O desafio da nossa época é como articular um discurso cosmotécnico não culturalista/essencialista nem universalista ao estilo ocidental, capaz de gerar mudanças políticas significativas, diz o filósofo argentino
A noção de cosmotécnica, que busca estabelecer uma visão renovada entre tecnologia e cultura, tem sido difundida pelo filósofo chinês Yuk Hui. Em seu livro The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics (A questão sobre a tecnologia na China: ensaio sobre a cosmotécnica, em tradução livre, publicado por Urbanomic, 2016), ele retoma dois conceitos da filosofia chinesa, “dào” (caminho, ordem, cósmico) e “qì” (utensílio, ferramenta, recipiente ritual), para repensar a relação entre técnica e cultura. "Para Yuk Hui, a cosmotécnica chinesa tem de ser entendida como esta mediação, de um lado, entre o 'dào' e, de outro, o 'qì'. (...) A tese dele é que a ordem cósmica não parece ser algo separado das ferramentas; não é algo independente, mas, ao contrário, a técnica é sempre uma união das ferramentas com a ordem cósmica. Essa é sempre uma palavra difícil de traduzir, mas a ordem cósmica implica também a ordem moral de alguma maneira", explicou Fernando Wirtz, doutor em Filosofia pela Universidade de Tübingen, em conferência virtual ministrada no Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
No mês passado, Wirtz participou do Ciclo de Estudos – A condição humana entre a Biosfera, a Tecnosfera e a Infosfera em tempos sindêmicos, promovido pelo IHU, com a palestra "Terraformação, cosmotécnica e pós-cosmologia: A fuga do determinismo tecnológico". No evento, ele apresentou posições filosóficas que advogam uma cosmotécnica, contrapondo-se ao universalismo tecnológico europeu, e explicou os limites e potencialidades dessas visões para a discussão sobre a relação entre técnica e cultura, tendo em vista modos de enfrentar as mudanças climáticas. "A pergunta obviamente aberta é a de como se pensa a cosmotécnica num exemplo que não seja a China, porque o único exemplo que Yuk Hui nos dá é o da China. As críticas mencionadas colocam o seguinte problema: Como articular um discurso cosmotécnico não culturalista/essencialista capaz de gerar mudanças políticas significativas? Ou seja, um discurso que não conceba a cultura como uma essência", esclarece.
Para responder às objeções, um ponto de partida, argumenta, "seria reapropriar a história filosófica da tecnologia desde um ponto de vista não hegemônico, não europeu etc". Para ele, a alternativa mais adequada neste debate consiste em pensar a cosmotécnica como método. "Isto me parece muito mais lógico: não necessariamente a cosmotécnica tem de estar fundamentada ou baseada em uma cosmologia; pode fundamentar-se na história, num processo, em algo que está sendo feito e acontecendo. A cosmotécnica como método não seria a cosmotécnica tal como ela tem sido criticada, como um tipo de reabilitação do essencialismo, mas, ao contrário, uma técnica enquanto uma busca contínua de recontextualizar as histórias da tecnologia. É isso que chamo de pós-cosmologia, cosmotécnica pós-tecnológica".
A seguir, publicamos a conferência de Fernando Wirtz, que foi pronunciada em espanhol, no formato de entrevista.
Fernando Wirtz (Foto: Reprodução | Youtube)
Fernando Wirtz é graduado em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e doutor na mesma área pela Universidade de Tübingen (Alemanha), com uma teses sobre Friedrich Schelling.
Realizou pós-doutorado na Universidade de Kyoto, sobre o conceito de mito na filosofia japonesa durante a década de 1930. Além da filosofia japonesa, ele também se especializou em idealismo alemão, filosofia intercultural e filosofia do mito. É membro do comitê diretor da Sociedade Internacional de Filosofia Intercultural.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 05-09-2021.
IHU – O que é cosmotécnica?
Fernando Wirtz - Cosmotécnica é um conceito que de alguma maneira popularizou o filósofo Yuk Hui [1], que está na moda na América Latina. É um conceito bastante recente, acerca do qual estamos há pouco tempo pensando e refletindo. Seu ponto de partida é o conceito de determinismo tecnológico. Na verdade, há duas concepções principais de determinismo tecnológico na filosofia. A primeira é a ideia de que o desenvolvimento da tecnologia, de alguma maneira, é autônomo e independente de outras áreas que envolvem o ser humano, como a economia, por exemplo. A segunda concepção é mais forte e implica a ideia de que a mudança tecnológica determina a mudança social. Também há diferentes níveis nos quais essa afirmação pode ser entendida. Mas Yuk Hui, me parece, tem em mente uma terceira noção de determinismo tecnológico, que é a ideia de pensar a tecnologia como um fenômeno universal. De alguma maneira, este é o pressuposto das outras duas concepções: a ideia de que a tecnologia é autônoma e, sendo autônoma, pode influenciar outros campos. Isso implica, em certo sentido, a ideia de que o fenômeno tecnológico é algo universal. Quer dizer que todas as manifestações tecnológicas pertencem a uma mesma categoria universal, que é a categoria de tecnologia.
YuK Hui (Foto: Reprodução)
Para ilustrar isso, vamos pensar o seguinte: quando falamos de tecnologia, em geral a pensamos a partir de um conceito geral e amplo, e quando usamos a expressão no plural, “tecnologias”, em geral a usamos para nos referirmos a aplicações de algo que abstratamente poderíamos chamar de tecnologia. Como exemplo, cito o desenvolvimento tecnológico de uma civilização: quando falamos do grau de desenvolvimento tecnológico de uma civilização, estamos usando a tecnologia como critério para avaliar o avanço de uma cultura. Quando falamos de inovação tecnológica também podemos referir a algo determinado, como, por exemplo, a inovação tecnológica no campo da hidronáutica, e isso pertence ao campo mais amplo que chamamos de tecnologia. Isso é ainda mais claro quando falamos de nanotecnologia ou biotecnologia: de novo, estamos nos referindo a coisas diferentes, mas as englobamos em algo mais amplo que é a tecnologia em si.
Tecnodiversidade, de YuK Hui (Foto: Reprodução)
Um dos sentidos clássicos da palavra tecnologia é a identificação da tecnologia com a ideia de ferramentas. Nesse sentido, se falamos de um celular, de um satélite ou da internet, todas são manifestações concretas de um fenômeno universal, o fenômeno da tecnologia. Por isso, haveria um determinismo tecnológico no sentido de que não podemos escapar desse conceito mais amplo de tecnologia.
O filósofo [Andrew] Feenberg se refere a dois sentidos da palavra tecnologia: um sentido instrumental, neutro, ou no sentido substancial, com a ideia de que a tecnologia tem um certo valor, como o caso da tecnologia capitalista, que busca a dominação. Ele diz que “por um lado, se a tecnologia é um mero instrumento, indiferente aos valores, então seu desenho não é objeto de debate político, mas o alcance e a eficácia de sua aplicação. Por outro lado, se a tecnologia é o veículo de uma cultura de dominação, então estamos condenados a seguir seu avanço até a distopia ou a retroceder a um modo de vida mais primitivo. (...) Em ambos os casos, a tecnologia é destino”. Nesse sentido, em ambas as situações não vamos escapar da tecnologia.
Yuk Hui, que estudou em Hong Kong, na Inglaterra e na Alemanha, começou a ver como poderíamos tentar escapar desse conceito, o qual ele chama de monotecnologia, pensando em uma tecnologia universal. Ele identifica a monotecnologia com a tecnologia europeia, ocidental e hegemônica porque em alguma medida a história e a genealogia do que usualmente chamamos de tecnologia, em particular a partir da Revolução Industrial, teve como ponto de partida a Europa. Também identifica esse conceito de tecnologia com sua origem grega, com o conhecimento produtivo capaz de aperfeiçoar a natureza. Ele faz uma espécie de leitura desde a filosofia grega até a modernidade e vê certa linearidade. Na Revolução Industrial houve um corte, mas a ideia geral é a de que a tecnologia é algo que deve ser produtivo e que, de alguma maneira, ao aperfeiçoar a natureza, está oposta à natureza – essa ideia é algo que já se encontra na filosofia grega. Esse conceito, como disse, é compatível e, em boa medida, paralelo à ideia de tecnologia como meio de desenvolvimento capitalista que conduz ao colapso ambiental do antropoceno: produzir mais, em menor tempo, com menos energia. A produção se torna independente do cosmos, se torna universal. Então, ele identifica essa ideia de tecnologia como algo universal com a história da tecnologia e do pensamento filosófico ocidental ou europeu.
