Para encarar os problemas do Brasil, é preciso um olhar nacional desde experiências regionais. Entrevista especial com Vinícius Müller

Constantes denúncias de corrupção no Rio de Janeiro podem passar a ideia de que o universo carioca é espelho do nacional. Para o professor, o Brasil é maior do que o Rio e o país precisa ser compreendido na sua complexidade.

Foto: Jures

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 09 Setembro 2020

Os últimos escândalos e denúncias de corrupção envolvendo o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, trouxeram aquela sensação de reprise, pois situações similares ocorreram em governos anteriores. Conhecido como centro de poder e ícone da identidade nacional, não demorou para surgirem análises de que os problemas no Rio de Janeiro são congênitos e revelam males de um Brasil. Para o historiador Vinícius Müller, é preciso ter cuidado nessas análises e compreender como o Rio se coaduna como um centro desde a chegada da Corte Portuguesa em 1808. “A capital do Brasil, ainda no período colonial, era desde meados do século XVIII o Rio de Janeiro. Até então era Salvador, mas a transferência para o Rio de Janeiro atendia aos planos de maior controle metropolitano sobre a região do ouro”, explica. Além disso, “o Rio de Janeiro havia se transformado na principal praça do tráfico escravista”, constituindo um centro econômico para a então colônia.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor observa que esse centro de poder vai se manter, atravessando o processo de independência e chegando à República. Esse poder nacional centrado num estado vai tensionar olhares sobre o Brasil desde a ótica carioca. Mas, como diz Müller, “a história contada a partir do Rio de Janeiro e do poder que exerceu – e em partes exerce, sobre a sociedade brasileira – não dá conta de identificar estas experiências brasileiras”. “Não há nada de errado em termos o Rio de Janeiro como referência. O que não podemos é ser complacentes com os problemas gravíssimos do Rio de Janeiro mais do que somos com outros problemas do país. E vice-versa”, pondera.

 

Assim, o professor propõe que os problemas sejam encarados de frente, a partir de experiências regionais que buscam saídas. “Precisamos olhar as diferentes trajetórias regionais – tanto no plano estadual quanto no municipal – para identificarmos as experiências virtuosas em nossa história. Sem que isso se transforme em discriminação e armadilhas. Ao contrário, é exatamente porque olhamos pouco para isso que a armadilha se mantém”, sintetiza.

 

Vinícius Müller (Foto: Insper)

Vinícius de Bragança Müller e Oliveira é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Economia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo – FFLCH-USP. Atualmente é professor do Instituto de Ensino e Pesquisa – Insper e da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado – Fecap. Entre suas publicações, destacamos o livro Educação básica, financiamento e autonomia regional: Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul, 1850-1930 (São Paulo: Alameda Editorial, 2018).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais foram as razões ou projetos políticos que já estavam em disputa no Brasil Colônia e que fizeram a Corte portuguesa ir para o Rio de Janeiro e não para Salvador ou outras capitanias do Nordeste? Como o contexto político e econômico da época influenciou essa decisão?

Vinícius Müller – A cidade do Rio de Janeiro era, em 1808, a principal cidade do Brasil colonial. Já ultrapassara em importância Salvador e Recife, já que desde meados do século anterior havia se transformado na capital da colônia. E, sobretudo, o Rio de Janeiro havia se transformado na principal praça do tráfico escravista. Isso deu a ela o posto de principal região econômica do Brasil.

 No Brasil Colônia, o Rio de Janeiro vai se constituindo como principal centro econômico e político do país | Imagem: reprodução de óleo sobre tela de Johann Moritz Rugendas

 

IHU On-Line – Por que o Rio de Janeiro se transformou no centro de poder político do Brasil?

Vinícius Müller – A capital do Brasil, ainda no período colonial, era desde meados do século XVIII o Rio de Janeiro. Até então era Salvador, mas a transferência para o Rio de Janeiro atendia aos planos de maior controle metropolitano sobre a região do ouro, notadamente Minas Gerais. O Rio de Janeiro servia a este propósito, tanto por ser o porto mais próximo da região mineradora, como por oferecer um caminho mais seguro aos portugueses até Minas Gerais. O outro caminho era menos seguro, pois contemplava a região de São Paulo, palco de certa animosidade entre os habitantes da região e o governo português.

 

 

IHU On-Line – Que fatores contribuíram, ao longo da história, para que o Rio de Janeiro fosse visto como o centro ou o modelo político, econômico e cultural do Brasil?

Vinícius Müller – A transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro não só fez com que a cidade passasse por uma transformação urbana, como também lá instalou as principais negociações da Coroa Portuguesa. Isso significa que as negociações, os acordos e as decisões relativas ao Império Português passaram a ser definidos no Rio de Janeiro.

Isso deu à cidade o posto de centro político e o papel de referência cultural e simbólica. Ampliou também sua posição econômica, potencializada pelo tráfico de escravos e pela liberalização do comércio a partir da Franquia dos Portos de 1808. Ou seja, promoveu um encontro entre poder político, simbólico-cultural e econômico que nunca mais em nossa história foi repetido.

 

IHU On-Line – Em que se constitui o projeto político, econômico e cultural para o Brasil desde o Rio de Janeiro, inaugurado com a Independência?

Vinícius Müller – Com a independência, em 1822, o Rio de Janeiro se transformou no polo aglutinador do projeto que, de algum modo, se impôs sobre o Brasil: a Monarquia centralizada, a unidade territorial e a manutenção da escravidão e, portanto, do tráfico negreiro. Ao longo do século XIX a concentração de recursos no Rio de Janeiro manteve-se na ordem dos 50 por cento. Ou seja, metade do que era gasto pelo governo monárquico realizava-se na cidade do Rio de Janeiro, na Corte.

 

IHU On-Line – Como a ideia de que o Rio de Janeiro era o espelho do Brasil foi sustentada ao longo do Império e chegou até a Primeira República?

Vinícius Müller – Exatamente pela dominância desta centralização de recursos, das decisões políticas e principalmente, pela construção de uma identidade nacional feita pela Monarquia instalada no Rio de Janeiro, notadamente na segunda metade do século XIX.



IHU On-Line – Qual era a relação das elites brasileiras com o centro do poder instalado no Rio de Janeiro desde o Brasil Colônia? Como a Independência e a Proclamação da República reconfiguram essas relações?

Vinícius Müller – Bem, esta relação durante o período monárquico era ambígua. Por um lado, a centralização imperial era ampla e indiscutível. Por outro lado, havia a possibilidade de negociações, de reivindicações e, mais importante, de nacionalizações de questões locais. Ou seja, após as turbulências promovidas pelo republicanismo da primeira metade do século XIX e pelos movimentos separatistas, as negociações entre as elites regionais e o Império fixado no Rio de Janeiro passaram a ocorrer internamente às estruturas do Estado brasileiro. Desde então, há uma gangorra entre centralização e descentralização, mesmo na República.

 



IHU On-Line – Em artigo recente, o senhor mencionou que vale a pena revisar o alcance da centralização do Rio de Janeiro sobre outras regiões do Brasil, fazendo referência à falência do Rio. Por que, na sua avaliação, o Rio de Janeiro faliu e o projeto de centralização não deu certo? Que processos históricos contribuíram para isso e a partir de que momento o Rio de Janeiro perdeu a centralidade?

Vinícius Müller – Por um lado, o projeto centralista deu certo. Manteve o país unificado, o que não é pouca coisa. Ao contrário, foi um projeto ambicioso que nós, brasileiros, incorporamos como uma de nossas mais interessantes características.

Contudo, mesmo que esta centralização excessiva fosse controlada pelo Rio de Janeiro, outros projetos, outras realidades e outras trajetórias podem e devem ser vistos com cuidado se quisermos aprofundar nossos entendimentos sobre o Brasil. E, mais importante, para que possamos ter outros espelhos de nossa experiência. Por exemplo, quando identificamos itens relevantes ao nosso desenvolvimento, como a persistente desigualdade e a educação, devemos olhar para as melhores experiências que temos em nossa história. E elas não estão na trajetória do Rio de Janeiro. Ou, melhor dizendo, a história contada a partir do Rio de Janeiro e do poder que exerceu – e em partes exerce, sobre a sociedade brasileira – não dá conta de identificar estas experiências brasileiras.

Os menores índices de desigualdade no país, se vistos por estados, estão em Santa Catarina. Mas não vejo muita gente contando a história do Brasil a partir da experiência catarinense. Nem mesmo entre aqueles que se dizem os arautos do combate à desigualdade brasileira.

 

IHU On-Line – As relações sociais, econômicas e políticas do Rio de Janeiro do período do Império ainda ecoam no Rio de Janeiro de hoje, de alguma forma?

Vinícius Müller – Não faz muito tempo que um governador do Rio de Janeiro disse que um dos problemas de seu estado e de sua principal cidade era a transferência da capital nacional para Brasília. Há estruturas mentais que são mais duradouras do que eventos, como ser ou não a capital. Este discurso, amplamente difundido pelo modo que identificamos, inclusive por partes expressivas da ‘intelligentsia’ nacional, aquelas que seriam características centrais de nosso caráter, é complacente. Como diz a canção, ‘o Rio de Janeiro continua lindo’.

 

 

IHU On-Line – Apesar da falência deste projeto, o Rio de Janeiro pode, ainda hoje, ser considerado um centro de poder importante no país?

Vinícius Müller – Claro, o Rio de Janeiro continua sendo um dos três estados mais ricos do país, assim como sua capital é a segunda maior cidade brasileira. Tem uma cultura incrivelmente interessante e sua população resiste heroicamente aos desmandos que já viraram rotineiros. Além disso, continua sendo parte importante da referência de nossa identidade. Não imagino ser razoável um debate sério no país acerca de uma possível final da copa do mundo de futebol ser realizada em outro estádio que não no Maracanã. Mesmo que a capital econômica seja São Paulo e a capital política Brasília.

 



IHU On-Line – Que papel o Rio de Janeiro desempenha hoje no cenário nacional? Qual é a importância e o status nacional do Rio de Janeiro hoje?

Vinícius Müller – Além das questões já citadas, não podemos esquecer que o Rio de Janeiro ainda é o cartão-postal brasileiro mais conhecido no mundo e é sede do maior grupo de comunicação do país. Ou seja, não há nada de errado em termos o Rio de Janeiro como referência. O que não podemos é ser complacentes com os problemas gravíssimos do Rio de Janeiro mais do que somos com outros problemas do país. E vice-versa.

Isso significa olharmos com mais cuidado como outras soluções, outros projetos e outras trajetórias foram desenvolvidos em nossa história. Como no exemplo anterior, se de fato queremos ter alguma pista de nosso passado sobre como combater a desigualdade, como avançar na educação básica, como termos cidades mais sustentáveis, inclusivas e inteligentes, devemos recuperar nossa trajetória olhando para outras experiências. Muito mais do que já fazemos. E não como História Regional isolada, mas sim como outros fios que nos conduzem pela História do Brasil.

 



IHU On-Line – No artigo, o senhor também destaca que para percebermos os demais projetos que foram se constituindo no Brasil, é preciso reconstruir a história do país não a partir do centro, o Rio de Janeiro, mas sim das regiões. Pode detalhar essa provocação? Como as demais regiões do Brasil foram se desenvolvendo do ponto de vista político, econômico, social e cultural à margem do projeto do Rio de Janeiro?

Vinícius Müller – A tese da excessiva centralização no Rio de Janeiro durante o período imperial, não obstante sua relevância e correção, não dá margem para olharmos o que foi feito nas regiões brasileiras a partir da autonomia que cada uma delas tinha. Certamente a autonomia era baixa, mas não era nem desprezível, como também aumentou ao longo do tempo.

A tese de que, por exemplo, a Bahia e Pernambuco não sustentaram suas posições de destaque econômico no Brasil porque foram ‘explorados’ ou ‘maltratados’ pelo restante do país não é verdadeira. Parte significativa disso reside no modo como estas regiões e suas populações se comportaram, nas escolhas que fizeram. Pernambuco, por exemplo, entre 1850 e 1930, destinou recursos públicos para a educação básica em escalas consideravelmente menores do que o Rio Grande do Sul. Mesmo que a economia e a riqueza de Pernambuco fossem muito mais significativas do que a gaúcha.

Dizer isso não é jogar a culpa em ninguém, mas tentar apontar para os problemas verdadeiros. Porque se não descobrirmos o verdadeiro problema, todos os remédios que receitarmos serão ineficazes. Mesmo a tese de que São Paulo, por conta do café, ‘roubou’ esta posição e se transformou em um polo de poder tão grande que foi capaz de concentrar os esforços do país inteiro para o seu desenvolvimento não se sustenta.

Precisamos olhar as diferentes trajetórias regionais – tanto no plano estadual quanto no municipal – para identificarmos as experiências virtuosas em nossa história. Sem que isso se transforme em discriminação e armadilhas. Ao contrário, é exatamente porque olhamos pouco para isso que a armadilha se mantém.

 

 

IHU On-Line – O que o senhor entende por “vingança dos caipiras”, expressão que cita em seu artigo? Como essa “vingança” se manifesta em relação ao Rio de Janeiro?

Vinícius Müller – Ao olharmos para as experiências regionais, o Rio de Janeiro não apresenta resultados que possam ser considerados desejáveis. Mesmo sendo o centro político, econômico e cultural do país concomitantemente e por tanto tempo, mesmo recebendo metade de todos os gastos feitos pela monarquia durante o século XIX, mesmo ainda tendo a segunda maior cidade do país, o petróleo, a beleza natural e ser o símbolo maior de nossa identidade – o que atrai atenção, recursos, investimentos e, como eu disse, certa complacência –, os índices de desigualdade, violência, inovação, renda, mercado interno, infraestrutura, educação, qualidade de vida e desenvolvimento humano do Rio de Janeiro não estão entre os melhores do país.

Está na hora de olharmos para o porquê, entre as dez cidades com melhor Índice de Desenvolvimento Humano - IDH no país, apenas uma está no estado do Rio de Janeiro. Ou por que os índices educacionais no Rio de Janeiro não estão entre os melhores do país. Assim, é preciso olharmos para outras experiências que, mesmo sendo menos ‘glamourizadas’, mostram melhores resultados. Independentemente de onde elas estão.



IHU On-Line – Quais são os desafios de reconstruir a história brasileira a partir da diversidade e heterogeneidade do Brasil, rompendo com a historiografia que vê o Brasil somente desde o Sudeste?

Vinícius Müller – Aproveitarmos melhor nossa diversidade e nossas variadas experiências. Tirar delas, com mais equilíbrio, propostas para solucionarmos nossos problemas, que não são poucos nem pequenos. Como eu disse, se quisermos de fato combater a desigualdade econômica no país, precisamos olhar para Santa Catarina. Se quisermos de fato melhorar nossos índices educacionais, precisamos olhar com mais cuidado, muito mais, para o Ceará das últimas duas décadas. Se quisermos melhorar nossa infraestrutura precisamos olhar para São Paulo. Se quisermos melhorar a tecnologia, precisamos olhar para nossa agricultura no Centro-Oeste. Para a gestão pública, que tal olharmos com mais cuidado para o Espírito Santo? Esta diversidade pode ser maior e melhor explorada se for mais conhecida e valorizada em nossa produção cultural e intelectual.



IHU On-Line – Alguns pesquisadores dizem que os problemas do Rio de Janeiro são os problemas do Brasil. Concorda?

Vinícius Müller – Não concordo. Apenas tangencialmente, se pensarmos que o Rio de Janeiro foi mais eficiente em transformar suas pautas locais em nacionais. Isso é um elogio. Mas, assim como as vantagens do Rio de Janeiro não podem ser assumidas como sendo nacionais, os problemas também não. O Brasil é muito grande. Parece – e é – chavão, mas é verdadeiro. O Brasil hoje passa muito mais por Goiás do que pelo Rio de Janeiro. Ou no mínimo tanto quanto.

 



IHU On-Line – Nos últimos anos temos assistido a inúmeras crises políticas no Rio de Janeiro, sem falar na situação da saúde pública, da violência e das desigualdades que marcam o estado. Como o senhor observa esse processo? Os problemas que assolam o Rio de Janeiro podem ser considerados os problemas do Brasil?

Vinícius Müller – Apenas em parte. Tanto porque alguns problemas são comuns às regiões variadas do país, mas também porque ainda olhamos o país preferencialmente pela lente do Rio de Janeiro. Eu, particularmente, sempre vou ao Rio de Janeiro, tenho muitos amigos e amigas lá, alguns parentes, uma imensa admiração por profissionais que lá trabalham com indubitável seriedade e competência. Tenho certeza que os problemas serão superados.

Mas temo que as soluções sejam mais dolorosas se a mentalidade dominante for aquela do ex-governador, que afirmou que os problemas do Rio de Janeiro guardam relação com a transferência da capital para Brasília. Esta é a complacência que o Rio de Janeiro precisa combater. E isso serve para todos.

Do mesmo modo, achar que os problemas de São Paulo devem-se à proporcionalmente baixa representatividade que tem na política nacional é esconder de modo juvenil os problemas gerados pelos próprios paulistas. Achar que a secular decadência da Bahia no peso proporcional da riqueza nacional é porque houve uma conspiração para enriquecer o Sudeste em prejuízo do Nordeste ajuda a esconder os equívocos cometidos pelos baianos. É contra esta complacência que reconstruir a história a partir das regiões pode contribuir para que pensemos o desenvolvimento do país, inteiro, de modo mais equilibrado do que até agora conseguimos.

 

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