, o símbolo de uma agenda política e religiosa fundamentalista de combate ao que denominam de ideologia de gênero e marxismo cultural. O livro didático oficial vai além disto, querendo apagar da história o racismo e as ditaduras ideológicas fundamentalistas em torno dos costumes. Em síntese, nada tem de “novo” o “novo ensino médio”. Pelo contrário, ele engendra, para a maioria dos jovens que frequentam o ensino público nos estados da federação, a negação do ensino médio de qualidade, condição para a leitura autônoma da realidade social, política e cultural e o preparo para o processo produtivo sob a atual base técnica
IHU - Como o senhor analisa os chamados “itinerários de formação técnica profissional” presentes nesse “novo” ensino médio?
Gaudêncio Frigotto - Num dos cadernos do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Fabio Konder Comparato mostra que, desde a primeira Constituição, no Império, até a atual, de 1988, sempre coexistiram duas constituições. Uma que incorpora demandas populares e outra que utiliza a dissimulação ou o protelamento como forma de descaracterizar as conquistas. A estratégia de protelar para descaracterizar ou de dissimulação para aprovar o que interessa é emblemática no campo da educação. A dualidade estrutural do ensino médio exemplifica a dissimulação.
Dermeval Saviani, em uma fala em que foi homenageado pela Revista Trabalho Necessário, retomou e atualiza uma análise feita em 1986, cujo título é: O nó do 2º Grau (Dermeval Saviani, O nó do ensino de 2º grau. Bimestre - Revista do 2º grau1(1): 1315, out., 1986. (Entrevista)). Saviani mostra-nos, na Lei Orgânica do Ensino Secundário, de abril de 1942, feita por Gustavo Capanema, que este dizia que esse nível de ensino era para formar a classe dirigente. Portanto, não era reservado aos trabalhadores. Estes estariam contemplados pelo Sistema S.
A Reforma no 5691/1971, no período da ditadura, instituiu o caráter compulsório da profissionalização do ensino de 2o Grau. O argumento que Valnir Chagas usou para justificar o caráter compulsório da profissionalização era um slogan para mostrar que a partir dali era para todos, independente da origem social: “Ensino geral para nossos filhos e ensino profissional para os filhos dos outros.” Mas sob o princípio da flexibilidade estava a dissimulação. Esta indicava a possibilidade da terminalidade ideal e real. A primeira, para os que podiam cursar o ensino de 2º Grau completo, enquanto a segunda dependia da possibilidade da região ou da escola, ou das condições do aluno. Na realidade, a “profissionalização” ficou sendo para os filhos dos outros!
No caso da atual contrarreforma do ensino médio, os itinerários não só fragmentam, mas, sob o argumento de que agora o jovem será protagonista de suas escolhas, dissimulam que a intencionalidade é empurrar a maioria dos jovens para o quinto itinerário – formação técnica e profissional. Na verdade, dos cinco itinerários formativos, os quatro primeiros seriam para a formação geral ideal e, o último, para a profissionalização. Para este é que será conduzida a maioria dos jovens, com a propaganda que se tornarão supostamente “mais empregáveis”. Um termo dissimulador, porque o empregável não necessariamente será empregado. E se empregado será – nas condições em que as escolas, mesmo com parcerias, poderão oferecer o ensino técnico profissional –, será para os trabalhos simples de baixos salários. Por fim, o “novo ensino médio” é uma traição aos jovens atuais e futuras gerações, pois lhes impõe uma dupla barreira: o acesso à universidade e ao trabalho complexo.
O Ministro Milton Ribeiro defende a tese do atual governo e da classe dominante brasileira de que a universidade não é para todos. Para isso, numa das sociedades mais desiguais do mundo, valem-se da ideologia da meritocracia.
IHU - O ensino médio precisava de uma “reforma”? Se não, por que, e, se sim, de que ordem?
Gaudêncio Frigotto - Certamente não. O Decreto 5154/04 restabeleceu a possibilidade da integração da educação técnica e profissional à educação básica, buscando mobilizar a sociedade e o sistema educacional para superação da dualidade estrutural na educação brasileira. O foco deste decreto é buscar a superação da dualidade estrutural mediante a integração da educação técnica e profissional à educação básica. Daí a defesa do ensino médio integrado como uma travessia para uma educação que envolva todas as dimensões do ser humano. Os cinco itinerários, se vingarem, anulam a integração e essa formação será um “castelo em cima de areia”, sobretudo para os que forem induzidos ao itinerário da formação profissional. Por isso que na verdade é uma contrarreforma que, no seu conjunto, oferece aos jovens, em termos de conhecimentos básicos para a vida e para o trabalho, “um pastel de vento”.
IHU - Os defensores dessa “reforma” pontuam que o ensino médio precisa mudar porque não era atrativo aos jovens. O senhor concorda? E em que medida esse “novo” ensino médio pode ser considerado mais atrativo?
Gaudêncio Frigotto - Certamente há razões objetivas para discordar. As ocupações das escolas pelos alunos em vários estados em 2016 disseram à sociedade o que não era atrativo. Escolas caindo aos pedaços, inexistência de espaços adequados de laboratórios, biblioteca, espaços para esporte, lazer e cultura e condições de trabalhos para diretores, professores e pessoal técnico administrativo.
Logo após a publicação da Portaria 1.145, de 10 de outubro de 2016, que instituiu o Programa de Fomento à Implantação do Ensino Médio em Tempo Integral, o Ministério da Educação começou o trabalho de induzir escolas das redes estaduais a aderirem ao programa. Em contato com secretarias de educação, como a de Alagoas, por exemplo, constatei que os diretores não queriam aderir. Manter os jovens durante meia jornada, naquelas condições que eles detestavam, já era muito difícil.
Mas se as escolas estão bem aparelhadas, como algumas em condições similares aos atuais institutos federais de Educação, Ciência e Tecnologia, com espaços amplos, laboratórios, biblioteca, auditório, salas de jogos e de artes, professores em tempo integral, os jovens querem prolongar seu tempo na instituição. O argumento de ser mais atrativo, portanto, é mais uma dissimulação.
IHU - Muitos também defendem a “reforma” sob o argumento de que a escola estava parada no tempo, especialmente no que diz respeito ao uso de novas tecnologias. O senhor concorda? Qual deve ser o lugar e o espaço das novas tecnologias nas salas de aula do ensino médio?
Gaudêncio Frigotto - Pode-se dizer, ao tratar da tecnologia, que há duas posições igualmente equivocadas em relação a ela por analisá-la sem considerar as relações sociais onde ela se produz e é apropriada. A primeira, vendo o caráter destrutivo da tecnologia, como a do emprego, uso de venenos prejudicais à saúde e, de forma irracional, a destruição das guerras, contestá-la. A outra, transformando-a em fetiche e atribuindo poderes que ela não tem. Expressões tais como “educação para o futuro” e “aluno tecnológico” fazem parte deste fetiche. O passo seguinte será o de fazer a apologia à escola “Metaverso”.
A tecnologia, quando utilizada como valor de uso, bem comum, pois ela resulta de um esforço acumulativo produzido pela humanidade, prolonga vidas, pode abreviar o tempo de trabalho necessário à satisfação das necessidades básicas e gerar tempo livre, tempo de fruição. A tecnologia na sala de aula é, pois, um meio que se subordina a um projeto educativo. Na educação, é um meio importante. Daí a luta para a democratização do acesso. Mas a escola não é apenas um lugar de ensino, ainda que esta seja a tese defendida, por razões políticas e ideológicas, desde a década de 1990. No governo Jair Messias Bolsonaro, esta tese se aprofunda pela agenda dos costumes.
Mas escola para os jovens é um lugar de socialização, de convivência com a diversidade que a sociedade tem. Portanto, na escola se ensina e se educa para a convivência com aquele que tem pensamento político, origem racial, religião e cultura diferentes. O fetiche da tecnologia serve para os governos que querem gastar menos em educação e fazer o ensino médio híbrido ou a distância e para as empresas que fazem do ensino um negócio.
IHU - No formato que está posto, o “novo” ensino médio é capaz de minimizar as desigualdades do país?
Gaudêncio Frigotto – Não. Pelo que expus nas respostas acima, ele as amplia. Os que projetaram “o novo” ensino médio representam as forças sociais dominantes que jamais se preocuparam em construir uma nação de fato. Optaram por um projeto de capitalismo dependente que concentra riqueza na mão de poucos e amplia a desigualdade. Em vez de produzir ciência e tecnologia, optaram e optam pela cópia; em vez de desenvolver um projeto de desenvolvimento autônomo, optaram e optam pelo endividamento externo; e, finalmente, mantêm uma assimetria entre seus ganhos e o dos trabalhadores. Isto explica o descaso pela universalização da educação básica, mormente do ensino médio, e o pífio investimento público para dar as bases materiais de um ensino de qualidade.
A universalização do ensino médio de qualidade é condição fundamental para formar gerações de novos pesquisadores e cientistas para produzirem ciência e tecnologia competitiva. Pelo fato de não termos isso, dependemos da importação daquilo que poderíamos ter aqui. Um país eminentemente agrícola não desenvolveu componentes químicos para a produção de fertilizantes e adubos, e nos tronamos reféns justamente de dois países em guerra, Rússia e Ucrânia, nossos maiores fornecedores. O mesmo pode-se dizer sobre o petróleo, o ferro, o aço que exportamos sob a forma bruta e depois compramos os derivados, as máquinas e os equipamentos.
Quando há políticas públicas de acesso ao ensino de qualidade para grupos historicamente excluídos – quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores, comunidades do interior etc. – ampliam-se as possibilidades de acesso à universidade e, como tal, à mobilidade social. O “novo” ensino médio caminha em sentido inverso e, portanto, ampliará as desigualdades em nosso país.
IHU - Como podemos compreender os abismos que há entre as escolas públicas e as privadas? Como o “novo” ensino médio se insere nesse contexto?
Gaudêncio Frigotto - O abismo se explica pelo fato de que as bases materiais que facultam um ensino de qualidade (qualificação, carreira e salário docente, tempo dedicado em uma só escola, laboratórios, bibliotecas, internet etc.), salvo a rede federal pública e algumas escolas estaduais, não existem. Tanto os poderes executivo, legislativo e judiciário, quanto os proponentes do “novo ensino médio”, têm seus filhos ou netos em escolas particulares que, quando em tempo integral, podem custar em média cinco a seis mil reais por mês nas capitais. Em 2020, os ministérios da Educação e da Economia alteraram o custo médio anual por aluno para menos. No ano de 2019 vigorou o valor de R$ 3.643,16 para o custo anual por aluno. Em 2021, o montante foi reduzido para R$ 3.349,56, com percentual de redução de 8,06% (Veja aqui). Vê-se que o que o governo federal está disposto a investir em um ano para cada aluno na educação básica, nas escolas públicas e estaduais, é pouco mais que metade de uma mensalidade para o tempo integral nas melhores escolas privadas do país. Certamente, o “novo” ensino médio vai ampliar este abismo.
IHU - Em que medida podemos afirmar que no Brasil já se vive uma privatização do ensino público?
Gaudêncio Frigotto – Desde o ano 2000, a Organização Mundial do Comércio indicava o investimento no campo educacional como o de melhor e mais rápido retorno. Foi neste contexto que começaram se expandir no Brasil empresas educacionais das maiores do mundo, figurando no mercado de capitais da bolsa de valores. Inicialmente, atuando mais no ensino superior, mas agora também na educação básica. Entre as maiores destacam-se a Kroton Educacional, a Universidade Estácio de Sá e a Universidade Paulista – UNIP. A Kroton tornou-se uma megaempresa com a incorporação das Universidades Anhanguera, Unopar e Pitágoras, essa com larga tradição na educação básica.
Deste modo, o ensino público vem sendo privatizado por dois caminhos. Primeiro, pela legislação que faculta as parcerias público-privadas. O quinto itinerário da contrarreforma do ensino médio é uma avenida aberta para isso. O sistema S já está firmando contratos com secretarias estaduais de educação, como no caso do Rio de Janeiro. Mas outras instituições privadas disputam o fundo público e a orientação pedagógica de acordo com seus valores. A criação, em 2006, da Organização não Governamental "Todos Pela Educação” é uma inversão capciosa do que recomenda a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, Educação para Todos. Composta por quatorze grandes grupos econômicos e duas dezenas de institutos privados a eles associadas, a organização disputa fundo público e a orientação pedagógica sob os valores privados da meritocracia e da competição. Destaco o Instituto Ayrton Senna, com influência nas secretarias estaduais e municipais de educação em todo o país, a Fundação Roberto Marinho, da Rede Globo, e a Fundação Itaú para a Educação e Cultura. Atualmente, a Associação Brasileira do Agronegócio também tem grande influência em secretarias municipais e estaduais de educação.
IHU - Como o senhor analisa a atuação de empresas ou entidades que congregam empresas na área da educação fundamental e média, como o Serviço Social da Indústria - SESI, o Serviço Social do Comércio - SESC, a Fundação Itaú etc.?
Gaudêncio Frigotto - Trata-se de deformações que entram na lógica da questão acima. São entidades, no caso do SESI e SESC, que recebem, por lei, fundo público e, no caso das fundações de bancos, de empresas como a Globo, têm exoneração de impostos. A orientação que essas entidades dão, não por um juízo moral, mas por sua função social, é educar para o que serve a quem representa. Esta deformação começou durante o Estado Novo, quando foi entregue ao empresariado a gestão da educação profissional de seu interesse, dando um fundo público compulsório.
IHU - Há críticos ao “novo” ensino médio que o comparam a programas de escolarização empregados durante o regime militar e até à lei 5.692, da profissionalização compulsória. O que há de semelhante e diferente se o compararmos às reformas da educação no passado?
Gaudêncio Frigotto - Como assinalei na segunda questão, uma das semelhanças é a dissimulação para manter a dualidade estrutural do ensino médio mediante uma formação mais pragmática, tecnicista, desprovida dos fundamentos das ciências da natureza e das ciências sociais para os filhos e filhas da classe trabalhadora, cujo “destino” é o trabalho que lhes mandam fazer.
Durante a ditadura empresarial-militar ou civil-militar, com a Lei 5.692/71 e, mais especialmente, com a que lhe seguiu, a Lei Nº 7.044/82, a formação técnica e profissional tornou-se um dos ramos [da educação]. Hoje, em linguagem mais sutil, é o quinto itinerário, igualmente destinado aos mais pobres. Mas esta reforma é mais regressiva e destrutiva a longo prazo para as gerações que a ela forem submetidas e ao país, que seguirá um “gigante com pés de barro”.
IHU - Em entrevista que concedeu ao IHU em 2019, o senhor afirmou que “o ensino médio nos padrões das nações desenvolvidas é condição necessária para a dupla cidadania: política e econômica”. E no Brasil? Quais os caminhos para que o ensino médio brasileiro tenha essa “dupla cidadania”?
Gaudêncio Frigotto – Não se constrói uma nação economicamente forte e socialmente democrática sem dar aos seus cidadãos as bases de conhecimento historicamente conseguidas pela humanidade. O longo processo de colonização e de escravidão formou uma cultura de desprezo a quem efetiva o trabalho produtivo na indústria, nos serviços e na agricultura. Uma cultura que se define pelo autoritarismo e, como assinalei acima, por um projeto de capitalismo dependente. A negação da educação básica universal e de qualidade não é um descuido, mas uma condição de manter a dominação e o privilégio.
O ensino médio que se constitui em condição à cidadania política e econômica é aquele que fornece as bases, os princípios, os fundamentos da ciência da natureza e das ciências sociais e humanas e das artes. Isto implica organizar o currículo com um justo equilíbrio entre as ciências da natureza, ciências sociais e humanas e o campo das artes. Ou seja, um ensino médio que dê bases para formar o ser humano por inteiro. A luta para o ensino médio integrado, como travessia para a educação politécnica e onilateral (omnilateral) se inscreve no caminho que busca facultar as bases para a dupla cidadania. A contrarreforma do “novo” ensino médio destroça justamente essas bases. É só examinar as propostas dos “arranjos curriculares” que estão sendo publicados para ver que a maior carga horária é para disciplinas instrumentais ou ao que denominam de “projeto de vida”. Neste caso, especialmente, “arranjo” cabe bem como dissimulação para qualquer coisa!
IHU - A experiência da pandemia também transformou a realidade da escola. Mas que escola sai e que escola deveria sair dessa experiência?
Gaudêncio Frigotto - Certamente a pandemia nos dá uma lição dura sobre os efeitos de desenvolver processos formativos que separam arbitrariamente o que a realidade não separa. A realidade é que é integrada. O ser humano é antes de tudo um ser vivo da natureza. Distingue-se dela pela capacidade de modificar as suas condições de vida. Isto é, tem a capacidade de projetar, planejar e modificar o que faz. Mas ele não deixa de ser parte da natureza de onde retira sua vida: o alimento, o oxigênio, a luz, a água. Se, em suas decisões, agride a natureza, ela se volta contra ele. As pandemias têm, nessas decisões que degradam a natureza e produzem a pobreza e desigualdade, a sua gênese.
Tomo aqui uma reflexão do Prêmio Nobel de Medicina de 2001, Paul Nurse, que escreveu um pequeno livro para responder a leigos, “O que é a vida?” (Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2020). “A vida na terra pertence a um único ecossistema, imensamente interligado, que incorpora todos os seres vivos. Tal conexão fundamental vem não apenas da profunda interdependência, mas também do fato de que toda a vida é geneticamente relacionada por raízes evolutivas compartilhadas. Essa perspectiva de uma relação profunda e integrada é defendida há muito tempo pelos ecologistas” (p. 237). E, em uma entrevista à imprensa sobre o conteúdo do livro, complementa: “Seres vivos são marcados pela interação e essa interação ajuda a entender o que é a vida. A interação entre indivíduos da mesma espécie, nesse sentido, pode bem ser uma metáfora. Estamos falando da Sociobiologia, um campo que nos últimos quarenta anos tem pensado a natureza biológica do ser humano, levando em consideração as relações humanas. E muitas das descobertas nesse sentido têm de fato múltiplas implicações”. É fundamental indicar aqui que a visão de Nurse é claramente oposta às teses do determinismo biológico.
Para a escola melhorar após a pandemia, a primeira medida a ser tomada seria revogar a contrarreforma do “novo” ensino médio, pois ele nega os conhecimentos para entender que a vida é integrada. O passo seguinte é o esforço de uma efetiva integração no ensino médio entre todas as áreas de conhecimento que dizem respeito à vida do ser humano.
Mas, se ficar sob a condução das forças políticas que arquitetaram e consumaram o golpe de estado de 2016 e o atual governo de extrema direita e negacionista da ciência, não só indica que não aprendemos nada na pandemia, mas sairemos dela com uma escola pior sob a dissimulação da autonomia do jovem de fazer suas escolhas ou do fetiche do “aluno tecnológico” para justificar o ensino remoto ou híbrido na educação básica, pública e privada.
IHU – Há, no país, fóruns de discussão e participação social, os conselhos de educação. Como o senhor observa o trabalho nessas instâncias hoje? De que forma os conselhos municipais, estaduais e federais participaram das discussões sobre a reforma do ensino médio?
Gaudêncio Frigotto - De um modo geral, trata-se de uma participação frágil e pouco representativa. Normalmente efetiva-se por audiências públicas. O grande fórum de disputa da legislação é o Conselho Federal de Educação. Atualmente, tanto na Câmara de Ensino Superior, quanto na de Ensino Básico e Profissional, a grande maioria dos conselheiros não representa a educação pública, mas os interesses das entidades empresariais ligadas, sobretudo, à organização não-governamental Todos pela Educação e dos Institutos privados a ela vinculados. As secretarias estaduais e municipais, até onde percebo, tendem apenas a aplicar as leis que emanam das orientações do Conselho Federal. Alguns conselhos têm um equilíbrio melhor entre os interesses em disputa. Isto depende da organização mais ampla da sociedade.
O Rio Grande do Sul tem o Conselho Estadual de Educação, onde percebo isso, pelo menos em determinadas composições. Mas são poucas as exceções. Penso que conselhos têm um papel muito mais amplo do que interpretar e aplicar as leis. Trata-se de uma ativa ação no processo de aprovação das portarias, decretos e leis que afetam os entes federativos.
IHU - Em governos anteriores, houve muitos investimentos no acesso à universidade. Isso, até hoje, tem gerado críticas. Como o senhor analisa esse cenário? Que caminhos trilhar em termos de investimentos para uma educação de qualidade no país?
Gaudêncio Frigotto - Certamente a criação de 18 universidades federais públicas, 174 campi universitários e 38 institutos federais de Educação, Ciência e Tecnologia - IFS, com mais de seiscentos campi ao longo dos 15 anos das gestões dos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, representam a maior política pública de inclusão social interiorizada de educação superior e de ensino médio de nossa história.
Universidades demandadas por regiões do interior ou movimentos sociais, como a Fronteira Sul, a Federal do Recôncavo da Bahia, a Federal do Vale do Cariri, a Federal do Vale do Jequitinhonha etc. O “novo ensino médio” é uma forma prática de executar o que o governo Bolsonaro, na voz de seu quarto ministro da educação, proclama: que os pobres podem até sonhar com a universidade, mas não é desejável que todos tenham acesso a ela. A universidade, segundo o Ministro, não é para todos. O critério cínico é o da meritocracia. O ministro deveria aprender a máxima básica de uma sociedade que quer se constituir de fato democrática: dar aos desiguais o mesmo é mantê-los desiguais. As políticas públicas de inclusão são uma forma de buscar dar, aos que a sociedade produziu desiguais, a oportunidade de desenvolverem suas capacidades e poderem tornar-se menos desiguais.
IHU - Deseja acrescentar algo?
Gaudêncio Frigotto - Por ser o denominado “novo” ensino médio uma forma de tirar-lhe seu caráter de educação básica e, como tal, negar à grande maioria dos jovens que frequentam o ensino público os instrumentos de sua cidadania política, social, econômica e cultural, a luta é para postergar a sua aplicação e buscar organização social para revogá-lo. Isto porque a regressão que representa constitui-se uma traição aos jovens e ao país.