Os imigrantes denunciam as fragilidades do sistema de exploração e exclusão da globalização. Entrevista especial com Sirlei de Souza

O ato de migrar é um direito humano, diz a pesquisadora

Migrantes em Roraima | Foto: Marcelo Camargo - Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 05 Novembro 2020

As migrações que ocorrem no mundo todo não são algo isolado que corresponde somente a determinada população, mas antes um fenômeno imbricado em questões sociais, econômicas e políticas. Os acontecimentos significativos da história recente, como as guerras mundiais, a guerra fria, a crise dos Estados-nação, ajudam a compreender o arcabouço que fomenta as migrações no século XXI. Mais recentemente, é possível observar uma “nova configuração dos fluxos migratórios, em que aparecem como novos destinos os países em processo de desenvolvimento, como, por exemplo, o Brasil. Tais processos migratórios, combinados com o crescente avanço das tecnologias da informação e da comunicação, têm colaborado com uma vivência de deslocamentos entre diferentes realidades socioculturais”, diz Sirlei de Souza, doutora em Comunicação e Cultura e autora da tese “Narrativas imigrantes: tramas comunicacionais e tensões da imigração Haitiana em Joinville/SC (2010-2016)”.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ela explica que, apesar de “os clássicos motivos para as grandes ondas de imigração permanecerem sendo as questões políticas, econômicas e mais recentemente os casos de desastres ambientais, para compreendê-los precisamos nos instrumentalizar de diferentes análises”. Ela diz ainda que desde 2008 o Brasil voltou a ser um país “procurado por imigrantes e refugiados, em decorrência da crise econômica que atingiu os Estados Unidos e a Europa em 2007 e das oportunidades abertas com a realização de dois grandes eventos: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016”.

 

Sirlei também discorre sobre os desafios relacionados à inclusão e inserção dos imigrantes no país, especialmente nas áreas educacional e jurídica, e comenta os pronunciamentos do papa Francisco acerca da “globalização da indiferença”. “Ele problematiza o fenômeno da migração como estruturante do sistema econômico em que vivemos. A migração é tida muitas vezes como um mal de fora para dentro, como o outro, o estrangeiro que nos ameaça. Quase nunca olhamos o imigrante como aquele que denuncia as fragilidades do sistema de exploração e exclusão que a globalização impõe a uma grande parte do nosso planeta”, observa.

 

Sirlei de Souza (Foto: Arquivo pessoal)

Sirlei de Souza é doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e licenciada em História pela Universidade da Região de Joinville – Univille. Atualmente é professora adjunta da Univille e coordenadora do Curso de Direito da Univille na Unidade de São Francisco do Sul.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como compreender os processos migratórios de nosso tempo? Que tipos de migrações ocorrem no mundo atualmente e quais a senhora destaca?

Sirlei de Souza – Em primeiro lugar, é necessário salientar que vivemos tempos muito complexos em que as condições de vida dos mais pobres tornaram-se ainda mais difíceis e a cultura do ódio avança desenfreadamente mundo afora. Conforme refleti recentemente em minha pesquisa [1], os desafios históricos relacionados ao processo de globalização, como a desigualdade econômica, a intolerância entre os povos, a fluidez do espaço-tempo e a força da comunicação virtual, indicam que para analisar as inquietações do tempo presente precisamos olhar para o passado de forma a compreender o fenômeno das migrações imbricado em questões sociais, econômicas e políticas e não como um acontecimento isolado de determinada população. Por isso, as imigrações contemporâneas, ocorridas nas duas primeiras décadas do século XXI, constituem objetos provocativos de investigação para vários campos do conhecimento e necessitam de uma perspectiva interdisciplinar.

 

Três conjunturas

Quando falamos em olhar para o passado, precisamos ao menos revisitar o século XX. Trago aqui alguns apontamentos, que também destaquei em meus estudos de doutoramento, tão bem sistematizados pelo historiador Hobsbawm (1995) [2]. O autor problematiza esse período identificando três conjunturas. A primeira nomeia como “a era da catástrofe”, analisando o contexto que vai da Primeira Guerra Mundial até o que ele denomina de fim dos impérios. Na segunda conjuntura o foco é a análise dos acontecimentos decorrentes da Guerra Fria, dos processos das revoluções culturais e sociais das décadas de 1960/70, provocadas pela explosão da vida urbana e pela ação de uma parte significativa da juventude mundial em conjunto com os movimentos de trabalhadores. Nessa conjuntura dá também destaque ao peso demográfico dos países do Terceiro Mundo, que, após os processos de descolonização, passaram a representar forte pressão na geopolítica dos poderes instituídos. Por último, identifica o fim do século como um momento de “desmoronamento” dos projetos de futuro decorrente das crises político-ideológicas e dos sucessivos colapsos econômicos tanto do capitalismo quanto do socialismo.

Ainda no panorama traçado por Hobsbawm (1995) em relação ao fim do século XX, há destaque para a crise do Estado-nação, fragilizado pelas forças políticas e econômicas supranacionais ou transnacionais e, em algumas partes do mundo, pelas forças infranacionais (de regiões e grupos étnicos separatistas). Diz o autor: “Talvez a característica mais impressionante do fim do século XX seja a tensão entre esse processo de globalização [...] e a incapacidade conjunta das instituições públicas e do comportamento coletivo dos seres humanos de se acomodarem a ele” (HOBSBAWM, 1995, p. 24). É nesse cenário que se configuram o complexo mapa geopolítico contemporâneo e os processos migratórios internacionais.

 

 

Processo geopolítico recente

Já para entender o impacto mais recente de todo esse processo geopolítico no fenômeno da migração, nos apropriamos de algumas reflexões já elaboradas por autores brasileiros como Cogo (2012) [3], que afirma que há uma nova configuração dos fluxos migratórios, principalmente nos últimos anos, em que aparecem como novos destinos os países em processo de desenvolvimento, como, por exemplo, o Brasil. Tais processos migratórios, combinados com o crescente avanço das tecnologias da informação e da comunicação, têm colaborado com uma vivência de deslocamentos entre diferentes realidades socioculturais. Outro elemento importante que vale mencionar é o destacado por ElHajji (2012) [4] , que tem direcionado suas pesquisas para as questões da imigração e comunicação virtual, nomeadas por ele de webdiáspora, sob as quais se configuram novas frentes investigativas da interculturalidade. Segundo seu pensamento, no contexto da globalização, os deslocamentos humanos implicam as dinâmicas de diferentes culturas, provocando vivências entrecruzadas e intensificando os processos de hibridização cultural.

Podemos inferir que os clássicos motivos para as grandes ondas de imigração permanecem sendo as questões políticas, econômicas e mais recentemente os casos de desastres ambientais. Mas para compreendê-los precisamos nos instrumentalizar de diferentes análises, uma vez que, como já dito por nossos colegas pesquisadores citados acima, a comunicação instantânea, fluida e interativa permite um viver lá e cá, abrindo possibilidades para as experiências cibernéticas de conviver com o idioma de seu país de origem e de aprender ao mesmo tempo a língua do país de destino; possibilidades de dois mundos não mais estanques como antigamente, mas muitos de fronteiras cotidianas fluidas, mesmo que ainda fechadas do ponto de vista de políticas governamentais que insistem em construir muros ao invés de pontes.


IHU On-Line - Em que medida a imigração de haitianos para o Brasil atualiza o drama das imigrações de nosso tempo?

Sirlei de Souza – Os haitianos estão entre os maiores contingentes de imigrantes que o Brasil vem recebendo nesses últimos anos. O povo haitiano migra sucessivamente há algumas décadas, por conta das condições político-econômicas de seu país, porém o terremoto de janeiro de 2010, que afetou três milhões de pessoas e deixou mais de 200 mil mortos (Bastante, 2010) [5], é apontado como a causa principal da imigração haitiana recente. Os dados sugerem que aproximadamente 80 mil haitianos tenham obtido registro na Polícia Federal entre 2012 e 2016 (Instituto Migrações e Direitos Humanos, 2016) [6].

Falar da imigração haitiana para o Brasil, sobretudo entre os anos de 2010 e 2016, nos leva a encontrar com um drama trágico relacionado ao terremoto ocorrido naquele país, em 2010, conforme já citamos acima, que visibilizou internacionalmente as condições de uma nação guerreira (a primeira a fazer o processo de independência dos países europeus na América), uma nação explorada sucessivamente por outros colonizadores durante os séculos XIX e XX, e uma nação que se reinventa o tempo todo e encontrou na migração uma estratégia de recomeçar para aqueles que migram, mas, sobretudo, para os que lá permanecem e dependem das remessas enviadas do exterior.

Como apontamos em nossos estudos, o Brasil, a partir de 2008, voltou a ser um país procurado por imigrantes e refugiados, em decorrência da crise econômica que atingiu os Estados Unidos e a Europa em 2007 e das oportunidades abertas com a realização de dois grandes eventos: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Acrescenta-se a isso uma ação dos governos da época (presidente Lula e depois presidente Dilma) de abertura e acolhimento aos haitianos no Brasil, gerando inclusive normativas com garantias de visto por razões humanitárias aos imigrantes haitianos.

No entanto, há questões que precisamos apontar aqui e que, ao nosso ver, o drama dos imigrantes haitianos não finaliza com a chegada ao Brasil. Sua permanência no país e sua vivência aqui precisam enfrentar várias questões, sobretudo aquelas ligadas à sobrevivência e aos processos de xenofobia e de racismo estrutural que se manifestam com veemência em nosso país.

 

 

IHU On-Line - A senhora trabalhou com imigração haitiana na região de Joinville, Santa Catarina, uma região marcada, no passado, pela imigração alemã. Que associações e dissociações podemos fazer entre esses dois processos migratórios?

Sirlei de Souza - Para iniciar essa discussão, trabalharemos aqui com dados da época da pesquisa e já expostos no texto do doutoramento, dados que, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego - MTE (Hatianos no Brasil, 2015), mostram que Santa Catarina apresentou entre os anos de 2011 e 2013 o maior índice de contratação de trabalhadores estrangeiros, registrando aumento de 282%. Nesse período, os haitianos eram 29,3% dos estrangeiros com vínculo formal de trabalho no estado. A cidade de Joinville recebeu entre 2012 e 2016 cerca de 2.280 imigrantes haitianos, figurando entre os principais destinos de haitianos no Sul do país. Como é de conhecimento, Joinville está entre as maiores cidades da Região Sul brasileira e ocupa o terceiro lugar como polo industrial (Prefeitura de Joinville, 2016). Conta com aproximadamente 570 mil habitantes (IBGE, 2017).

Conforme mostram estudos desenvolvidos na última década, a cidade de Joinville constituiu-se historicamente como uma cidade migrante (Coelho, 2011) [7]. A problematização dessa questão é feita pela autora, que discute amplamente a historiografia e as produções da imprensa tanto no passado mais remoto quanto no presente recente no que se refere à imagem de “cidade alemã” e suas imbricações com os movimentos migratórios contemporâneos. Seu adensamento populacional deu-se em meados do século XIX, momento em que recebeu um grande contingente de imigrantes germânicos. A partir de 1970, sobretudo por seu desenvolvimento industrial, que necessitava de grande número de mão de obra, a cidade tornou-se novamente um local de recepção de migrantes, tanto vindos de cidades próximas como de vários outros lugares do país. Foi nesse contexto migratório dos anos 1970 que se intensificou tanto na imprensa quanto na historiografia a construção de narrativas que atribuíram ao processo de imigração germânica o progresso local, fortalecendo um imaginário cultural e político que imputava o protagonismo dos imigrantes germânicos no desenvolvimento econômico e no respeito a valores morais de trabalho, ordem, disciplina e harmonia.

As imbricações desse processo do passado com o presente fluxo de imigração haitiana para Joinville ainda carecem de problematização. Em nosso percurso de pesquisa procuramos por indícios que indicassem, sobretudo nas narrativas da imprensa local, “associações e dissociações” ou “associações ou dissociações” entre esses dois importantes fluxos. Conforme já analisamos em nossa escrita da Tese, é como se a narrativa acerca da imigração no Jornal A Notícia (jornal pesquisado à época) assumisse caráter a-histórico, em outra temporalidade, desconectada da história da cidade migrante. Por outro lado, as narrativas produzidas sobre o imigrante haitiano localizam-no em outra dimensão, muito diferente do papel atribuído no passado àquele imigrante desbravador considerado como colonizador/fundador. O acontecimento fundante para a imigração haitiana apontado, na maioria das vezes, pela narrativa jornalística, é a tragédia, e não o ato de migrar como um direito humano. O imigrante haitiano é oriundo da tragédia, configura-se vítima da pobreza e da miserabilidade humana, teria chegado aqui por vias clandestinas e se agrupado com seus pares em busca da sobrevivência pessoal.

 

 

IHU On-Line - O que as narrativas de imigrantes, especialmente de haitianos, foco de sua pesquisa, revelam?

Sirlei de Souza - Revelam histórias incríveis, sofrimentos do corpo e da alma, resiliência e abnegação, altivez e coragem e muitas, muitas especificidades. Cada imigrante é singular e possuidor de uma narrativa de si mesmo, e o processo de migração se apresenta em suas narrativas de forma muito diversa e são muitos os motivos que o levam a migrar.

Nesse sentido, as narrativas advindas das entrevistas realizadas, na perspectiva da metodologia da história oral, foram fundamentais para entender os trajetos percorridos pelos imigrantes até a chegada em seu local de destino, os significados que atribuem à sua condição migrante e as mediações socioculturais com base em suas vivências no espaço urbano joinvilense.

Entre tantas coisas reveladas nas narrativas dos imigrantes, a pesquisa mostrou que os imigrantes haitianos em Joinville se configuram em um grupo heterogêneo, singular em sua forma de expressão e de vivência da experiência migrante, produtores de sentidos e articuladores da interculturalidade. Por outro lado, ao tomar suas narrativas como atos de comunicação eivados de estratégias anunciadoras de seus projetos imediatos e de sonhos de futuro, vê-se diante daquilo que, na contemporaneidade, aproxima a todos, os torna semelhantes e menos desconectados.

 

IHU On-Line - O que mais a surpreendeu nessa pesquisa com imigrantes haitianos em Santa Catarina?

Sirlei de Souza - O quanto temos para apreender com o outro. O quanto nos enriquece o convívio com os imigrantes (fizemos o processo de estudo conjugado com quatro anos de extensão universitária com um grupo de haitianos, envolvendo homens e mulheres, jovens e crianças), o quanto a vivência das diferentes culturas nos provoca a pensar a contemporaneidade.

Por outro lado, a pesquisa nos mostra quantos desafios temos do ponto de vista do processo de inclusão social e educacional, do espaço no mercado de trabalho com iguais oportunidades e não relegados ao trabalho informal, ou a um trabalho historicamente relegado aos negros por causa desse crime que continuamos cometendo advindo do racismo estrutural.

O que nos entristece muito (mas não nos surpreende) é ainda identificarmos negações de direitos, condições de trabalho desumanas, ausência de políticas públicas de acolhimento e assistência social, educacional e de saúde nas cidades aonde os imigrantes chegam e escolhem para viver; quando eles são, por força de lei inclusive, considerados iguais aos nacionais em direitos. Situações que em alguns casos, a exemplo da assistência social e educacional, um servidor poderia se especializar na língua crioula (língua dos haitianos) e, pela comunicação, compreender suas necessidades.

 

 

IHU On-Line - No Brasil e no mundo, observa-se a incidência de um nacionalismo. Como interpretar esse nacionalismo e como ele incide sobre os processos migratórios?

Sirlei de Souza - Poderíamos chamar esse nacionalismo de xenofobismo? Faço a pergunta porque penso que precisamos compreender que nacionalismo é esse ao qual estamos sendo apresentados, quais as bases desse nacionalismo, quais seus valores e princípios. O que nos tem sido imposto (mesmo que esteja sendo implementado por governos, na maioria das vezes, eleitos legitimamente), são modelos de governo, de políticas públicas e de ações pontuais que disseminam o ódio, o racismo, o sexismo e a xenofobia. Tal nacionalismo possui como pano de fundo a preferência pela imigração branca e europeia, o xenofobismo acontece, majoritariamente, com os imigrantes advindos de países pobres. Assim como reflete Cortina (2017) [8], o sentimento de xenofobia se exacerba pela pobreza. E quando participam desse processo migratório negros e pobres, o nacionalismo se empodera de um discurso hegemônico, excludente e racista.

 

 

IHU On-line - Além do Haiti, quais são as origens dos imigrantes que hoje chegam ao Brasil?

Sirlei de Souza - Conforme o Ministério da Justiça e Segurança, do Governo brasileiro [9] , atualmente os maiores índices de imigração encontram-se nas nacionalidades de haitianos, venezuelanos e colombianos.

 

Fonte: Governo do Brasil, Ministério da Justiça e Segurança. Publicado em: 22 ago. 2020.

 

IHU On-Line - Como a senhora analisa a forma como o Estado brasileiro desenvolve políticas públicas voltadas aos imigrantes? Há alguma semelhança com políticas desenvolvidas no passado? Por quê?

Sirlei de Souza - No Brasil, a legislação sobre a imigração considerava até muito recentemente o estrangeiro uma ameaça, no entanto a nova Lei de Migração (n.º 13.445, de 24 de maio de 2017), que contempla a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, bem como repudia e procura prevenir a xenofobia e o racismo, pode ser vista como um avanço à medida que trata o estrangeiro como sujeito possuidor de garantias e direitos. Todavia, a eleição de 2018 para a presidência da República de um representante das forças conservadoras também fez retroceder os avanços conquistados em relação à vinda e permanência de imigrantes no Brasil. A regulamentação da Lei 13.445 e sobretudo as políticas públicas que terão que ser criadas para a garantia do disposto na lei são novos desafios que devemos enfrentar daqui em diante.

 

 

IHU On-Line - Quais os maiores desafios para a integração do imigrante hoje?

Sirlei de Souza - As experiências de extensão vivenciadas na Universidade da Região de Joinville - Univille nos mostraram grandes desafios relacionados à inclusão e inserção dos imigrantes, seja nos espaços formais de educação, como a escola ou a universidade, seja ainda nos espaços de capacitação para a cidadania ou mais especificamente de qualificação para o mercado de trabalho. É preciso levar em conta os contextos de formação com significativas diferenças de tradição educacional (Haiti e Brasil), bem como as barreiras que as dificuldades linguísticas impõem nesse processo e, sobretudo, a dificuldade de abrir espaços nesses lugares de aprendizagem para as narrativas da experiência de cada um, experiências essas muitas vezes carregadas por memórias traumáticas.

Outro desafio se refere, pela nossa experiência de atendimentos realizados no Escritório Modelo de Atendimento Jurídico da Universidade, à negação dos direitos básicos aos imigrantes e a dificuldade de acesso ao Sistema de Justiça. Sem saber ao certo seus direitos, sem saber a quem recorrer e com as dificuldades advindas da barreira linguística, a garantia dos direitos, sejam eles trabalhistas, de previdência e seguridade social, seja de educação ou saúde.

Entre tantos outros desafios, gostaria de destacar a violência que se manifesta cada vez mais forte contra os imigrantes, principalmente imigrantes negros. Ora de forma física presencial, ora virtualmente, e que temos nominado como a cultura do ódio. Penso que temos um papel importante como professores, pesquisadores, cidadãos, de refletir, discutir e se posicionar contra esse tipo de comportamento político e de dialogar em busca de uma cultura da paz.

 

IHU On-Line - Desde o início do pontificado, Francisco tem chamado a atenção para o drama das migrações. Como a senhora analisa esses movimentos do Papa? E como observa as respostas dadas a Francisco quando traz o assunto à pauta?

Sirlei de Souza - Falar dos posicionamentos do papa Francisco é sempre um alento em tempos de ausência de líderes positivos. Penso que o líder religioso tem pontuado questões que ultrapassam o limite do humanismo e indicam profundas feridas políticas que temos que curar, mesmo que para isso tenhamos que mais uma vez expor o ferimento para em seguida poder tratá-lo.

Quando o papa Francisco se refere aos problemas da imigração como resultado da "globalização da indiferença" [10], ele problematiza o fenômeno da migração como estruturante do sistema econômico em que vivemos. A migração é tida muitas vezes como um mal de fora para dentro, como o outro, o estrangeiro que nos ameaça. Quase nunca olhamos o imigrante como aquele que denuncia as fragilidades do sistema de exploração e exclusão que a globalização impõe a uma grande parte do nosso planeta.

Segundo o papa Francisco, a presença do imigrante pode despertar em nós os grandes e importantes sentimentos cristãos, como a acolhida, a compaixão, o amor, a solidariedade e a perspectiva da igualdade. Quando o Papa diz que os principais desafios envolvendo a presença dos imigrantes é “acolher, proteger, promover e integrar”, considero que ele esteja dizendo que o ato de migrar é um direito humano e como tal deve ser garantido no destino que esse imigrante escolheu para viver ou que as situações adversas o levaram a viver.

 

 

IHU On-Line - Em sua opinião, o desequilíbrio climático e danos ambientais podem ser os maiores geradores de imigrantes nos próximos anos? Por quê? E como podemos evitar que isso se torne um novo drama em pouco tempo?

Sirlei de Souza - Com a pesquisa que desenvolvi até o presente momento não tenho condições de elaborar uma questão tão complexa como essa. Precisaríamos nos debruçar com profundidade no estudo das questões ambientais. O quanto do que vemos acontecer é “natural” e o quanto é produzido como consequência do tipo de desenvolvimento econômico que nosso atual modelo exige? Temos controle sobre isso? Basta mudarmos nosso comportamento de consumo? São questões que dependem de um conjunto de países? Os pactos internacionais existentes são suficientes? São muitas as variáveis a serem consideradas e precisaríamos nos debruçar sobre isso. Possivelmente um novo ethos planetário seja necessário, mas como fazer?

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Sirlei de Souza - Apenas que o tema das migrações do século XXI merece muitos estudos. Vivemos um novo momento na história da humanidade e compreender esses fluxos migracionais pode ajudar a pensar nosso futuro.

 

Notas:

[1] SOUZA, Sirlei de. Narrativas imigrantes: tramas comunicacionais e tensões da imigração haitiana em Joinville/SC (2010-2016). Rio de Janeiro, 2019. 264f. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 10 de outubro de 2020

[2] HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[3] COGO, Denise. Cidadania comunicativa das migrações transnacionais: usos de mídias e mobilização social de latino-americanos. In: ELHAJJI, Mohammed (org). Diásporas, migrações, tecnologias da comunicação e identidades transnacionais. Bellaterra: Institut de la Comunicació, Universitat Autònoma de Barcelona, 2012. p. 43-66. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2017.

[4] ELHAJJI, Mohammed. Diásporas, migrações, tecnologias da comunicação e identidades transnacionais. Bellaterra: Institut de la Comunicación, Universitat Autònoma de Barcelona, 2012. p. 31-42. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2017.

[5] BASTANTE, Jesús. O Haiti é uma das grandes tragédias esquecidas. Instituto Humanitas Unisinos, 3 jun. 2010. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2016.

[6] INSTITUTO MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS. Haitianos no Brasil: dados estatísticos, informações e uma recomendação. Instituto Migrações e Direitos Humanos, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 2 jul. 2017.

[7] COELHO, Ilanil. Pelas tramas de uma cidade migrante. Joinville: Editora Univille, 2011.

[8] CORTINA, Adela. Aporofobia, el rechaço al pobre. Barcelona: Paidós, 2017.

[9] Matéria disponível aqui. Acesso em: 19 out. 2020.

[10] Disponível aqui. Acesso em: 20 mai. 2020.

Olhos
O Brasil, a partir de 2008, voltou a ser um país procurado por imigrantes e refugiados - Sirlei de Souza

Cada imigrante é singular e possuidor de uma narrativa de si mesmo, e o processo de migração se apresenta em suas narrativas de forma muito diversa e são muitos os motivos que o levam a migrar - Sirlei de Souza

Poderíamos chamar esse nacionalismo de xenofobismo? - Sirlei de Souza

Falar dos posicionamentos do papa Francisco é sempre um alento em tempos de ausência de líderes positivos - Sirlei de Souza

Segundo o papa Francisco, a presença do imigrante pode despertar em nós os grandes e importantes sentimentos cristãos, como a acolhida, a compaixão, o amor, a solidariedade e a perspectiva da igualdade - Sirlei de Souza

 

Leia mais