16 Dezembro 2013
"É próprio do Direito realizar a mediação (o vínculo dialético) entre a força e o bem, entendendo que a força são as relações de força e de interesse que se confrontam no campo político, social e econômico, ao passo que o bem são as diferentes concepções da vida boa que se oferecem a nós", afirma o jurista belga.
Para o jurista e filósofo belga François Ost, nem a vingança, nem o perdão fazem parte da esfera do Direito. “Somente a punição, no sentido de uma sanção imposta por um tribunal público, é jurídica. A vingança é infrajurídica, e o perdão, suprajurídico”, afirma. “A vingança tende, potencialmente, para a acusação, e esta para a violência incontrolada, ao passo que o perdão tende potencialmente a atrair para o dom, o abandono (das ofensas) e, finalmente, o amor, que, como se diz, ‘não conta’”. Estes elementos, no entanto, estão em constante relação e permeiam uns aos outros em diferentes proporcionalidades e equivalências.
Ost enxerga a literatura como um espaço que “nos convida a pensar os possíveis jurídicos”, para além da visão jurídica tradicional. “Ao alimentar os nossos imaginários coletivos, ela torna pensáveis e às vezes desejáveis, alternativas ao direito positivo, e, nesse caso, seu papel civilizador torna-se fundamental”. Neste vasto campo de possibilidades, as relações de troca constante entre vingança, perdão e punição mais uma vez se desvelam. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o jurista desenvolve parte deste raciocínio.
As tragédias gregas, por exemplo, seriam terrenos férteis para narrativas de vingança e justiça, num momento em que Atenas “assentava as bases daquilo que seria a democracia”. Shakespeare, Balzac, Kafka e tantos outros grandes autores da literatura universal seriam igualmente provocativos, questionando a figura humana, o papel do homem diante da sociedade e a própria estrutura das leis. No entanto, não apenas os clássicos transmitem mensagens relevantes. “O que chamamos de “literatura”? O romance popular, o thriller e a literatura oral certamente não deveriam ser descartados. E onde fixar o limite entre o relato jornalístico de um fato qualquer e um grande romance extraído das mesmas circunstâncias?”, questiona ele.
François Ost possui graduação em Direito e em Filosofia pela Université Catholique de Louvain – UCL e doutorado em Direito pela mesma universidade. Atualmente é professor das Faculdades Universitárias de Saint-Louis em Bruxelas, na Bélgica. Atua também como presidente da Academia Europeia de Filosofia do Direito e é um dos pioneiros no estudo da hermenêutica jurídica no campo das relações entre Direito e Literatura.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a relação que pode ser estabelecida entre vingança, punição e perdão sob uma perspectiva do Direito?
François Ost - Na perspectiva do direito, somente a punição, no sentido de uma sanção imposta por um tribunal público, é jurídica. A vingança é infrajurídica, e o perdão, suprajurídico. A vingança tende, potencialmente, para a acusação, e esta para a violência incontrolada, ao passo que o perdão tende potencialmente a atrair para o dom, o abandono (das ofensas) e, finalmente, o amor, que, como se diz, “não conta”.
Contudo, a figura intermediária da sanção legal não é totalmente estranha a estas duas lógicas antagônicas; ela comporta, com efeito, uma dimensão retributiva não eliminável. E, ao contrário, podemos notar que o adágio da antiga lei do talião, “olho por olho, dente por dente”, comporta uma dimensão de equivalência e de justa medida que já representa um progresso considerável em relação à vingança. É este mesmo princípio de equivalência e de proporcionalidade que se encontra na dimensão retributiva da sanção penal e na dimensão compensatória da sanção civil.
No outro extremo do espectro, não podemos negar que a dimensão do perdão inspira, às vezes, o juiz ou as vítimas no quadro dos modos alternativos de justiça (conciliação, mediação). Nota-se a este respeito que o desejo essencial das vítimas é o reconhecimento de seu estatuto de vítima e a realidade das ofensas sofridas, mais do que a sanção da vítima. Uma solução intermediária consiste na condenação apenas simbólica do autor da falta (declaração de culpabilidade e estigmatização moral na ausência de outras sanções). Mas, eu repito, no sentido jurídico do termo, somente a sanção é estritamente legal. A vingança e o perdão são um universo privado e pré ou pós-jurídico.
IHU On-Line - Quais são as relações fundamentais que podem ser apontadas entre Direito e Literatura tomando em consideração essas três categorias?
François Ost - Na minha concepção, expressa especialmente no livro Contar a lei. As fontes do imaginário jurídico [São Leopoldo: Unisinos, 2005], a literatura nos convida a pensar os “possíveis jurídicos”. Ao alimentar os nossos imaginários coletivos, ela torna pensáveis, e às vezes desejáveis, alternativas ao direito positivo, e, nesse caso, seu papel civilizador torna-se fundamental (penso especialmente nas análises do filósofo francês Cornelius Castoriádis, consagradas àquilo que ele chama de “imaginário social instituinte”).
Assim, por exemplo, a passagem da vingança privada à justiça do terceiro foi magistralmente experimentada por Ésquilo em sua tragédia Emênides, realizada em Atenas no século VI a.C., num momento em que a cidade grega assentava as bases daquilo que seria a democracia. Nesta peça, um matricida, Orestes, é, pela primeira vez, arrancado dos braços da vingança familiar e divina, encarnada pelas terríveis Erínias, e julgado por um júri composto por cidadãos atenienses ao final de uma troca regrada de argumentos e de um voto majoritário.
A revolução assim operada é considerável: ela assinala a entrada no universo do Direito, uma vez que se cessa de fazer justiça com as próprias mãos e se entrega a resolução do litígio a um terceiro imparcial.
Do outro lado da cadeia, a literatura pode também defender a ultrapassagem da justiça estatal e sua entrada no universo do ágape, do amor que não conta; livra-se então da lógica da compensação e dá-se ou perdoa-se, sem esperar retorno. Uma obra como Ressurreição (São Paulo: Casac Naify, 2013), de Tolstoi, inscreve-se nesta veia evangélica que coloca com força a seguinte questão: “quem somos nós para julgar?”.
IHU On-Line - Que obras são emblemáticas em estabelecer um nexo mais profundo entre esses dois campos do conhecimento?
François Ost - Essa escolha é, evidentemente, pessoal, tão numerosas são as obras literárias que entram em diálogo com o direito. De resto, o corpus, ou cânon, literário que serve de base para a corrente “direito e literatura” não é objeto de uma determinação fixa ou definitiva. O que chamamos de “literatura”? O romance popular, o thriller e a literatura oral certamente não deveriam ser descartados. E onde fixar o limite entre o relato jornalístico de um fato qualquer e um grande romance extraído das mesmas circunstâncias?
Feita esta precisão, eis algumas obras que alimentaram muito o meu trabalho: algumas páginas da Bíblia (a Lei no Sinai, a sua relação com o Protágoras de Platão), quase toda a tragédia grega (Antígona pela resistência à injustiça, Eumênides pela passagem da vingança à justiça), Robinson Crusoé (por pensar o individualismo moderno, e suas traduções jurídicas, a propriedade e o contrato), Fausto e Don Juan (pelas figuras transgressoras do sujeito moderno), e depois também Shakespeare (seria necessário citar tudo; retenho, especialmente, sua reflexão contínua sobre “os dois corpos do rei”), Balzac (sua Comédia Humana é uma exploração crítica do Código Civil de 1804), Kafka (cuja vida e escritos são uma batalha permanente com a Lei). Seria necessário, além disso, evocar Cervantes, Melville, Tolstoi, Dostoiévski e tantos outros.
IHU On-Line - Quais foram as principais mudanças pelas quais passou o conceito de justiça até nossos dias?
François Ost - Para responder à sua pergunta, é preciso distinguir a justiça como instituição e a justiça como virtude ou como valor. Enquanto instituição, podemos dizer que ao longo dos séculos a justiça se racionalizou, profissionalizou e ampliou. Ela foi se libertando progressivamente das suas origens mágicas (as provas ordálicas ou “julgamentos de deus” cederam lugar às provas materiais, e os raciocínios argumentados substituíram as palavras encantatórias, as imprecações e as maldições). Ela também deixou de ser exercida pelos mais velhos e sábios. Como Max Weber mostrou, ela tornou-se progressivamente o apanágio de juristas profissionais, especialistas do processo. Enfim, ela não cessou de ampliar seu campo de aplicação, desde o clã familiar, nas origens, até a nação moderna; e hoje ganhou o mundo inteiro com a Corte Internacional de Justiça ou a Corte Penal Internacional.
Valor
Se olharmos a justiça como virtude ou como valor, é mais difícil evocar sua evolução em poucas palavras, tão múltiplas são as acepções da noção, desde Aristóteles até Rawls, passando por Santo Tomás e Marx. Eu percebo, no entanto, um aspecto central na noção, simbolizado pela imagem da balança: é a busca de uma certa igualdade que vê que tratamos de maneira igual todos aqueles que se encontram em situação semelhante. Mas o que é uma “situação semelhante”?
Hoje, em regime dos direitos humanos, já não aceitamos mais um sistema de castas, por exemplo, que, no entanto, trata de maneira igual os membros situados na mesma casta, porque acreditamos que, de acordo com a situação genérica de “seres humanos”, a pertença a uma casta é uma categoria não pertinente e, portanto, discriminatória.
Também começamos a considerar que os futuros habitantes do planeta participam da nossa comunidade moral e política e, como tal, as exigências de tratamento igual se aplicam também a eles (poderíamos argumentar, por exemplo, que nós não temos nenhum título para exercer em relação a eles um “direito de maioridade” intergeracional e de privá-los do igual acesso aos recursos vitais).
IHU On-Line - Nesse sentido, a justiça é a mesma para todos?
François Ost - É o desejo da justiça ser a mesma para todos, e progressos consideráveis foram realizados nesse sentido ao longo da história: penso, por exemplo, na luta contra os privilégios de jurisdição, as impunidades (políticas) e os tribunais de exceção; penso também nos esforços realizados para facilitar o acesso dos mais pobres à justiça ou para fornecer a todos tradutores competentes. É preciso, entretanto, muito para que esse desejo seja de fato plenamente realizado (e uma abundante literatura não se furta a denunciar isso — basta evocar as Fábulas de La Fontaine, Dickens, Hugo). No plano filosófico, o francês Jean-François Lyotard propõe uma distinção muito útil entre o litígio clássico e aquilo que ele chama de “diferendo”; no litígio clássico, as partes são evidentemente opostas, mas o litígio encontra uma solução aceitável mesmo para o perdedor, porque foi traduzido numa linguagem jurídica compreensível e significativa para as duas partes.
Ao contrário, em um “diferendo”, o código jurídico da realidade permanece amplamente incompreensível para uma das duas partes, de sorte que a decisão jurídica que intervir aparecerá como uma real violência. Ela terá o sentimento de não ter sido entendida e que seu dano permanece irreparável ou que sua condenação é infundada. É por isso que o filósofo Paul Ricoeur tem razão ao enfatizar que a justiça contentou-se em “atribuir a cada um o que é seu” (suum cuique tribuere) — nesse caso teria havido uma restituição, mas que reforça a ordem social em vigor, que pode ser muito desigual. Ricoeur explica que além desta “atribuição das partes” de cada um, a justiça deve centrar-se na tentativa de retomar o vínculo social perturbado criando as condições para que cada um possa “fazer (ou novamente) parte” da vida social. Nesta “função longa” da justiça, o objetivo não é mais a simples realização do status quo ante, mas a restauração de uma forma de pacificação ou de harmonização social que leva em conta as condições psicológicas e sociais do “diferendo” no sentido de Lyotard.
IHU On-Line - Pensadores como Giorgio Agamben acentuam haver uma juridicização da vida. Em que medida o Direito se tornou hegemônico, preponderante sobre as outras instâncias da vida em sociedade?
François Ost - Parece-me que a realidade é mais complexa. Se observamos, com efeito, uma juridicização da vida social, notamos, ao contrário, uma invasão do discurso jurídico por discursos, práticas e valores emprestados de outros setores e disciplinas, tais como, por exemplo, do campo financeiro e contábil, ou do setor medicinal e psicológico, para me limitar a esses dois exemplos.
Há, com efeito, normas jurídicas sempre mais numerosas (o famoso tema da “inflação legislativa”) e mais diversificadas, bem como um aumento considerável dos recursos, nos contenciosos mais diversos (penso na disciplina escolar, por exemplo). Mas a questão mais importante, na minha opinião, é saber “quem instrumentaliza quem”: é o direito, com seus conceitos, processos e valores específicos, que se impõe a todos os setores da vida social, ou, ao contrário, é uma lógica gerencial (ou, em outros tempos ou outros lugares, uma lógica religiosa) que se serve do instrumento jurídico para difundir e impor em todas as partes seus próprios cânones? Neste último caso, o retorno ao direito é justificado por duas funções que se espera do jurídico: aquela do notário ou do escrivão, lavrando os principais atos da vida social, e aquela do guarda impondo, ao contrário, as normas sociais consideradas as mais importantes.
Atualmente, é difícil responder à questão que eu coloco, mas dada sua importância, é necessário que a pesquisa jurídica consagre a este tema grande atenção. Da minha parte, coordeno atualmente uma pesquisa interuniversitária sobre a temática da “concorrência das normatividades” e estou escrevendo um estudo intitulado “A quem serve o direito?”. Neste momento, minha primeira resposta é a seguinte: o direito formula uma ordem de arbitragem e de equilíbrio geral, que impõe, na maioria das vezes, sob coação, moderando múltiplos processos para colocá-lo em discussão.
IHU On-Line - Qual é o papel do Direito na construção do estado de exceção nas sociedades contemporâneas? E como podemos compreender o paradoxo que resulta do estado de exceção?
François Ost - Diante de situações excepcionais e urgentes, suscetíveis de colocar em jogo a própria sobrevivência da nação, o direito se acomoda a “estados de exceção”. A própria convenção europeia dos direitos humanos prevê uma hipótese desse gênero em seu artigo 15. É preciso sublinhar, entretanto, que a execução dos estados de exceção, autorizados sob o adágio salus patriae suprema lex, é extremamente perigosa para a democracia e deve ser manejada com grande prudência e sob controle internacional.
Eu recordo a este respeito que a frase “nenhuma liberdade aos inimigos da liberdade” é de Saint Just, o ideólogo de Robespierre, responsável pelo terror que ensanguentou a Revolução Francesa. Isso não impede que, após a Segunda Guerra Mundial e o surgimento das ideologias totalitárias nos anos 1930, no coração de velhos Estados de direito como a Alemanha, a Itália e a França, as constituições entendessem por bem reagir enfatizando que o estado de direito não devia ser um estado de impotência. Não se aceitava mais, sem reagir, o fortalecimento de partidos cujo programa visava suprimir o regime democrático das liberdades, o mesmo que os partidos usam para se desenvolver.
Há, portanto, efetivamente um paradoxo na execução dos estados de exceção: usa-se uma pequena dose de métodos antidemocráticos para proteger melhor a democracia. É o que eu justifico como “método da vacina”: inocular uma pequena dose de vírus para fabricar anticorpos e assim se prevenir contra um ataque da doença.
Encontramos um outro paralelo nas medidas antitruste, preconizadas pelos mais ardorosos defensores do livre comércio, em vista de proteger a concorrência contra os operadores econômicos sempre levados a expandir o seu império e, assim, através de oligopólios e depois monopólios, dar um golpe fatal ao mecanismo de mercado, o mesmo que permitiu que se desenvolvessem.
Se, portanto, os textos jurídicos existentes consagram os estados de exceção, assim como algumas justificativas filosóficas, eu recordo, no entanto, veementemente, que o controle desse “desvio” constitucional é muito delicado e só deveria ser operado por períodos curtos, sob o controle internacional, e no respeito absoluto dos direitos fundamentais.
IHU On-Line - Qual é a atualidade para o Direito da concepção kantiana de autonomia?
François Ost - Do ponto de vista jurídico, eu responderia que esta concepção kantiana está na base do princípio “a convenção legalmente formada tem força de lei” (autonomia da vontade), que inspira o Código Civil Francês (o célebre artigo 1134). Apesar de uma proliferante legislação estatal, esse princípio permanece sendo a base do direito dos contratos e traduz a vontade liberal de reconhecer ao sujeito de direito a capacidade de criar e transferir direitos.
Do ponto de vista filosófico, é preciso recordar que esta concepção de indivíduo autônomo (isto é, autor ou coautor das regras que ele subscreve) é a essência mesma do sujeito moderno, inclusive do sujeito político — suposto que subscreveu o contrato social, base do vínculo social. Nossa cultura pós-moderna, que tende a exacerbar esta figura do sujeito-rei, no quadro do individualismo triunfante, apresenta o risco de exagerar ao absurdo esta lógica do sujeito político autor das leis às quais obedece. Absurdo, porque uma lei individual não é uma lei comum, nem um limite às pulsões do indivíduo. Uma lei puramente pessoal, como as psicológicas e também a leitura das obras de Sade nos recordam, é a lei à qual aspira ao perverso que quer impô-la sem levar em conta a lei comum.
Nessas condições, um dos maiores desafios do Direito e da Filosofia do Direito contemporâneos é reabilitar os deveres e responsabilidades que permanecem à sombra dos direitos individuais, inclusive dos direitos humanos, quando, no entanto, são indispensáveis para a sua efetividade e, mais amplamente, para o equilíbrio do vínculo social que é feito, ao mesmo tempo, de direitos e deveres. Não somente no sentido formal, segundo o qual o direito de A implica no dever de B, mas no sentido mais fundamental, segundo o qual a minha liberdade cresce na mesma proporção daquela dos outros, de sorte que a liberdade de todos é a condição da liberdade de cada um (recordemos que o liberalismo nu e cru sustenta, ao contrário, que a minha liberdade termina ali onde começa a do outro).
Para mim, existe uma maneira de sair da oposição estéril e artificial entre os direitos e deveres, que é compreender que uns e outros derivam, como recorda a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da dignidade humana. De resto, o imperativo categórico da moral kantiana já o precisava: “Age de tal modo que consideres a humanidade tanto na tua pessoa quanto na de qualquer outro sempre como um fim e nunca como simples meio”.
IHU On-Line - Quais são os grandes desafios do Direito tendo em vista questões como os refugiados, o terrorismo e a globalização da miséria?
François Ost - Impossível responder de maneira precisa e concreta a essas questões. No entanto, posso dizer, de maneira geral, que o desafio jurídico mais urgente consiste em encontrar uma força jurídica imaginativa — uma capacidade de utopia de que fomos capazes em outras épocas, logo depois da Segunda Guerra Mundial, por exemplo; o desafio é a capacidade de o direito impor ficções que façam sentido e impor uma visão de vínculo social (para mim: um vínculo solidário e duradouro).
Ficções que, por seu efeito simbólico, pedagógico e performático, transformam as mentalidades e inspiram as mudanças políticas futuras (exemplos: o corpo não é mercadoria; a Antártida é patrimônio comum da humanidade). Sem esta mobilização de um imaginário fundador, permaneceremos presos ao pensamento único e aos bloqueios políticos, econômicos e sociais aos quais ele conduz. Eu espero que não necessitemos, como no passado, de uma catástrofe militar, humanitária, sanitária ou ecológica para realizar essa mudança de perspectiva. E observo, de passagem, o vínculo social disto com a literatura que oferece relatos de sentido, às vezes o “romance político” da nação — hoje, o “romance político” da humanidade solidária.
Qual ficção fundadora? Qual visão de mundo? Mais uma vez, não posso entrar na substância dessas questões colocadas. Eu responderia de maneira geral que é próprio do Direito realizar a mediação (o vínculo dialético) entre a força e o bem, entendendo que a força são as relações de força e de interesse que se confrontam no campo político, social e econômico, ao passo que o bem são as diferentes concepções da vida boa que se oferecem a nós.
Um direito que se apoiasse exclusivamente sobre a força seria tirânico; um direito apoiado exclusivamente sobre o bem seria impotente — Pascal já observava isso.
Nesse papel de mediação, pertence ao direito inventar e tornar aplicáveis compromissos que não sejam, no entanto, comprometimentos. Fazer respeitar em todas as circunstâncias o “núcleo duro” dos direitos humanos, concedendo, como no Canadá, “adaptações razoáveis”, ou uma “margem nacional de apreciação”, como na Europa, são, entre outros, exemplos desta postura de mediação.
A aplicação das garantias processuais ligadas ao “processo justo” é outro exemplo. É uma das façanhas mais importantes que podemos esperar do direito: visibilizar os conflitos sociais mais que escondê-los, e, na sequência, encontrar uma saída pacífica para eles.
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Vingar, punir, perdoar. A literatura como espaço de possíveis jurídicos. Entrevista especial com François Ost - Instituto Humanitas Unisinos - IHU