A contraproposta de Yuk Hui se chama cosmotécnica e ele se pergunta: E se não há somente uma lógica tecnológica monolítica, mas muitas tecnologias? O que aconteceria se não existisse uma, mas muitas genealogias tecnológicas? É importante, então, pensar nas muitas histórias da tecnologia. Segundo ele, há outras formas de pensar a relação das tecnicidades com a natureza. Isso é urgente em um mundo onde as relações e técnicas de produção levam à transformação total do ecossistema. O antropoceno não entra neste debate, mas o que Yuk Hui diz, podemos ver nos debates contemporâneos em que participam pessoas como Bruno Latour, Isabelle Stengers, Eduardo Viveiros de Castro e muitos que estão escrevendo sobre esse tema. O debate ecológico está transposto no projeto de Yuk Hui.
IHU – Qual é a relação da técnica com o cosmos?
Fernando Wirtz - Uma das ideias principais da cosmotécnica é que há uma relação entre a técnica e o que Yuk Hui chama de cosmos – haveria outras palavras que poderíamos usar para explicar e expressar isso. Encontrei uma passagem interessante de um filósofo argentino chamado Rodolfo Kusch, que diz algo muito similar à intenção de Yuk Hui: “A tecnologia está então condicionada pelo horizonte cultural em que ocorre. Alguém necessita de uma máquina para uma determinada finalidade que se relaciona com o lugar, o tempo e as necessidades de uma determinada comunidade. Isso é o natural. É difícil conceber uma tecnologia que cria máquinas universalmente, à margem de uma utilidade contingente e manifesta. De modo que a defesa da tecnologia deve ser subtraída da margem de universalidade um pouco mítica com que a utilizamos”. Disso, me parece que há muitos exemplos para pensarmos, não só pensando nas sociedades do paleolítico, mas também exemplos contemporâneos, como quando se usa tecnologia satélite para mapear campos. Um problema que surge é que em determinados países os campos [áreas verdes/rurais] aparecem estruturados de maneiras diferentes e, no Sul global, eles não estão perfeitamente ordenados, mas estão dispostos de uma maneira muito dispersa, desordenada e caótica. Estamos tratando de algo que poderíamos pensar de modo abstrato e universal, como seriam as tecnologias satélites, mas, de alguma maneira, elas estão determinadas por pressupostos geoculturais. O que quero dizer é que às vezes existem tecnologias desenvolvidas em algum lugar do planeta que não podem ser aplicadas em outros locais do planeta, inclusive tecnologias digitais.
IHU - Qual é a definição de Yuk Hui de cosmotécnica?
Fernando Wirtz - Em geral, ele não dá uma definição pronta e acabada, mas sempre repete algo: a cosmotécnica é a união da ordem moral e da ordem cósmica através de atividades técnicas. Numa entrevista, ele declarou: “Para os gregos, ‘cosmos’ significa um mundo ordenado. Ao mesmo tempo, o conceito aponta o que está além da terra. A moral é, em primeiro lugar, algo que concerne ao reino humano. A cosmotécnica, segundo entendo, é a unificação da ordem moral e da ordem cósmica através de atividades técnicas. Se compararmos a Grécia e a China na antiguidade, descobriremos que elas têm uma compreensão muito diferente do cosmos e também concepções muito diferentes de moralidade”. Nesse sentido, podemos dizer que não existe uma técnica pura, mas que a técnica está sempre mediada pela natureza e por uma certa cultura. Ouvir isso parece óbvio, mas, como eu dizia antes, nosso conceito intuitivo de tecnologia parece querer ser e retornar a algo universal e, portanto, parece querer excluir essa origem mediada existente.
A cosmotécnica para Yuk Hui seria como esta representação gráfica [ver imagem abaixo]. Nesse sentido, a técnica moderna seria praticamente uma técnica sem cosmos, porque tenta deixar o cosmos de lado e, por isso, busca ser aplicável universalmente.
(Foto: Reprodução | Youtube)
IHU – Pode apresentar alguns exemplos?
Fernando Wirtz - Como exemplo para explicar o que é a cosmotécnica, Yuk Hui, em seu livro The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics (A questão sobre a tecnologia na China: ensaio sobre a cosmotécnica, em tradução livre, publicado por Urbanomic, 2016), fala sobre a união de dois conceitos: “dào” (caminho, ordem, cósmico) e “qì” (utensílio, ferramenta, recipiente ritual). Para Yuk Hui, a cosmotécnica chinesa tem que ser entendida como esta mediação, de um lado, entre o “dào” e, de outro, o “qì”. “Dào” e “qì” são dois conceitos que ele encontra na tradição filosófica chinesa. Ele tenta fazer, em seu livro, uma espécie de história da filosofia chinesa, rastreando esses conceitos e como eles aparecem sempre ligados. A tese dele é que a ordem cósmica não parece ser algo separado das ferramentas; não é algo independente, mas, ao contrário, a técnica é sempre uma união das ferramentas com a ordem cósmica. Essa é sempre uma palavra difícil de traduzir, mas a ordem cósmica implica também a ordem moral de alguma maneira.
(Foto: Divulgação)
Para ilustrar isso, cito o clássico exemplo de Yuk Hui, do açougueiro Pao Ding, tal como se encontra no texto de Zhuangzi, um dos textos fundacionais do taoísmo – tanto para o confucionismo quanto para o taoísmo, que são as duas tradições filosóficas mais fortes da China, o conceito de “dào” é fundamental. A cena relatada no texto de Zhuangzi é que o açougueiro é famoso por sua capacidade excepcional de cortar e desmembrar o boi, sem tocar seus ossos e tendões. Quando se pergunta a ele sobre a sua técnica, Ding responde: “O que amo é o ‘dào’, o qual é muito mais esplêndido que a minha técnica”. O que Yuk Hui nos mostra é que, para a concepção chinesa, a técnica não é algo separado [do cosmos] ou que se quer meramente para a prática ou para o desenvolvimento, independentemente, mas, ao contrário, é algo que deve estar conectado com isso que chamam de ‘dào’. Não é que o açougueiro Ding esteja dominando a ferramenta, mas, de alguma maneira, ele deixa fluir a ordem cósmica; de algum modo, ele se conecta com a ordem cósmica quando realiza sua tarefa técnica. A ideia, então, é que não há uma separação clara entre a ferramenta e o sujeito que a domina, mas há, digamos, uma comunicação mais íntima. Esse é um dos exemplos do livro. Yuk Hui segue dando outros exemplos, mas esse me parece o mais claro.
Podemos dizer que o conceito de cosmotécnica é interessante porque permite reabilitar os pensamentos locais e os contextuais a um plano de relevância global. Isso que se chama de cosmotécnica chinesa, na verdade, também podemos encontrar em outros contextos. E ele sempre fala no sentido de que temos de tentar investigar as diferentes cosmotécnicas. Esse conceito também é interessante porque permite problematizar os limites entre natureza, cultura e técnica. Como eu mencionava no exemplo anterior, do açougueiro, não vemos aí uma diferença tão forte entre natureza e técnica, entre ferramenta e sujeito. Obviamente um debate que está implícito em tudo isso é o de que a definição de natureza é por si só uma definição problemática: sempre é difícil estabelecer o limite concreto entre natureza e cultura porque, em última instância, da cultura mesma surge a natureza. Então, a cosmotécnica é um conceito interessante porque permite pensar esses pontos.
IHU – Quais são os problemas e objeções ao conceito de cosmotécnica?
Fernando Wirtz - Existem certos problemas neste conceito que, como eu disse, nunca aparece bem definido. Um dos problemas é que se é possível uma pluralidade de cosmotécnicas, a pergunta que surge é a seguinte: de onde surgem? Da cultura? Da cosmologia? Da geografia? Apesar de ser necessário repensar os limites entre cultura, técnica e natureza, está claro que não se tem uma resposta satisfatória. Vamos ver algumas críticas ao conceito, para perceber onde essa objeção é mais clara.
Vou apresentar quatro críticas que estão relacionadas e nos ajudam a entender melhor o problema de cosmotécnica. Uma das críticas principais ao conceito é sua apelação à cosmologia e à diversificação. Como dizia, Yuk Hui está falando aqui de uma cosmotécnica chinesa e o faz rastreando toda a tradição chinesa desde a mitologia até chegar à modernidade no século XX. Isso é problemático porque desperta a pergunta: “O que se passa em outros lugares do mundo?” Onde encontramos a tradição que nos permite reabilitar e repensar a tecnologia? Essa crítica é separada em subtemas. Uma primeira crítica que fazem alguns autores e autoras é acerca da fragmentação proposta por Yuk Hui, porque há a necessidade de se buscar infinitas cosmotécnicas. É a crítica do que às vezes se chama “macro-left”, a “esquerda-macro”, a qual propõe um problema macro que requer soluções macro. O problema do aquecimento global, por exemplo, não pode ser solucionado por meio de cosmotécnicas locais de modo que cada povo tenha sua forma de trabalhar a terra. Ao contrário, isso requer estratégias globais, coordenadas entre todos os países, para reverter as mudanças climáticas.
Isso é parte de uma segunda crítica, que é contra a ideia de reconexão com o cosmos, ou seja, essa tentativa de reabilitar o conceito de natureza e de cosmos que soa às vezes um pouco new age. Há autores, como Benjamin Bratton, que apontam especificamente para essa questão. Segundo ele, ao invés de uma reconexão com o cosmos, se necessita de artificialidade ou aceleracionismo – uma ideia que está bastante na moda. Bratton argumenta que para reverter o aquecimento global é preciso de mais tecnologia, ou seja, revertê-lo transformando a natureza por meio da técnica, e não voltando a uma “natureza perdida”. Ele diz que “diagnosticar como a mudança climática é antropogenicamente artificial não é redesenhar as fronteiras entre cultura humana e natureza, senão reconhecer que a inteligência técnica é o que torna os padrões anormais regulares”. Temos aí uma apelação ao racionalismo por parte de Bratton. Certamente, Yuk Hui também é consciente do perigo disso e sempre repete que o que busca não é uma volta às raízes, ao etnocentrismo, mas o ponto é que não fica claro como se soluciona o problema da fragmentação e o problema da reconexão com o cosmos.
Uma terceira crítica que também se encontra nesse autor é contra o localismo, o que ele chama de “folkismo” ou teoria folk. Segundo ele, “a negação da mudança climática (em todas as suas variantes) é sintomática de um humanismo folk que não permite que uma Terra-como-planeta dinâmica substitua o sentido intuitivo de um chão fixo em que se dá forma à experiência interior, e em que as ocupações culturais arbitrárias estão honrosamente fixadas e talvez até arranjadas por espíritos soberanos”. Essa ideia de que cada povo, cada cultura tenha a sua própria cosmotécnica implica também a ideia de que cada cultura, de alguma maneira, por sua conexão fixa com o lugar da terra, tenha algum tipo de vínculo essencial que determina as características culturais dessa cultura ou desse povo. Yuk Hui diz o tempo todo que não está defendendo um essencialismo cultural, mas o perigo sempre está aí e o problema não é resolvido – por isso gostaria de mencionar essa crítica.
A quarta crítica ou modelo que se opõe ao modelo da cosmotécnica é o “tiãnxià” – um modelo chinês que recorre toda a tradição e história do pensamento chinês –, que significa “sob o céu”, mas que, obviamente, se refere a todo o mundo, ou ao reino, palavra que na antiguidade se utilizava para designar o reino chinês. Nesse sentido, o que esse conceito ou a reformulação dele – a qual tem sido feita por um filósofo chamado Zhao Tingyang, que nos últimos anos se popularizou bastante com seu livro All under Heave, traduzido para vários idiomas e bastante discutido – sugere é que no lugar da fragmentação, o que necessitamos é de um novo universalismo, que não seja o universalismo ocidental. Tingyang coincide neste ponto com Yuk Hui: a história do universalismo está muito ligada à história do pensamento ocidental. Então, ele argumenta que há outros modelos e outras formas de pensar o universalismo e um deles é o modelo chinês.
Tingyang diz que “em contraste com a pólis grega como ponto de partida político da Europa, ‘tiãnxià’ como conceito indica que o pensamento político chinês havia começado com um ‘mundo’ que o abarca totalmente, em lugar de uma concepção excludente e discreta de ‘estados’ soberanos”. Então, veja que o conceito de política na Europa começa com a pólis, com o indivíduo, e não com a representação dos interesses dos indivíduos. Tingyang afirma que na China o conceito de política começou já com o conceito de mundo. Isso está relacionado com a ideia de que o império chinês sempre foi um império de extensão territorial enorme. O que ele está dizendo é que o pensamento chinês está acostumado a pensar a totalidade. Não posso entrar em detalhes nesse tema, mas gostaria de mencioná-lo porque me parece uma coincidência interessante neste momento em que estamos discutindo novas formas de pensar o universalismo ou críticas ao universalismo, como também formas alternativas de universalismo não ocidental e universalismos que buscam estabelecer-se.
Como resultado disso, há dois modelos que estão em conflito: um modelo é a cosmotécnica e o outro podemos chamar de geoengenharia ou geopolítica. A geoengenharia vai buscar soluções universais e pragmáticas no contexto das mudanças climáticas e do aquecimento global. Por um lado, temos a ideia de “Terraformação”, de uma formação e de uma unificação artificial da Terra, de coordenação, de maior tecnologia, com uma ideia de universalismo tecnológico que vai desenvolver tecnologias com outras lógicas ao invés de simplesmente desenvolver a tecnologia que já existe, ou seja, novas tecnologias a nível global para redesenhar o território. Isso implica também em geopolítica, uma política em sentido macroscópico, de uma ordem global, onde entraria também o conceito de ‘tiãnxià’. Em contrapartida, de outro lado, temos a ideia de cosmotécnica, a qual propõe, de alguma maneira, o contrário, o que Yuk Hui chama de planetarização, porque ele diz que globalização e localismo ou nacionalismo são, em última instância, duas formas do mesmo e implicam um certo tipo de universalismo abstrato. Ele propõe reabilitar pensamentos não hegemônicos e formas de habitar não hegemônicas. Em lugar do universalismo tecnológico, oferece o pluralismo tecnológico, que busca novas reapropriações cosmotécnicas para gerar novas relações com as naturezas. Ele não nega a tecnologia – é um autor que está tentando se reapropriar da tecnologia moderna – e tampouco está propondo destruir a tecnologia moderna, mas reapropriar-se desde a perspectiva cosmotécnica, de perspectivas múltiplas e locais. Nesse sentido, se opõe à ideia de geopolítica, com a noção de cosmopolítica, um conceito desenvolvido por Latour e Stengers, mas mencionado por Yuk Hui. É a ideia de que o cosmopolitismo tradicional dá por suposto um cosmos. A cosmopolítica tenta pluralizar a ideia de cosmos e pensar a política como uma forma de criar um cosmos.
IHU – Quais são as dificuldades dessa proposta?
Fernando Wirtz - A pergunta obviamente aberta é a de como se pensa a cosmotécnica num exemplo que não seja a China, porque o único exemplo que Yuk Hui nos dá é o da China. As críticas mencionadas colocam o seguinte problema: Como articular um discurso cosmotécnico não culturalista/essencialista capaz de gerar mudanças políticas significativas? Ou seja, um discurso que não conceba a cultura como uma essência. Um ponto de partida seria reapropriar a história filosófica da tecnologia desde um ponto de vista não hegemônico, não europeu etc.
Outra colocação de Kusch também me parece apropriada. Ele diz que “não se pensa porque não se tem uma técnica, mas antes porque se tem medo. A criação de uma nacionalidade como a argentina e como as demais da América Latina, deve ter sido criada no medo de que tudo no fundo seja falso. É por isso que se tem de sustentá-lo, por isso tem de haver técnicas; se não as tiver, você não pensa sobre elas, e como não as temos, então nossa filosofia nada mais é do que uma reiteração da mesma filosofia e nossas estruturas são repetidas. Se enfrenta o caos para descobrir o que está planejado, previsto. E para garantir isso, são utilizadas técnicas”. Se lermos a história da filosofia argentina, ao menos a do século XX, veremos que há uma ausência da pergunta pela técnica. Um dos motivos é que os filósofos e filósofas do século XX – sobretudo os da primeira metade, período em que as nações latino-americanas estavam buscando sua identidade e sua identidade filosófica – identificam a tecnologia com o estrangeiro, com o europeu. Sempre há essa comparação e o mesmo aconteceu com a filosofia: se compara o pensamento local com o pensamento europeu, e a filosofia que recebemos e estudamos nas universidades é principalmente europeia. Faço uma conexão dessa carência de pensamento com essa carência de técnica.
Depois, Kusch resume muito bem o que acontece na história da filosofia latino-americana em função desse gesto, dessa reação contra a tecnologia. Na América Latina, como disse, a filosofia do século XX usualmente identifica a tecnologia com o europeu. Então, como podemos pensar a tecnologia, a cosmotécnica, em lugares como a América Latina, onde há uma recusa filosófica da tecnologia? Um ponto de partida possível me parecer ser o de Guaman Poma (1534-1615), um cronista de origem inca. Ele escreveu algumas cartas muito famosas, em espanhol, algumas ilustradas, dirigidas ao rei da Espanha [Filipe III]. Elas foram reunidas em uma obra intitulada Primer nueva corónica y buen gobierno. Uma das imagens mais conhecidas dessas cartas é a de Adão e Eva no mundo [abaixo].
(Foto: Abralic)
Nessa imagem, vemos Adão e Eva no mundo. Adão lavra a terra com uma ferramenta, um arado, como exemplo de tecnologia local dos Andes. Essa imagem é muito interessante para pensar o conceito de cosmotécnica, porque Poma, nesse livro, repete a história e a genealogia bíblica: a criação do homem. É uma genealogia que vai desde Adão e Eva até os povos ameríndios, pois ele busca inserir os ameríndios nessa genealogia. Mas é interessante porque no primeiro ponto da genealogia, em que há Adão e Eva, ele introduz a tecnologia andina, totalmente local. Esse gesto, de alguma maneira, desloca a ideia de cosmologia: não está nem relatando nem narrando a origem da humanidade, mas introduzindo elementos que poderíamos considerar tradicionais da cultura em que se originou. Esse gesto nos recorda que a cosmologia nunca é algo fixo; é sempre algo que se constrói e, nesse sentido, a cosmologia é uma deslocação. Então, uma forma de fazer a cosmotécnica seria revisitar as filosofias da tecnologia não europeias, incluindo as filosofias indígenas, mas partindo do princípio de que podemos nos servir das tecnologias, porém sempre as pensando como algo provisório, como a cosmologia mesma é uma forma de pensar a relação com a terra. Assim, na cosmotécnica há uma coexistência entre mito e técnica, que me parece interessante de trabalhar.
O segundo exemplo que gostaria de lembrar é o do filósofo japonês Miki Kiyoshi (1897-1945), que escreveu nos anos 1930, ligado à Escola de Kyoto, a corrente filosófica mais conhecida. Já nos anos 30 e, mais especificamente num texto de 1941, Miki dizia algo muito similar ao que vai dizer, posteriormente, Yuk Hui. Ele disse: “Considerado desde um ponto de vista histórico, o que hoje chamamos de tecnologia se desenvolveu no Ocidente. Em tal contexto, poderia surgir uma posição de cultura espiritual pertencente à tradição oriental em contraposição à cultura material ocidental”. Ele chama a tecnologia ocidental de material e a opõe a uma certa cultura espiritual que encontra no Japão. Esse é um dualismo muito simplificador, mas me parece interessante por isto: por um lado, mostra que já no século XX pensadores e pensadoras haviam reconhecido o problema em torno da tecnologia e, em segundo lugar, eles propõem algo muito similar a Yuk Hui, que é uma espécie de unidade entre a técnica e o cosmos, o mundo.
Miki pergunta: “Nesse sentido, como deve-se colocar a tecnologia atual em relação orgânica com os seres humanos? Essa [resposta] não se encontra na tecnologia das ferramentas. É um erro dizer que tal coisa [como uma relação orgânica] é possível sem considerar a diferença fundamental entre as ferramentas e as máquinas. Portanto, é necessária uma tecnologia do coração. O que aqui se chama tecnologia do coração é uma tecnologia feita pelos humanos, pela alma”. Vemos aqui essa ideia de um organicismo, que é importante para Yuk Hui e é algo sobre o qual Miki também trata. Isso aparece no último livro de Yuk Hui, Art and Cosmotechnics, publicado neste ano.
(Foto: Reprodução)
Mas vemos, novamente, que já em 1940 Miki havia proposto uma solução similar: gerar uma técnica orgânica do “coração”, que em japonês também é uma palavra que tem um sentido complexo. Ele explica: “Não se trata de uma tecnologia que controla a natureza, mas de algo que poderia chamar-se tecnologia social. Como a tecnologia que controla a natureza se baseia na ciência natural, a tecnologia social deve basear-se na ciência social. É uma tecnologia que se regula socialmente”. O interessante aqui é que ele trata de expandir o conceito de tecnologia, para pensar a tecnologia social. Essa mesma expressão se encontra em um exemplo contemporâneo da Ministra Digital de Taiwan [Audrey Tang], que se tornou conhecida, sobretudo, por causa do modo como Taiwan lidou com a pandemia, de maneira ordenada, efetiva e rápida.
Em uma entrevista, perguntaram a ela o que faz com que a sociedade taiwanesa esteja tão aberta às novas tecnologias e se adapte tão rapidamente a elas. Ela respondeu que “um fator importante é que em Taiwan a democracia é realmente nova. As primeiras eleições presidenciais foram celebradas em 1996, e a World Wide Web já existia. Vemos a democracia como uma tecnologia, uma tecnologia social aplicada. A constituição é algo que se pode retocar e mudar: já fizemos isso cinco vezes e agora estamos considerando outra mudança. De certo modo, a democracia não é muito diferente do desenho de semicondutores: qualquer um pode melhorá-la”. Aqui não me interessa tanto o conteúdo do que ela disse, mas a possibilidade de pensar novas lógicas da tecnologia. Parece que ela também propõe uma concepção holística de tecnologia e tenta expandir o conceito. Aqui podemos ver também um exemplo de cosmotécnica que não está baseado em cosmologias ancestrais, mas se passa na história concretamente de Taiwan, ou seja, na história de um país. Isto me parece muito mais lógico: não necessariamente a cosmotécnica tem de estar fundamentada ou baseada em uma cosmologia; pode fundamentar-se na história, num processo, em algo que está sendo feito e acontecendo. É daí que gosto de ver a cosmotécnica como método.
IHU – O que significa entender a cosmotécnica como método?
Fernando Wirtz – A cosmotécnica como método não seria a cosmotécnica tal como ela tem sido criticada, como um tipo de reabilitação do essencialismo, mas, ao contrário, uma técnica enquanto uma busca contínua de recontextualizar as histórias da tecnologia. É isso que chamo de pós-cosmologia, cosmotécnica pós-tecnológica.
Gostaria de chamar a atenção para a relevância da cosmotécnica. Um dos pontos é que ela é relevante para sistematizar, documentar, repensar e expandir filosofias tecnológicas não europeias. Esse é o ponto mais óbvio e a estratégia de Yuk Hui é muito interessante para fazer uma filosofia intercultural. A filosofia intercultural tende a fundamentar-se em cosmovisões ancestrais e a entender a cultura como algo independente da tecnologia. Seria interessante fazer uma releitura das histórias filosóficas não ocidentais, levando em conta a postura que tomaram acerca da tecnologia, da técnica – já tem pessoas trabalhando essa questão.
O segundo ponto é que ela é relevante para pensar o papel do contextualismo: a ideia de que a tecnologia aparece mediada em certo contexto cultural ou geográfico. O contexto não é algo que é subtraído do conhecimento, mas adicionado. Isso requer certo exercício intelectual de pensar o contextualismo como algo adicional, algo que seja adicionado à filosofia. Nesse sentido, as filosofias da América Latina não são simplesmente filosofias como resultado de certos movimentos políticos históricos.
O terceiro ponto é que o conceito de cosmotécnica também deve servir para desconstruir e repensar a relação entre tecnologia e gênero. Essa ideia não aparece nos livros de Yuk Hui, mas trata-se de ver que o universalismo tecnológico pensa sempre com base no pensamento ocidental ou fundamentado na filosofia ocidental. Essa questão é tratada pelas filósofas feministas. Elas mencionam que a tecnologia, a imagem e o discurso do tecnológico sempre é masculino; temos uma ideia muito masculinizada de tecnologia. Esse debate não é novo, e pode ser visto nos estudos das arqueólogas Joan Gero e Marcia-Anne Dobres, que pesquisam as ferramentas do paleolítico, buscando, de alguma maneira, desmistificar as diferentes ideias sobre as tecnologias e as mulheres: se as mulheres, por exemplo, caçavam ou usavam tecnologias como a pedra. Além delas, Donna Haraway também é uma autora muito conhecida, que trata de temas similares no campo da filosofia da ciência.
Nota:
Yuk Hui é graduado em engenharia da computação e filosofia na Universidade de Hong Kong e no Goldsmiths College, em Londres. É professor na Bauhaus-Universität Weimar – Alemanha, e se dedica a pesquisar e refletir sobre problemas ontológicos, estéticos, culturais e políticos que envolvem a tecnologia e suas relações no mundo contemporâneo. Conhecido por The Question Concerning Technology in China – An Essay in Cosmotechnics (2016) e outros trabalhos como On the Existence of Digital Objects (2016) e Recursivity and Contingency (2019). (Nota do IHU).