15 Mai 2010
O sociólogo Gedeon Freire de Aguiar reconhece as contribuições do pentecostalismo para a sociedade brasileira, principalmente em relação ao aumento do número de alfabetizados e à diminuição da violência doméstica. No entanto, ele faz críticas ao pentecostalismo quando afirma que o mesmo “reproduz as opressões sociais, e elas ficam pioradas porque, neste caso, têm uma ‘marca espiritual’”. E aqui ele cita “o machismo, a discriminação de gêneros e sexos, apatia nas lutas sociais, um processo de acomodação de status e uma ênfase exagerada na solução dos problemas pessoais em detrimento da comunidade”. Quando questionado sobre o diálogo inter-religioso, Gedeon argumenta que “todas as religiões têm dificuldade de relacionamento, pois estabelecer uma relação é identificar no outro algum valor o suficiente para ele/a ser visto e ouvido. O ecumenismo é bonito na teoria, mas é piada utópica”. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o presbítero da Assembleia de Deus Betesda, de São Paulo, defende que “teologia da prosperidade e neoliberalismo é, como diz o provérbio popular, a casa e o botão. São irmãos siameses. Um não existiria sem o outro”. Para ele, ter mais público quantitativamente é o grande critério de validação das igrejas pentecostais. “Daí quem é o elemento fundante e final da coisa: o consumo”
Sociólogo, presbítero da Assembleia de Deus Betesda, em São Paulo, Gedeon Freire de Alencar é diretor pedagógico do Instituto de Estudos Contemporâneos (ICEC). É mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista, com a tese Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo, e todo louvor a Deus. Assembleia de Deus: origem, implantação e militância (1911-1946). Também é membro da Associação Brasileira de História da Religião e da Rede de Teólogos e Cientistas Sociais do Pentecostalismo na América Latina e Caribe. É autor do livro Protestantismo Tupiniquim: Hipóteses Sobre a (não) Contribuição Evangélica à Cultura Brasileira (São Paulo: Arte Editorial, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor descreve a relação entre as religiões pentecostais e a sociedade brasileira?
Gedeon Freire de Alencar - Os pentecostalismos (no plural), como qualquer outra expressão religiosa, têm acertos e erros na sua relação com a cultura. Como nos lembra Weber, em seu clássico texto Rejeições religiosas do mundo e suas direções, ou teoria dos conflitos, as religiões de salvação têm uma relação de tensão e concessão com o mundo. Portanto, com os pentecostalismos não poderia ser diferente. Sem julgamento de valores, vejamos, por exemplo, a relação entre alfabetização e pentecostalismo. Nas regiões mais pobres da sociedade aonde o pentecostalismo chegou, houve uma melhora na questão da alfabetização, ou, de outra forma, se não fosse o pentecostalismo, nosso índice seria pior. Na questão da violência doméstica, idem. Mas também tem outra contribuição em termos culturais, pois, originalmente, negava e até satanizava todas as expressões de danças, comidas, músicas e instrumentos. Portanto, é uma relação ambígua.
IHU On-Line - Quais as principais críticas que o senhor faz ao pentecostalismo hoje?
Gedeon Freire de Alencar - Reproduz as opressões sociais e elas ficam pioradas porque, neste caso, têm uma “marca espiritual”. E aqui cito o machismo, a discriminação de gêneros e sexos, apatia nas lutas sociais, um processo de acomodação de status e uma ênfase exagerada na solução dos problemas pessoais em detrimento da comunidade.
IHU On-Line - Como se dá a relação entre o pentecostalismo e as religiões afro?
Gedeon Freire de Alencar - Péssima – por culpa de ambas. Sei que corro o risco de desagradar a todos, mas não vou fugir da questão. Primeiro, todas as religiões têm dificuldade de relacionamento, pois estabelecer uma relação é identificar no outro algum valor o suficiente para ele/a ser visto e ouvido. O ecumenismo é bonito na teoria, mas é piada utópica. Segundo, teologicamente, ou sendo mais simplista, fenomenologicamente apenas, é impossível uma relação entre as duas. Nenhuma reconhece a outra, mesmo como mero fenômeno social. Terceiro, ambas são concorrentes, pois suas membresias estão na mesma camada social. Quarto, a criminalização da questão superou os limites da civilidade. Ambas são majoritariamente religiões de pobres e, esta, dentre outras, foi a razão da perseguição externa. O pentecostalismo foi absurdamente perseguido em seus primeiros anos, nos EUA e também no Brasil, pelas igrejas tradicionais, ditas cristãs, muito mais por racismo e sexismo. Uma perseguição imoral, anticristã, vergonhosa. Mas este mesmo pentecostalismo (no caso o neopentecostal), agora hegemônico e poderoso, repete de forma vergonhosa a mesma perseguição. Uma coisa é querer se diferenciar religiosamente, “se vender” como a religião melhor, mais correta etc. Outra coisa é criminalizar o outro; perseguir mesmo. Por outro lado, os cultos afros são muito competentes em termos estéticos e culturais, mas absurdamente incompetentes em racionalidade econômica. Para completar, são estupidamente divididos e inimigos entre si. Alguns optaram por um demagógico discurso vitimista e só conseguem se manter porque vivem ancorados nas sinecuras estatais. Com a desculpa (ou a culpa mesmo) de que é “cultura” e não religião, deram um tiro no pé: virou cultura alegre, vistosa, interessante para turista, mas se folclorizou. Enfeite de solenidade, alegoria de carnaval, não conseguiu articular militância e fidelização de seus membros. É dizimado mais por seus próprios erros internos que externos. Pelo andar da carruagem só vai sobrar em museu.
IHU On-Line - Que relação podemos estabelecer entre a teologia da prosperidade e o neoliberalismo econômico?
Gedeon Freire de Alencar - Toda teologia tem a cara de seu tempo – mesmo que teólogos se digam inspirados (apenas) por Deus. O teólogo é um leitor de seu tempo. Alguns são bons leitores, outros péssimos. Então, teologia da prosperidade e neoliberalismo é, como diz o provérbio popular, a casa e o botão. São irmãos siameses. Um não existiria sem o outro. Não vou me atrever a avaliar a teologia ou a economia, pois entendo pouco dos dois, mas diria apenas mais uma coisa: por que o neoliberalismo não nasceu, por exemplo, no final da década de 20? Não existia, absolutamente, ambiente para isso. Da mesma forma como a teologia da prosperidade jamais teria surgido, no Brasil, na década de 70. Não havia condições econômicas e sociais propícias. Isso poderia ser dito de outras teologias e de outras épocas similares.
IHU On-Line - Em que sentido podemos perceber nas religiões neopentecostais uma ética relativista e uma estética consumista, como o senhor apontou em uma entrevista já em 2006?
Gedeon Freire de Alencar - Um dos critérios – quase único – de nosso tempo é o quantitativo. “O fetiche de quantidade”, como disse Renato Mezan, no caderno Mais, Folha de S. Paulo, semana passada. Tudo é medido em números, e estes funcionam como oráculo divino. Por que este livro é bom? Porque vendeu muito. E este é melhor que outro porque vendeu mais ainda. Então, por que este louvor, música, pregação e igreja são melhores e estão certos, mais que outra(s)? Porque vendeu mais. Têm mais gente. Ter mais público quantitativamente é o grande critério de validação. Daí quem é o elemento fundante e final da coisa: o consumo. Por isso, benções são consumidas, louvores vendidos, pregações compradas. Igrejas são da moda – e o céu (ou o inferno para quem acredita...) é o limite. Conclusão - perdão pelo lugar comum - tudo é relativo. A ética é então muito mais conveniência que convicção; muito mais funcionalidade que fundamento. Qual a ética que rege este modelo? A do possível, dos fins justificando os meios. Não se tem mais a priori um bem maior definido e fundante, mas uma relatividade funcional de que, dependendo da “necessidade”, vale qualquer coisa. Se posso pagar a benção, comprar o louvor, transformar em moda a adoração, toda embalada para consumo de indivíduos, quem é que pode, em última instância, definir o objetivo? E Deus – seja lá ele quem for – não se meta a querer mudar o projeto.
IHU On-Line - Como entender a ênfase escatológica pregada pelas religiões pentecostais?
Gedeon Freire de Alencar - Nas igrejas pentecostais mais periféricas (domingo passado, vi isso pessoalmente) a mensagem escatológica ainda é forte, já nas igrejas de classe média e, principalmente, nas neopentecostais, o discurso escatológico está fora de moda. Simples, se Jesus voltar agora vai estragar a festa! O pentecostalismo, fenômeno típico da passagem do século XIX para o XX é absolutamente escatológico. Nasce no período das grandes guerras. Ademais, como religião de pobres, o sonho é escapar da miséria. É fácil para um intelectual de esquerda ridicularizar isso como alienação, mas, fazendo algum esforço para compreender “de dentro”, a doutrina escatológica também pode ser uma esperança. O céu é um projeto de justiça e paz.
IHU On-Line - Como a Assembleia de Deus se posiciona em relação ao pentecostalismo?
Gedeon Freire de Alencar - A Assembleia de Deus é uma igreja pentecostal. Aliás, não existe a Assembleia de Deus no singular, mas Assembleias. São muitas, variadas, autônomas, e, às vezes, inimigas entre si. Mas, majoritariamente são pentecostais, e como o universo assembleiano é vasto, há desde assembleias clássicas e tradicionais às mais neopentecostais e folclóricas possíveis. Teoricamente, pentecostal é quem aceita a contemporaneidade da doutrina do Espírito Santo. Mas a complicação é imediata: qual doutrina? Por exemplo, o falar em línguas e o exorcismo. Muitas igrejas hoje não têm mais estas marcas, ou só tem uma, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que só dá ênfase ao exorcismo. Enfim, há muito que pentecostalismo não é mais apenas uma designação doutrinária, mas uma definição sociológica, e mesmo esta, atualmente, não é consenso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"A Teologia da Prosperidade e o neoliberalismo são irmãos siameses". Entrevista especial com Gedeon Freire de Alencar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU