23 Setembro 2013
"A representação está em crise em todo o mundo democrático porque o modelo burguês de representação foi concebido contra a democracia e só aos poucos se democratizou com o voto secreto, o sufrágio universal e o sistema proporcional", constata o professor de Direito da PUC-Rio.
Assessor parlamentar durante a Assembleia Constituinte, Adriano Pilatti, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio, comenta os desafios na articulação do diálogo entre mais de 500 parlamentares, juntamente com a sociedade civil. A elaboração do Regimento Interno foi determinante para garantir a dinâmica de trabalho. “A tônica da discussão do Regimento, que tomou mais de dois meses, foi justamente a garantia dessa participação.
O modo encontrado foi o sistema de 24 subcomissões temáticas, agrupadas três a três em oito comissões temáticas, cujos anteprojetos seriam unificados pela Comissão de Sistematização no Projeto de Constituição a ser votado por todo o Plenário. Com isto, cada parlamentar teve participação efetiva como titular em uma subcomissão e na respectiva comissão”, explica Pilatti, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Tal solução favoreceu, de saída, a agenda progressista, pois predefiniu os conteúdos que deveriam necessariamente constar do novo texto — reforma agrária, terras indígenas, comunicação social, etc. —, beneficiando a concepção progressista de uma Constituição ‘analítica’ ou ‘dirigente’, ao contrário do que desejavam os conservadores na defesa de uma Constituição ‘sintética’, que não tratasse de temas sociais, minorias”, complementa.
Apesar da reabertura política garantida pela Constituição, o período de transição foi lento e gradual, sendo que, nos primeiros governos, segundo o professor, o país seguiu mais alinhado a uma perspectiva conservadora. “Politicamente, o confronto entre progressistas e conservadores, a que se sobrepôs o conflito entre governistas e oposicionistas. Sedento por um mandato de cinco anos, o presidente Sarney acabou por fazer ‘dobradinha’ com o conservadorismo, o que não lhe foi difícil, pois era um de seus representantes. Além disso, naquele momento de transição, havia a pretensão tutelar dos ministros militares: naquela época não havia um Ministério da Defesa, cada força armada tinha o seu ministro, além dos ministros-chefes do Estado Maior das Forças Armadas, do Gabinete Militar e do famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI), ainda existente”, avalia.
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro — Iuperj, com Pós-Doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I — La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte — Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 — Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).
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Adriano Piliatti (foto) proferirá a conferência "A Constituição no Supremo Tribunal Federal: a (des) construção da democracia brasileira", no dia 02-10-2013, no Seminário "Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Direito - Unisinos e Programa de Pós-Graduação em História - Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que reflexos da última Constituinte ainda podem ser percebidos hoje em dia e que benefícios trazem à sociedade?
Adriano Pilatti - Em primeiro lugar, claro, a própria Constituição Cidadã. Ela foi assim denominada pelo bravo e inesquecível presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, justamente pela consistência liberadora da Carta de Direitos e pela amplitude reformista das diretrizes relativas às políticas públicas de caráter social e econômico. Ela tem sido um marco precioso nas sofridas lutas por direitos levadas avante pelo bom povo brasileiro, especialmente pela maioria trabalhadora e despossuída, e pelas chamadas “minorias”, discriminadas e marginalizadas. Um belo exemplo é o uso que tem sido feito do artigo 3º, que define os chamados “objetivos fundamentais da República”, nas lutas por igualdade, seja por parte dos movimentos sociais, seja por parte do próprio STF, como nos casos das leis de cotas e das uniões homoafetivas. Mas os efeitos positivos são sensíveis também do ponto de vista procedimental, como no caso das audiências públicas com representantes da chamada “sociedade civil”, intensamente utilizadas durante a Constituinte, e hoje incorporadas aos processos decisórios dos Legislativos federal, estaduais e municipais.
IHU On-Line - Em outro momento o senhor comentou que a “criatura” (a Constituinte) escapou ao “criador” (o Governo e o Congresso). Do que se trata? Quais foram os impactos disso?
Adriano Pilatti - O formato congressual, proposto pelo governo Sarney e afinal adotado pelo Congresso na emenda que convocou a constituinte, buscava favorecer os setores conservadores e reacionários. O Congresso Constituinte, a ser eleito simultaneamente com os governadores em 1986, tendia a favorecer a formação de uma maioria conservadora por várias razões. Em primeiro lugar, porque a simultaneidade reduzia o espaço do debate propriamente constituinte durante a campanha, que tendia a fazer com que a disputa pelos Executivos estaduais mobilizasse mais as atenções do que as discussões constitucionais. Em segundo lugar, porque os deputados e senadores seriam eleitos segundo as regras eleitorais ainda ditatoriais em grande parte, que cerceavam os debates e apresentavam distorções na proporcionalidade entre número de deputados por estado e as respectivas populações, favorecendo os estados em que o conservadorismo era então mais forte. Em terceiro lugar, porque permitiria a participação dos senadores eleitos em 1982, conservadores na maioria. Tudo isto aconteceu, mas não bastou, pois o processo constituinte acabou por fortalecer o peso da minoria parlamentar progressista e abriu-se para a participação dos movimentos sociais.
IHU On-Line: Que importância esses movimentos sociais tiveram para a elaboração da Constituição?
Adriano Pilatti - Uma grande importância, pois o regimento da Constituinte permitiu não só a participação dos movimentos nos debates formais, através das audiências públicas, mas também a apresentação das emendas populares. Mais de uma centena de emendas populares atingiram o número de assinaturas exigido, 30 mil, e, destas, mais de 80 foram incorporadas ao texto. Além do mais, permitiu-se que os representantes dos signatários as defendessem na tribuna da constituinte. Tudo isto permitiu que se quebrasse o monopólio parlamentar na proposição e na discussão das matérias.
Além disso, a pressão direta, pela presença nas galerias e nas visitas aos gabinetes para abordagem dos parlamentares, teve um peso ponderável nas votações, que eram abertas. Em um tempo em que ainda não havia internet, a CUT, por exemplo, passou a divulgar, através de outdoors nas praças e ruas das capitais e principais cidades de cada estado, os votos dos parlamentares nas questões sociais. Outros movimentos também ajudaram a dar publicidade aos votos dos parlamentares por diversos meios e, como haveria eleições em 1988 e nenhum parlamentar é “suicida”, eleitoralmente falando, tudo isto ajudou a balança a pender para as posições mais progressistas.
IHU On-Line - Como foi enfrentado o desafio de ouvir e garantir a participação efetiva dos 559 constituintes no processo decisório?
Adriano Pilatti - Através das regras do Regimento Interno, aprovado pelo Plenário que os reunia. A tônica da discussão do Regimento, que tomou mais de dois meses, foi justamente a garantia dessa participação. O modo encontrado foi o sistema de 24 subcomissões temáticas, agrupadas três a três em oito comissões temáticas, cujos anteprojetos seriam unificados pela Comissão de Sistematização no Projeto de Constituição a ser votado por todo o Plenário. Com isto, cada parlamentar teve participação efetiva como titular em uma subcomissão e na respectiva comissão. Tal solução favoreceu, de saída, a agenda progressista, pois predefiniu os conteúdos que deveriam necessariamente constar do novo texto — reforma agrária, terras indígenas, comunicação social, etc. —, beneficiando a concepção progressista de uma constituição “analítica” ou “dirigente”, ao contrário do que desejavam os conservadores na defesa de uma constituição “sintética”, que não tratasse de temas sociais, minorias, etc.
Tensões
Por outro lado, a excessiva duração dos trabalhos da Comissão de Sistematização, que reunia menos de um sexto dos constituintes, despertou a insatisfação do chamado “baixo clero”, insatisfação esta que acabou manipulada pelos líderes conservadores na criação do chamado “Centrão”, que alterou o Regimento para permitir que o Plenário apreciasse outro projeto que não o nascido dos trabalhos das subcomissões e comissões temáticas, consolidados pela Comissão de Sistematização num texto mais progressista do que conservador.
Com isto os conservadores pretendiam anular a vantagem progressista que nasceu da pressão popular, mas também de uma circunstância inesperada: o partido majoritário, PMDB, era então uma ampla frente, cuja bancada elegeu o progressista Mario Covas como líder. E Covas, em um acordo de lideranças, conseguiu indicar relatores progressistas para as subcomissões e comissões. Estes relatores propuseram anteprojetos progressistas e participaram da Comissão de Sistematização, reduzindo o peso decisório da maioria conservadora. Mesmo com a alteração do Regimento, porém, o Centrão não conseguiu impor totalmente suas ideias, não teve votos suficientes para isso, embora fosse maioria. O resultado foi um amplo processo de negociação durante as votações pelo Plenário, que permitiu preservar grande parte dos conteúdos progressistas ao novo texto.
IHU On-Line - Durante o Processo Constituinte o senhor foi assessor parlamentar. Tendo em vista esta experiência, quais foram as principais tensões vividas no trabalho de elaboração da Carta Magna e que grupos estavam na disputa do poder?
Adriano Pilatti - Do ponto de vista pessoal, o ritmo frenético de trabalho e os prazos estreitos para exame dos anteprojetos e elaboração das emendas. Politicamente, o confronto entre progressistas e conservadores, a que se sobrepôs o conflito entre governistas e oposicionistas. Sedento por um mandato de cinco anos, o presidente Sarney acabou por fazer “dobradinha” com o conservadorismo, o que não lhe foi difícil, pois era um de seus representantes. Além disso, naquele momento de transição, havia a pretensão tutelar dos ministros militares: naquela época não havia um Ministério da Defesa, cada força armada tinha o seu ministro, além dos ministros-chefes do Estado Maior das Forças Armadas, do Gabinete Militar e do famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI), ainda existente. Na chamada “sociedade civil” havia também polarizações fortíssimas, a mais forte delas entre trabalhadores e patronato rural em torno da Reforma Agrária. Houve também lobbies lamentavelmente muito influentes, como o dos policiais militares, o dos magistrados superiores, o chamado “lobby da toga”, que impediram maiores avanços democráticos nas respectivas matérias.
IHU On-Line - Considerando a época em que a Constituição foi concebida, o texto aprovado se apresentou como conservador ou progressista? Por quê?
Adriano Pilatti - Se considerarmos progressista a orientação em prol do alargamento dos direitos coletivos e sociais e da adoção de políticas públicas reformistas e conservadora a orientação oposta, o texto resultou mais progressista do que a maioria conservadora inicialmente pretendia e mais conservador do que os progressistas desejavam. Comparativamente falando, é a Constituição mais progressista que já tivemos, certamente.
IHU On-Line - Que aspectos da conjuntura permitiram um ambiente favorável à realização da constituinte e de que maneira as Constituições predecessoras acabaram impactando o novo texto?
Adriano Pilatti - O processo de lutas pela democratização do Estado autoritário e pela redução das desigualdades que ele ajudou a elevar durante a ditadura militar-empresarial chegara ao seu ápice justamente no processo constituinte, por isso a orientação pelas mudanças era muito forte, como tantas vezes sublinhou o presidente Ulysses. Isto favoreceu os avanços democratizantes e igualitários, o sentido progressista do novo texto. As constituições democráticas anteriores forneceram o repertório temático e a inspiração liberadora e progressista, as cartas autoritárias serviram como signos daquilo que devia ser evitado.
IHU On-Line - Que tensões surgem entre o que está expresso na Constituição e as interpretações do Supremo Tribunal Federal? As práticas da Corte têm ajudado ou prejudicado a democracia? Por quê?
Adriano Pilatti - Nos últimos 25 anos, o STF tem adotado decisões para todos os gostos, mais conservadoras nos primeiros anos, quando ainda era composto por ministros indicados pelos generais-presidentes ou pelos seus sucedâneos, genéricos e similares civis, Sarney e Collor. Depois começou a se “arejar”, por assim dizer, aproximando-se de uma posição mais afeiçoada aos novos tempos. Mas tem cultivado uma pretensão tutelar sobre a vida política e as decisões legislativas que, no meu entender, não serve bem à vida democrática. Isto, porém, não nos impede de reconhecer que a Corte tomou belas decisões em favor dos direitos, como nos casos já citados das cotas, das uniões homoafetivas e também no da anencefalia. Penso que uma das grandes derrotas progressistas da Constituinte foi não ter criado uma corte constitucional com membros eleitos para mandato de duração prefixada, uma pena.
IHU On-Line - A Constituição de 1988 inaugurou o período mais longo de democracia representativa no país, o que vivemos atualmente. Entretanto, os protestos ocorridos em junho revelaram certa crise de representação, e a hipótese de uma nova constituinte foi aventada pela presidente Dilma. É possível pensar em uma democracia direta incluindo a participação de movimentos sociais, por exemplo, nas eleições?
Adriano Pilatti - Com todo o respeito à presidente, em quem votei e em quem pretendo votar novamente, se ela permitir, a ideia de uma nova constituinte foi uma bobagem, inspirada talvez pelo pânico, que é sempre um péssimo conselheiro. Por isto mesmo, foi rapidamente abandonada assim que se recobrou o fôlego. A representação está em crise em todo o mundo democrático porque o modelo burguês de representação foi concebido contra a democracia — basta ler Sieyès para confirmar — e só aos poucos se democratizou com o voto secreto, o sufrágio universal e o sistema proporcional. Mas conserva o seu vício de origem, o mandato livre de longa duração, que é sempre uma promessa de traição do eleitor pelo eleito.
Onde quer que alguém exerça poder em nosso nome, o princípio da corrupção está instalado. É preciso democratizar ainda mais a representação, começando pela redução da duração dos mandatos legislativos, e ampliar a decisão popular direta por plebiscitos, referendos e facilitação quantitativa da iniciativa popular legislativa. Nós, o povo, pudemos apresentar emendas populares ao Projeto de Constituição com 30 mil assinaturas, mas o Centrão reacionário nos obrigou a reunir quase um milhão e meio de assinaturas para propor um mero projeto de lei.
Mandatos
Quanto à duração dos mandatos e à decisão direta, encanta-me o modelo norte-americano. Lá os deputados têm mandatos de dois anos, e os senadores, de seis. Isto aumenta mais a possibilidade de controle dos eleitos pelos eleitores. Em cada eleição, os eleitores dos Estados Unidos, além de escolher seus representantes, decidem diretamente dezenas de questões relativas à adoção de políticas públicas, à realização de obras públicas, à descriminalização de condutas. É isto que deve nos inspirar, e não ilusões perigosas, como o recall e o chamado “voto distrital”. Quanto mais decisão direta, melhor, quanto mais participação direta, menos corrupção.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Adriano Pilatti - A Constituição de 1988 ainda não esgotou seu potencial de liberação da vida e de promoção da igualdade. É mais favorável do que contrária às lutas pelos direitos, mas o fundamental é que essas lutas prossigam. Só a cidadania poderá alargar suas liberdades e reduzir as desigualdades sociais que, mesmo com os avanços recentes, ainda estão num patamar pornográfico em nosso país. Ampliar a ação direta dos trabalhadores, dos pobres e dos setores marginalizados, descriminalizar os movimentos sociais e suas lutas, esta é a prioridade de um constitucionalismo verdadeiramente democrático.
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"A Constituição de 1988 ainda não esgotou seu potencial de liberação da vida e de promoção da igualdade". Entrevista especial com Adriano Pilatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU