D. Luciano Mendes de Almeida “não falava só na dignidade com um discurso pró-forma, não só uma dignidade defendida, pura e simplesmente. Mas em uma dignidade pensada em toda a sua amplitude”, rememora o teólogo
“D. Luciano, para a nossa arquidiocese e para aqueles que o conheceram, deixou dois legados maravilhosos: enquanto religioso, ser um pastor; e como cidadão, foi alguém que sempre lutou pelos direitos da pessoa e da sociedade”, diz Lúcio Álvaro Marques, em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone, ao lembrar os sete anos de falecimento do arcebispo de Mariana, MG. Segundo Marques, “ele estava preocupado em ajudar as pessoas a se reinventarem no mundo, preocupado em dar a elas as oportunidades para que vivessem dignamente”.
D. Luciano Mendes de Almeida morreu no dia 27 de agosto de 2006.
Lúcio Álvaro Marques, juntamente com José Carlos dos Santos, é organizador do livro Dizer o testemunho. V. I. Dom Luciano Mendes de Almeida (Paulinas, 2013), no qual reúne artigos escritos por D. Luciano Mendes de Almeida entre 1984 e 2006, no jornal Folha de S. Paulo. De acordo com ele, os textos demonstram que “D. Luciano nunca abriu mão da compreensão e do diálogo, seja na política, no encontro com as pessoas, e em todos os aspectos fundamentais. Nunca optava por uma definição prévia e categórica; preferia ouvir primeiro o outro, para só então tomar uma decisão”.
Lúcio Álvaro Marques é presbítero da Arquidiocese de Mariana, mestre em Teologia Patrística pela FAJE, e doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.
A entrevista foi publicada, originalmente, pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 27-08-2013.
IHU On-Line - Em que consiste o projeto de pesquisa "Dizer o testemunho” desenvolvido na Faculdade de Mariana, que deu origem ao livro com mesmo título, sobre D. Luciano Mendes de Almeida?
Lúcio Álvaro Marques – O projeto teve início quando celebramos os cinco anos da ressureição de D. Luciano. A ideia inicial era fazer uma leitura de alguns dos artigos publicados por ele, porque julgávamos que o número fosse pequeno. Quando fomos consultar os arquivos, descobrimos que o número era muito maior: 1129 artigos, e resolvemos dividi-los em períodos para iniciar a leitura. Os textos suscitaram tanta discussão, que resolvemos lê-los em forma sistemática. Isso consistia em ler, discutir, e selecionar alguns que caracterizassem a trajetória de D. Luciano.
IHU On-Line - O senhor divide os artigos em três grupos. O que cada período representa sobre a vida de D. Luciano?
Lúcio Álvaro Marques – A divisão desses artigos em três grandes temas surgiu a partir de uma homilia de D. Luciano, em 1999, quando ele disse que a vida religiosa se estruturava em três eixos: fé, amizade, e estudo, que nos abria a inteligência.
Os textos dele refletem o final da ditadura e o início de uma abertura tanto de consciência política, social, assim como eclesial. Em termos de Igreja, já havia uma atuação da CNBB, que chamava atenção para uma situação social nas Campanhas da Fraternidade. Por outro lado, D. Luciano demonstra uma atenção especial para com o nascimento da Pastoral da Criança. A criança e a juventude se tornam um eixo da sua reflexão.
Na dimensão política, em 1986 ele fez uma reflexão sobre a tragédia de Chernobyl, apontando três grandes direções: falou da situação da agricultura e da habitação no entorno da região onde aconteceu o acidente; apontou para a necessidade de um desenvolvimento que fosse congruente com a vida humana; e mencionou a falência da compreensão científica, que consegue pensar, mas não consegue equacionar os riscos que o desenvolvimento ocasiona.
Ele também tinha uma grande preocupação com a situação do Líbano, onde esteve.
IHU On-Line - Que análise política do Brasil é possível perceber através dos artigos de D. Luciano?
Lúcio Álvaro Marques – Esse talvez seja um dos aspectos mais bonitos da reflexão de D. Luciano, porque ele demonstra todo o otimismo com o renascimento e com a postura democrática. Abertamente, pontua toda a esperança que se tem com a democracia no país, mas, por outro lado, há uma série de denúncias de alguns aspectos que estão presentes na democracia brasileira, como mencionado no artigo intitulado “A bandeira é o povo”, quando acontece a primeira eleição democrática, e ele diz: “E agora todas essas pessoas estão representadas. Como elas serão ouvidas para que seus direitos sejam respeitados?”
D. Luciano não era ingênuo na leitura política. Em um artigo intitulado “Direito à verdade”, critica o Serviço de Segurança do governo militar, que fizera um relatório crítico à postura de um grupo de bispos denominados 'progressistas'. D. Luciano aponta os erros da análise e a denuncia como uma campanha de desmoralização da ação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.
IHU On-Line - D. Luciano trabalhou com as populações mais pobres na periferia de São Paulo e, posteriormente, com os ambientes rurais pobres de Mariana. Pode nos relatar esse trabalho?
Lúcio Álvaro Marques – A primeira mudança diz respeito ao modelo paroquial, o qual passou a ser olhado muito mais como modelo comunitário de trabalho. A partir daí, três grandes frentes foram desenvolvidas. A primeira junto aos excluídos, moradores de rua, os encarcerados e as crianças de rua. D. Luciano fazia sempre a opção pelo pobre em primeiro lugar; via Jesus Cristo em cada pessoa. A segunda frente de atuação foi com as escolas de família agrícola, que tinham a intenção prioritária de favorecer a permanência do jovem no campo, evitar a permanência do êxodo rural que é tão marcante em nosso país. Ou seja, garantir condições dignas para as famílias se desenvolverem no meio rural. Ele tinha uma preocupação com o desenvolvimento sustentável, procurava pensar em opções e alternativas para que o jovem crescesse no meio rural. A terceira marca do trabalho de Dom Luciano, e uma das mais profundas, foi a relação com as pequenas comunidades. A presença junto às pequenas comunidades, a organização da arquidiocese em cinco grandes regiões pastorais. Dom Luciano, sempre que solicitado, ia a cada uma dessas paróquias e às pequenas comunidades. Esse é um dos maiores gestos de resgate, da dignidade e da vida das pessoas que estão no interior.
IHU On-Line - Quais são as principais características da trajetória filosófico-teológica de D. Luciano?
Lúcio Álvaro Marques – Em primeiro lugar, a compreensão da dignidade da pessoa humana. Ele sempre fala sobre isso, mas sem apelar para o aspecto religioso. Não é só para o crente que D. Luciano falava. Um exemplo disso está presente quando ele abordava o tema do aborto. Ele dizia que depois da união do óvulo e do espermatozoide, não tem uma célula vivente, mas se iniciou um processo que só pode ser interrompido pela morte natural. Dizia também que não adianta apenas deixar o feto nascer, era necessário oferecer condições para que ele pudesse viver dignamente. Ele não falava só na dignidade com um discurso pró-forma, não só uma dignidade defendida, pura e simplesmente. Mas em uma dignidade pensada em toda a sua amplitude.
O segundo aspecto da vida na reflexão de D. Luciano, que nós muitas vezes não vemos de imediato, é que a onda da dignidade tinha algo que acompanhava toda sua crença, toda a crença na pessoa humana: a crença na capacidade de a pessoa se reinventar, mudar de vida. Lembro de uma cena quando um jovem foi surpreendido pela polícia depois de cometer um pequeno furto em uma loja de Mariana. D. Luciano chegou logo após dele ter sido baleado, pegou nos braços do rapaz e perguntou: “O que você fez meu filho?” Ele era alguém que acredita na dignidade da pessoa, mas que não tinha um olhar ingênuo. Olhava para aquele que sofria, que precisava de socorro. D. Luciano nunca abriu mão da compreensão e do diálogo, seja na política, no encontro com as pessoas, e em todos os aspectos fundamentais. Nunca optava por uma definição prévia e categórica; preferia ouvir primeiro o outro, para só então tomar uma decisão. São essas as marcas do pensamento dele, que não era só teológico, mas claramente filosófico.
IHU On-Line - Qual é o legado de D. Luciano para a Igreja?
Lúcio Álvaro Marques – D. Luciano, para a nossa arquidiocese e para aqueles que o conheceram, deixou dois legados maravilhosos. Enquanto religioso, ser um pastor. Enquanto cristão, ele foi sempre um pastor. Esse é o aspecto fundamental para o legado eclesial de D. Luciano. E como cidadão, foi alguém que sempre lutou pelos direitos da pessoa e da sociedade. Ele não estava preocupado ingenuamente em defender uma pessoa. Ele estava preocupado em ajudar essa pessoa a se reinventar no mundo, preocupado em dar a ela as oportunidades para que vivesse dignamente.
Então, seu legado tem um duplo aspecto: ser pastor e pensador. Um pensador do modo que nós víamos há cinco séculos, com José de Anchieta e com Antônio Vieira, sem deixar nada a desejar. Não teve uma obra sistemática, porque não se reduziu à vida acadêmica.