Por: Vitor Necchi | Edição: Ricardo Machado | 11 Novembro 2017
Não haver uma palavra para descrever certo fenômeno social é, em certa medida, como se o fenômeno não existisse ou que sua efetivação fosse de outra ordem. No caso do suicídio, por exemplo, em quase a totalidade das línguas ameríndias não existe termo equivalente. Isso não significa que a prática não ocorre, mas que ela assume outras formas de significação e sentido. “Em termos bem gerais, os suicídios – assim como a maior parte das mortes súbitas e violentas – são explicados como o produto de feitiçaria e do trabalho espiritual de mortos, de pajés e xamãs. Entre os ameríndios, o fato de alguém acabar com a própria vida é visto apenas como mera consequência de um malefício anterior (perder a alma) e provocado por inimigos ou por inveja de pessoas próximas”, explica o professor e pesquisador José Otávio Catafesto de Souza, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Há que se considerar que nas cosmologias ameríndias a questão da morte física assume contornos outros que não aqueles definidos pela razão e religiosidade ocidentais. “Não existe criminalização, nem terrena, nem celeste. Não há qualquer equivalente ao complexo gerado pela culpa cristã, purgatório e inferno como destinos inelutáveis à alma do suicidado. Pelo contrário, o suicídio pode ser visto como algo positivo, pois permite à alma do morto acessar ao reino dos deuses imortais e chegar à felicidade”, pondera. Isso, contudo, não elimina um fator social de marginalização profunda dos povos originários. Trata-se de um problema social grave e delicado de âmbito global, como sustenta Catafesto, sobretudo considerando que o aquecimento global, o desmatamento das áreas de floresta e o acossamento das formas de vida dessas populações são fatores decisivos para o crescente número de mortes dos indígenas. “O preconceito é um forte fator de suicídio, principalmente entre os jovens sem alternativas de sustento dentro das pequenas aldeias e que se deslocam ao convívio mais frequente com o preconceito dos brancos”, critica.
Catafesto | Foto: Amigos da Terra
José Otávio Catafesto de Souza é etnoarqueólogo, pesquisador e professor interessado por temas relacionados às questões dos povos originários do Mercosul. É formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde também realizou mestrado e doutorado em Antropologia Social. Atua como professor adjunto na mesma universidade, onde coordena o Laboratório de Arqueologia e Etnologia - LAE, que desenvolve projetos de pesquisa sobre Territorialidade Mbyá-Guarani, Etnoarqueologia Ameríndia e Quilombola e Avaliação dos Impactos de Projetos de Desenvolvimento sobre coletivos rurais.
Confira e entrevista.
IHU On-Line – A elaboração feita por um índio acerca do suicídio tem contornos distintos do que ocorre em relação a outros tipos de morte?
José Otávio Catafesto de Souza – Em primeiro, é preciso relativizar a própria ideia de suicídio entre os nativos americanos, já que na quase totalidade das línguas ameríndias não há termo equivalente. Estão em jogo dois universos cosmológicos, filosóficos e ontológicos radicalmente diferentes. No caso do universo ocidental (judaico-cristão), existem consolidadas as ideias de livre-arbítrio e de interioridade individual da alma, entendida como um espírito coeso habitando um corpo pecador, essencialmente apartado do mundo e dos outros humanos e não-humanos. Neste contexto, o suicídio aparece enquanto um ato de iniciativa exclusivamente individual, a quebra grave de um dos dez mandamentos ou resultado final de uma doença depressiva que atinge o sujeito entendido enquanto mônada de sentimento e de pensamento. Ao senso comum e religioso, o suicídio é um fenômeno individual.
As ciências sociais surgiram para produzir um descentramento de tais parâmetros, inclusive descobrindo que as taxas de suicídio nas grandes cidades possuem regularidade de ocorrência, sendo produto de tendências mais coletivas. A antipsiquiatria e a psicanálise descobriram que o suicídio e todas as demais doenças mentais são o resultado de constelações familiares e do contexto social do doente. Assim, as doenças passam a ser reconhecidas também como produtos sociais.
A antropologia descobriu que fora da Europa outros povos pensam e agem de maneira diferente com relação aos mesmos fenômenos.
Nos universos cosmológicos e ontológicos dos ameríndios, cada pessoa é entendida enquanto um compósito de diferentes substâncias, habitado por diferentes almas (divíduo) e passível de ser atingido por forças e espíritos nefastos ou auxiliares. Há a crença na circular reencarnação das almas dos mortos, na possibilidade de alguém se metamorfosear em animais ou mesmo, como entre os Guarani, alcançar a condição de Aguyje (tornar o corpo leve a ponto de ele levitar e subir ao mundo dos deuses imortais, tornando-se Nhanderu Miri). Em termos bem gerais, os suicídios – assim como a maior parte das mortes súbitas e violentas – são explicados como o produto de feitiçaria e do trabalho espiritual de mortos, de pajés e xamãs. Entre os ameríndios, o fato de alguém acabar com a própria vida é visto apenas como mera consequência de um malefício anterior (perder a alma) e provocado por inimigos ou por inveja de pessoas próximas.
No geral, o suicídio recebe o mesmo padrão ameríndio de respeito coletivo às pessoas em suas decisões implicando morte, como no caso do infanticídio realizado pelas próprias mães e nos casos de suicídio. Não existe criminalização, nem terrena, nem celeste. Não há qualquer equivalente ao complexo gerado pela culpa cristã, purgatório e inferno como destinos inelutáveis à alma do suicidado. Pelo contrário, o suicídio pode ser visto como algo positivo, pois permite à alma do morto acessar ao reino dos deuses imortais e chegar à felicidade.
Entre os Tupi-Guarani, por exemplo, o suicídio entra no complexo cosmopolítico da predação da diferença, subjacente à lógica de caçadores e canibais. Em geral, para os grupos originários americanos, não existe o apego e o medo da morte. Pelo contrário, a procura obstinada pelos deuses pode e deve gerar a própria morte, como no caso dos mais valentes guerreiros canibais que não esperavam outro destino mais nobre do que ser caçado e morto por seus inimigos (não deixa de ser uma forma de suicídio).
Os povos originários não possuem medo da morte, nem um apego desesperado à vida; mas há, sim, o medo do morto, de que o espectro do morto permaneça na superfície da terra a incomodar os vivos parentes e conhecidos. No geral, a morte de uma pessoa é considerada como uma espécie de descolamento gradativo do espírito do corpo e da vida terrena. A morte torna-se, assim, esperada e se manifesta como o resultado de uma doença lenta, mas grave. O suicídio pode se encaixar no conjunto de anomalias consideradas enquanto mortes violentas, súbitas e não anunciadas, ao contrário do que sempre se espera. Nestes casos, há um grande receio quanto ao espectro do suicidado a rondar os vivos, a querer levar seus parentes juntos na viagem ao mundo dos mortos.
IHU On-Line – Como eles compreendem a atitude de alguém eliminar a própria vida? Esse ato sugere redenção ou libertação na cultura de povos originais?
José Otávio Catafesto de Souza – Como referido acima, não há qualquer tipo de recriminação moral. Os direitos pessoais são muito respeitados entre os ameríndios, a começar pelo respeito à vontade e autonomia das crianças. São mais de trezentas etnias ameríndias ainda existentes no território brasileiro e é difícil responder algo generalizado para todas elas. Novamente colocamos que mais dependem das condições envolvidas no caso do que uma postura prévia e genérica de recriminação contra o suicídio. Há culturas indígenas que assimilaram certos parâmetros do cristianismo e recriminam o suicídio, mas não há uma forma originária americana genérica para tratar do assunto.
IHU On-Line – Um dado divulgado em setembro pelo Ministério da Saúde, relativo ao período de 2011 e 2015, revelou que a taxa de índios que se matam é maior do que a verificada em brancos, negros e pardos [1]. O que explica essa situação?
José Otávio Catafesto de Souza – Diversos fatores. Em primeiro lugar, resulta do fato de que a taxa de crescimento vegetativo da população indígena é maior do que a taxa média anual da população brasileira. Para o caso das aldeias do Sul do Brasil (que eu conheço), é impressionante constatar a grande quantidade de crianças e jovens em relação às pessoas mais velhas.
Em segundo lugar, o suicídio aparece elevado principalmente entre as comunidades e etnias que enfrentam as maiores dificuldades em termos de disponibilidade de espaço ambiental íntegro, alternativas ao sustento familiar e o grau de discriminação e racismo enfrentado junto aos brancos do entorno. As terras disponíveis às comunidades originárias são geralmente pequenas e os indígenas foram concentrados em vilas e submetidos ao controle do indigenismo estatal, para se manterem passíveis à exploração em termos de trabalho e de sexo. Há teses desenvolvidas por linguistas e antropólogos que estudaram na Amazônia e concluíram que o processo de escolarização, de aprendizado do Português e de repressão ao uso das línguas originárias provoca efeitos psíquicos traumáticos entre os ameríndios. Trata-se do fenômeno chamado souffrence, uma espécie de depressão apontada como uma das importantes causas de suicídio entre os Ticuna. Os jovens sofrem mentalmente ao terem que suprimir suas línguas maternas.
Em terceiro lugar, coloco como fator importante a grande devastação ambiental de florestas, cerrado e campos nas últimas décadas, fruto do crescimento do agronegócio, das cidades, hidrelétricas, minerações etc. Mesmo nas terras indígenas onde o ambiente natural ainda está preservado, os efeitos sociais são crescentes porque há a redução drástica de animais originalmente utilizados tanto na dieta quanto referentes aos complexos cosmológicos das culturas originárias.
Há ainda um quarto importante fator que é a grande quantidade de igrejas cristãs e índios crentes a incorporar a culpa por serem nativos selvagens, já que os cultos reforçam o repúdio a tudo o que está relacionado aos sistemas cosmológicos nativos.
IHU On-Line – Um funcionário da Secretaria Especial de Saúde Indígena - Sesai, ligada ao Ministério da Saúde, para tentar explicar o fenômeno, disse: “O contato com a sociedade não indígena, a discriminação racial, dificuldades de inserção social, de acesso à terra, e a transformação nas relações familiares faz com que nesse período ocorra o maior número de suicídios entre os indígenas”. Como estes fatores ajudam a entender a situação?
José Otávio Catafesto de Souza – Algo já foi tratado acima. O preconceito é um forte fator de suicídio, principalmente entre os jovens sem alternativas de sustento dentro das pequenas aldeias e que se deslocam ao convívio mais frequente com o preconceito dos brancos. Não sei a que situação ou etnia específica o funcionário se refere, mas não concordo (no geral) que a transformação das relações familiares seja um fator importante, a começar pelo fato de que quase todos os grupos resguardam núcleos de reprodução tradicionais, a não ser o caso em que grupos originários sofram um processo forçado e rápido de miscigenação.
IHU On-Line – As três etnias com mais altos índices de suicídio são os Guarani Kaiowá (MS), os Ticuna (AM) e os Carajás (TO). Que problemas em comum esses povos têm?
José Otávio Catafesto de Souza – Muitos problemas em comum: presença de igrejas, crescente alcoolismo, conflitos internos. Diversos dos aspectos tratados anteriormente.
IHU On-Line – A Constituição de 1988 possibilitou que houvesse mais demarcação de terras indígenas, fato que gerou muitos conflitos fundiários e violência por parte de agricultores e pecuaristas. A defesa da própria terra está na origem da mortandade de índios, incluindo os homicídios?
José Otávio Catafesto de Souza – A Constituição Federal de 1988 estabeleceu cinco anos para completar as demarcações, e passados quase 30 anos uma pequena parte das terras foi regularizada e mesmo as regularizadas estão colocadas em suspeição pelo Congresso e Executivo federais. O caso dos Kaiowá é o mais crítico há décadas, contando com a represália da justiça estadual. Recomendamos assistir ao documentário Martírio (2017), de Vincent Carelli [2], que conta a trajetória de lutas e de mortes sofridas pelos Guarani.
Entretanto, a questão dos índios não se reduz pelo conceito ocidental de terra, é bem mais complexa e diferente da Ocidental. Os índios não lutavam para ter terra, porque para eles nós é que pertencemos à Terra (planeta). A relação dos ameríndios com a superfície do planeta é uma relação cosmo-ecológica, fundamentada numa forma muito peculiar de filosofia, onde os animais, plantas e minerais são considerados simetricamente como espíritos com os quais se deve negociar, respeitar, conviver.
IHU On-Line – As altas taxas de suicídio entre povos originários são observadas também em outros países, por exemplo, os aborígenes australianos e os indígenas norte-americanos. A letalidade do choque entre os mundos é um problema mundial?
José Otávio Catafesto de Souza – É interessante pensar os indígenas, assim como as crianças e muitas ecologias frágeis do planeta, enquanto parâmetros muito contundentes para medir a qualidade de vida vigente em nossa civilização mundial. É certo que os problemas mais graves atingem inicialmente os mais vulneráveis, mas tais problemas envolvem causas e consequências em que todos estamos implicados. Tais dados sugerem pensar na necessidade de tomar iniciativas que revertam tal vulnerabilidade, pois todos os fatores apontados acima devem estar atuando para que os índices de suicídio e de maior violência interna e externa façam parte de maneira crescente no cotidiano das comunidades ameríndias.
Sim, é um problema planetário.
Notas:
[1] Conforme o Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por Suicídio no Brasil, a taxa de suicídio entre índios é de 15,2 para cada cem mil pessoas, superior à registrada entre brancos (5,9), negros (4,7) e amarelos (2,4). (Nota da IHU On-Line)
[2] Na próxima edição da IHU On-Line haverá uma entrevista com Vincent Carelli sobre o documentário Martírio. (Nota da IHU On-Line)
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A complexa leveza dos corpos nas cosmologias ameríndias. Entrevista especial com José Otávio Catafesto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU