06 Setembro 2008
Sexualidade e a religiosidade. Estes dois temas serviram de base para André Musskopf fundamentar a sua tese de doutorado. O resultado foi um assunto instigante: Via (da) gens teológicas. Itinerários de uma teologia queer no Brasil. Para discorrer sobre a pesquisa, Musskopf estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 11 de setembro, durante o evento IHU Idéias. Em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line, ele acredita que a teologia precisa andar por lugares mais ‘frescos’. “E, com isso, me refiro justamente ao sentido que a palavra ‘fresco’ tem no Brasil, na sua associação com a homossexualidade”. Musskopf pretende revelar de que forma o heterocentrismo (um sistema que impõe compulsoriamente um determinado padrão de relacionamento heterossexual) sustenta sistemas políticos, econômicos, culturais e religiosos que hierarquizam as relações em benefício de determinados grupos sociais.
Musskopf é pesquisador na área de Teologias GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), teoria queer e estudos de gênero e masculinidade. Graduado em Teologia, pela EST, é mestre em Teologia, também pela EST, com dissertação intitulada Ministérios Ordenados e Teologia Gay - Retrospectiva e prospectiva, sobre a ordenação de pessoas homossexuais, e doutor em Teologia no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação das Faculdades EST. É autor de Uma brecha no armário - Propostas para uma teologia gay (São Leopoldo: Sinodal, 2002) e organizador, juntamente com Marga J. Ströher e Wanda Deifelt, do livro À flor da pele - Ensaios sobre gênero e corporeidade (São Leopoldo: Sinodal, EST, CEBI, 2004).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais seriam estes outros lugares pelos quais a Teologia deveria andar, conforme você aponta em sua tese? Como você avalia este percurso?
André Musskopf - Acredito que a teologia precisa andar por lugares mais “frescos”. E com isso me refiro justamente ao sentido que a palavra “fresco” tem no Brasil, na sua associação com a homossexualidade. Neste sentido, os “lugares” a que me refiro são as experiências e aquilo que se convencionou chamar de “subcultura” LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros). Afinal, mesmo a Teologia da Libertação, na sua versão clássica e mesmo entre a maioria de seus representantes atuais, não considerou estes “lugares” no seu fazer teológico e no questionamento das estruturas que subjugam e oprimem as pessoas. Ao deslocar a reflexão teológica para lá, em diálogo com as reflexões da teoria queer, pretendo revelar de que forma o heterocentrismo (um sistema que impõe compulsoriamente um determinado padrão de relacionamento heterossexual) sustenta sistemas políticos, econômicos, culturais e religiosos que hierarquizam as relações em benefício de determinados grupos sociais.
Com o intuito de oferecer “itinerários para uma teologia queer no Brasil”, tendo em vista os itinerários que eu mesmo percorri enquanto pesquisador e militante nos últimos treze anos, sugiro três “lugares” a serem visitados.
Em primeiro lugar, proponho uma releitura das práticas e discursos sobre religiosidade e sexualidade no Brasil a partir da idéia de ambigüidade, como forma de evidenciar que quando se leva a sério a forma como as pessoas organizam concretamente as suas vivências nestas áreas, consideradas como fundamentais na experiência humana, é necessário articular um discurso e uma prática teológica que vá além de fixar dogmas e impor ortodoxias e considerar a própria maneira ambígua de Deus se revelar, especialmente entre aquelas pessoas mais empobrecidas e que se encontram à margem dos sistemas sociais.
Em segundo lugar, apresento as reflexões produzidas no âmbito do que denomino teologias homossexual-gay-queer há pelo menos quatro décadas de maneira mais sistematizada. Nesta busca, enfatizo o contexto norte-americano, onde há uma produção consideravelmente vasta, mas também procuro reconhecer formas destes discursos e práticas na América Latina, especialmente a partir da atuação de grupos e igrejas cristãs LGBT, mas também de alguns teólogos que têm aberto algumas brechas nos armários da teologia latino-americana e, de maneira mais contundente, do trabalho de Marcella Althaus-Reid e sua proposta de uma “teologia indecente”.
Por último, a partir de uma discussão mais conceitual sobre a idéia de “ambigüidade” e sua aplicabilidade na teologia, construo uma proposta epistemológica estruturada em três momentos: “ocupar, resistir, produzir”, emprestando o lema do Movimento de Trabalhadores/as Rurais Sem Terra e, ao mesmo tempo, apontando para a relação que existe entre a luta pela terra e contra o sistema econômico fundado no capital e na propriedade privada e a luta pelo direito ao próprio corpo travada pelos movimentos feminista e LGBT. Neste último lugar visitado nestes itinerários, apresento também as histórias de vida (“histórias sexuais”) de três “desviantes sexuais”, colocando-as em diálogo com autoras feministas, afro-americanos, e com Frida Kahlo , através do seu quadro “La venadita”. São lugares, sem dúvida, estranhos (queer) para a teologia.
IHU On-Line - Em que sentido a Teologia da Libertação Latino-Americana é mais rica para inspirar estudos como o seu?
André Musskopf - Embora a Teologia da Libertação Latino-Americana não tenha ousado ir ou perceber estes lugares, ela, sem dúvida, estabeleceu princípios teóricos e epistemológicos a partir dos quais a reflexão teológica homossexual-gay-queer e aquela que eu mesmo procuro articular é profunda devedora. Costumo dizer que foi com os teólogos da libertação que aprendi a fazer teologia desta forma, mesmo contra a vontade deles ou para seu desespero. Uma das comprovações disto é o fato de a teologia gay produzida já na década de 1980 nos Estados Unidos estar estreitamente vinculada a esta corrente teológica. Isto se evidencia tanto nas temáticas abordadas (por exemplo, na releitura de determinados textos bíblicos ou mesmo de tradições da Igreja) quanto no método empregado para a construção desta teologia (por exemplo, na valorização da experiência – individual e coletiva – de opressão, na retomada da voz por aqueles e aquelas que foram silenciados).
É certo que também a teologia feminista, ao questionar os padrões patriarcais de organização das igrejas e das religiões e das formas de produção do conhecimento teológico, influenciou profundamente as teologias homossexual-gay-queer. E o mesmo também se poderia dizer das teologias negra, indígena, mujerista e womanista que, vistas em conjunto, compõem o que hoje se chamam de “teologias da libertação”. O que todas elas têm em comum é a busca e o empenho na construção de relações sociais justas a partir da fé que funda cada uma delas através do questionamento de sistemas opressores e marginalizadores.
Neste sentido, ao apontar para a necessidade de considerar a realidade latino-americana, especialmente para a exclusão econômica de grande parte população do continente e sua subserviência a regimes políticos e econômicos externos, a Teologia da Libertação colocou as bases para muitas destas outras correntes teológicas que, cada uma a seu modo, revela a complexidade dos sistemas que desumanizam as pessoas exigindo novas reflexões e estratégias de ação.
IHU On-Line - No que consiste uma teologia queer e como está a consolidação deste novo modelo no Brasil? Existe algum diferencial, em relação a outros países? Quais os principais avanços?
André Musskopf - De maneira simplificada, poder-se-ia dizer que a “teologia queer” é um desdobramento das teologias gay e lésbica, tendo em vista as discussões acerca de identidade e subjetividade desenvolvidas em vários campos do saber desde a década de 1980, especialmente no âmbito das correntes pós-estruturalistas e pós-modernas. Mas, até mesmo pelos preconceitos estabelecidos com relação a estas correntes de pensamento, é preciso relacionar estas discussões também com as questões surgidas no âmbito dos movimentos sociais organizados a partir de questões de identidade (feminista, negro, homossexual). Afinal, foi no âmbito destes movimentos que a estabilidade das categorias identitárias foi posta em xeque, uma vez que a pluralidade dos sujeitos envolvidos em cada um deles não permitia definições simplistas, desconsiderando os múltiplos referenciais que participam da constituição da identidade de cada indivíduo particular. Desta forma, assim como no âmbito do movimento gay/lésbico, dos estudos gays e lésbicos, também na reflexão teológica foi necessário rever um discurso liberacionista que se fundava numa “experiência essencial” do que significa ser homossexual, desconsiderando que também esta experiência é vivida de uma multiplicidade de formas.
Mais do que isto, era necessário questionar a própria idéia de homossexualidade na medida em que ela é uma categoria construída em oposição à heterossexualidade, mantendo a estrutura dualista/binária (e hierarquizante) que marca profundamente o pensamento ocidental. Neste sentido, uma teologia queer se propõe a examinar e expor os discursos e práticas religiosas usando como lente a sexualidade na sua inter-relação com questões de classe, gênero, raça/etnia. Em seu momento desconstrutivo, portanto, revela de que forma a heteronormatividade compulsória se manifesta nos discursos e práticas teológicas como princípio estruturador. Construtivamente, procura articular discursos e práticas religiosas que reflitam experiências fora deste padrão normativo, apontando para a libertação da própria teologia e suas formas tradicionais de produção do conhecimento. Neste ponto reside o seu maior desafio. Pois a grande pergunta que se faz ainda é se é, de fato, possível a articulação de uma teologia queer, visto que o próprio conceito de reflexão teológica está marcado por um determinado padrão de produção do conhecimento que estaria fundado em questões como absoluticidade e ultimacidade.
No Brasil e na América Latina como um todo, este tipo de teologia ainda é profundamente desconhecido. Um dos principais fatores para isto é, seguramente, o fato de que as instituições de ensino teológico continuam sob a tutela das igrejas. Desta forma, mesmo quando existe a possibilidade de desenvolver pesquisas como foi o meu caso, as possibilidades de trabalho após a conclusão são muito restritas, visto que nenhuma delas quer se comprometer com uma produção tão politicamente definida como esta. Por outro lado, é preciso considerar que também da parte das pessoas LGBT há uma grande resistência com relação à qualquer temática vinculada com questões religiosas.
Afinal, o discurso e a prática das instituições religiosas tem sido e continuam sendo a principal responsável pelas formas de violência sofridas por estas pessoas. Neste sentido, parece, ainda, impossível questionar este tipo de discurso e prática e propor uma outra teologia e outra religião, especialmente considerando o universo cristão. No entanto, se pensarmos na teologia queer não apenas como aquela produção que se auto-identifica desta forma, mas que articula a sexualidade como dado fundante da reflexão na sua inter-relação com outras questões como visto acima, seguramente há outras teólogas desenvolvendo projetos interessantes nesta área. E as teólogas feministas, sem dúvida, são as suas principais articuladoras, também no Brasil e na América Latina. Marcella Althaus-Reid, embora trabalhando na Escócia, é um dos exemplos mais representativos e acredito que não seja coincidência que uma teóloga latino-americana, formada na Teologia da Libertação, tenha conquistado tamanha influência no âmbito da teologia queer no mundo inteiro. Pelo contrário, defendo que a experiência latino-americana no campo da religiosidade e da sexualidade é justamente o que permite uma aproximação fecunda entre teologia da libertação e teoria queer.
IHU On-Line - De que maneira a sexualidade e a religiosidade dialogam com a Teologia?
André Musskopf - De maneira geral, pode-se dizer que, especialmente no âmbito do Cristianismo, há uma herança de negação do corpo e da sexualidade (ou pelo menos de determinadas práticas corporais e sexuais) a partir de concepções religiosas articuladas pela Teologia. Também não é novidade que a influência de uma determinada perspectiva filosófica (principalmente do pensamento grego) seja responsável por estas posturas que a teologia historicamente foi assumindo e reafirmando. Na minha tese, procuro refletir sobre como esta relação tem se dado historicamente no contexto brasileiro. Também aqui todo o aparato das instituições religiosas, do qual a teologia é um dos pilares, ao mesmo tempo promovendo e reafirmando as práticas eclesiásticas e dando a elas legitimidade teórica, tem se voltado mais para o cerceamento e para o policiamento das práticas corporais e sexuais no marco da heteronormatividade compulsória. Mas, ao observar o desenvolvimento histórico tanto das práticas religiosas quanto das práticas sexuais, é possível afirmar que ambas são construídas e vividas no Brasil de uma maneira muito mais fluída, para a qual utilizo a idéia de ambigüidade, transgredindo constantemente os cânones estabelecidos em ambas as áreas por um discurso e prática hegemônicos. Esta análise, no entanto, permite concluir que existe uma semelhança na forma como estas duas dimensões fundamentais da vida humana são vividas no Brasil expressa através de conceitos como sincretismo, pluralismo religioso, múltipla pertença religiosa, simultaneidade de piedades (no âmbito da religiosidade) e miscigenação, erotismo, diversidade sexual (no âmbito da sexualidade). É esta realidade que a teologia tem historicamente negado e até combatido e para qual a teologia queer aponta como fundamental na construção de sua reflexão. Pois, segundo esta corrente teológica, toda a teologia é um discurso sexual, ou seja, construída sobre compreensões e a partir de “metáforas sexuais” (Althaus-Reid) que expressam e promovem um determinado tipo de práticas e relações em detrimento de outras. Neste sentido, o diálogo entre sexualidade e religiosidade se mostra como fundamental para a articulação de uma teologia coerente com a experiência das pessoas e libertadora no sentido de superar preconceitos e fobias articuladas como verdades eternas e vontade divina.
IHU On-Line - Qual a relação existente entre a construção de uma teologia queer no Brasil e a obra da pintora mexicana Frida Kahlo?
André Musskopf - Por não trabalhar com cânones fixos ou fechados, a teologia queer pode incorporar em suas construções materiais diversos que auxiliem na reflexão. Neste sentido, expressões da cultura popular, música, histórias de vida e, no caso de Frida Kahlo, pintura podem ser elementos importantes na articulação do discurso e da prática teológica. A relação específica que faço no caso da tese de doutorado é entre uma obra específica da pintora mexicana, “La venadita”, cujo elemento central é o corpo de um veado ao qual está ligada à cabeça que é a representação da própria pintora (conhecida por seus auto-retratos), trespassado por inúmeras flechas que causam sangramentos, dentro de uma paisagem composta por árvores, galhos quebrados, um rio (ou lago) e o céu com raios.
Num primeiro momento, esta identificação vem através da experiência da própria pintora, enquanto transgressora de padrões culturais e políticos de sua época e de seu contexto, tanto através dos seus relacionamentos afetivo-sexuais com homens e mulheres, da forma como ela desconstruiu e reconstruiu padrões de gênero (seja através de vestimentas ou do uso de outros símbolos definidores do gênero e da sexualidade e do seu próprio comportamento e prática social) quanto da forma como ela expressou estas transgressões através de um estilo artístico ao mesmo tempo personalíssimo e aberto o suficiente para permitir uma infinidade de associações. Mas a principal identificação, sem dúvida, é com a figura do “veado”, no Brasil identificado com a homossexualidade masculina e, indiretamente, com todas as formas transgressoras de vivência do gênero e da sexualidade.
Estas identificações iniciais, no entanto, conduzem a uma análise detalhada deste quadro particular e à descoberta de um discurso pictórico que está em linha com aquilo que imagino que possa ser uma teologia queer no Brasil. Então os vários elementos desta pintura, incluindo tradições latino-americanas originárias, do catolicismo popular, de religiões orientais, relacionadas com as referências sexuais ligadas à experiência da própria artista e expressas através da hibridação do corpo masculino do animal com a cabeça feminina da artista, da dor e do sofrimento que está ligado tanto às mazelas físicas quanto às restrições impostas pelos códigos da “decência” em termos de gênero e sexualidade – permitem pensar em termos plásticos a forma de uma teologia queer produzida a partir do contexto brasileiro e, particularmente, da experiência de “desviantes sexuais”.
IHU On-Line - Como você define o conceito de via(da)gens teológicas?
André Musskopf - A idéia de “via (da) gens” brota diretamente da discussão feita ao longo de toda a Tese, em particular na associação com a obra “La Venadita”, de Frida Kahlo, e da discussão realizada a partir desta pintura. Reflete, em si mesma, a noção de ambigüidade ao permitir múltiplas leituras diante da forma como está graficamente construída. Especificamente, apresenta a possibilidade de leitura da construção teológica como uma “viagem” - dentro da compreensão de que a produção do conhecimento teológico (epistemologia) se faz justamente como uma “viagem”, na qual os itinerários são sempre abertos e múltiplos – mas principalmente como uma “viadagem” – no sentido de que esta construção se situa num campo de referência que questiona o sistema que é responsável pela opressão, discriminação e marginalização de toda e qualquer identidade e prática de vida construída fora dos padrões heterocêntricos como compreendido no âmbito da teoria queer.
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Via(da)gens teológicas. Itinerários de uma teologia queer no Brasil. Entrevista especial com André Musskopf - Instituto Humanitas Unisinos - IHU