02 Mai 2008
Atualmente, há dois projetos tramitando no Congresso Nacional que tratam da situação e reconhecimento dos teólogos brasileiros. “Ambos partem de um grande equívoco: confundem o ministro de culto e os pregadores populares, que nos habituamos a ver nas praças das grandes cidades, com teólogos profissionais, que são pessoas formadas em cursos idôneos e habilitadas ao ensino de graduação e pós-graduação em Teologia”, conclui o presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter), Afonso Soares, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Para Afonso, “se um dos dois projetos em trâmite no Congresso Nacional for aprovado, teremos a triste confirmação daquilo que alguns setores do MEC/Capes mais temem: a Teologia será reduzida a um discurso doméstico que só interessa às igrejas”. O teólogo fala também sobre o papel que a Teologia tem hoje e analisa o ensino da teologia no Brasil.
Afonso Maria Ligorio Soares é licenciado em Filosofia, pela PUC-PR, e em Teologia, pelo Instituto Teológico São Paulo. É mestre em Teologia Fundamental, pela Pontifícia Universidade Gregoriana Roma, na Itália, e doutor em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo. Pós-doutor pela PUC-Rio, é, atualmente, professor associado da PUC-SP. É, também, presidente da Soter e autor de Negros, uma história de migrações (São Paulo: Centro de Estudos Migratórios, 1996), Interfaces da revelação; pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso no Brasil (São Paulo: Paulinas, 2003) e O mal: como explicá-lo? (São Paulo: Paulus, 2003).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Para o senhor, qual é o papel da teologia na sociedade contemporânea?
Afonso Soares - A teologia é uma importante instância crítica em qualquer cultura e/ou sociedade. Nenhuma associação humana se faz sem pressupostos, sem mitos fundadores, sem postulados que organizam os valores eleitos pelas pessoas como norteadores fundamentais de conduta. Diferentemente da ciência da religião (que investiga, de forma científica e não confessional as tradições religiosas de uma sociedade), a teologia é uma reflexão crítica a partir da própria tradição que lhe deu origem. Ela examina a coerência interna de uma determinada tradição (no caso, a cristã) e a confronta com outros valores e práticas de dada sociedade.
IHU On-Line - Quais são as principais mudanças propostas pelo MEC e pelo Congresso Nacional em relação aos cursos de teologia?
Afonso Soares - Da parte do MEC não há propriamente (até onde é de meu conhecimento) propostas de mudança, mas sabemos que tem circulado uma forte pressão junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para que se considere como área acadêmica apenas a Filosofia e a Ciência da Religião, relegando a Teologia a discurso doméstico de igrejas. Evidentemente, isso seria um equívoco e uma injustiça muito grande para com um saber milenar que, em termos de apuro especulativo e energia investigativa da realidade, não fica atrás nem da filosofia nem da ciência moderna.
Já no Congresso Nacional, há dois projetos: um apadrinhado pelo Senador Crivella [1] e outro pelo Deputado Galli [2]. Ambos partem de um grande equívoco: confundem o ministro de culto e os pregadores populares, que nos habituamos a ver nas praças das grandes cidades, com teólogos profissionais, que são pessoas formadas em cursos idôneos e habilitadas ao ensino de graduação e pós-graduação em Teologia.
IHU On-Line - Como essas mudanças afetam a teologia praticada e ensinada hoje?
Afonso Soares - Se um dos dois projetos em trâmite no Congresso Nacional for aprovado, teremos a triste confirmação daquilo que alguns setores do MEC/Capes mais temem: a Teologia será reduzida a um discurso doméstico que só interessa às igrejas. E o que é pior: ao equiparar todo pregador popular (bem ou mal-intencionado) com o estudioso de teologia, jogar-se-á no ridículo uma ciência que sustentou o pensamento racional no Ocidente durante séculos e cujo patrimônio não pode ser banalizado.
IHU On-Line - Os proponentes desse projeto que está tramitando no Congresso Nacional têm trajetórias profissionais como pastores de denominações religiosas que historicamente têm visto com suspeita, como ressaltou o professor Ricardo Willy Rieth. Esses proponentes têm ainda rejeitado a formação acadêmica superior em Teologia. Como o senhor analisa esse fato?
Afonso Soares - Evidentemente há interesses conflitantes neste caso. O projeto do Senador Crivella admite a necessidade de formação teológica adequada, mas prevê, a partir de sua aprovação, um prazo retroativo a cinco anos em que qualquer pessoa que provar ter pregado a Bíblia publicamente poderá obter carteira e reconhecimento como teólogo. É provável que tal expediente seja um subterfúgio para resolver problemas trabalhistas e dificuldades internas da Igreja Universal do Reino de Deus (à qual, como sabemos, pertence o citado senador) para obter reconhecimento civil e trabalhista de seus pastores (os quais não costumam ter formação teológica acadêmica). O projeto do Deputado Victorio Galli consegue ser ainda mais obtuso: para ele, não há nenhuma diferença entre pastor, padre, cantor de culto, teólogo ou sacristão. Outro perigo na versão deste deputado é que ela determina que será esse "teólogo" o professor adequado para ministrar a disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas; isso fere diretamente o espírito da lei federal que regula o ensino religioso nas escolas do Brasil.
IHU On-Line - Como o senhor analisa o ensino da Teologia no Brasil, hoje?
Afonso Soares - Não é possível nem prudente uma análise exaustiva neste pequeno espaço. Temos excelentes cursos de Teologia, tanto protestantes como católicos. Mas nem todos os ótimos cursos (sobretudo católicos) se deram conta da importância do credenciamento junto ao MEC. Isso tem criado desequilíbrios importantes na qualidade dos recém-formados, pois muitos cursos aprovados pelo MEC estão muito aquém da qualidade que se esperaria na área de teologia. No entanto, como o MEC não interfere na grade curricular e apenas examina se a estrutura externa do Instituto é condizente, corremos o risco de ver proliferar uma série de propostas autoproclamadas como "teologia", mas que na prática, sabe-se lá o que são.
IHU On-Line - Por que, em sua opinião, demorou tanto tempo para que os cursos de teologia fossem reconhecidos? Há um movimento anti-clerical nas academias que dificultou esse processo?
Afonso Soares - Por incrível que pareça, as dificuldades sempre estiveram mais do lado das Igrejas que da sociedade civil. A secular desconfiança de setores da Igreja Católica para com tudo que venha da sociedade civil é uma das responsáveis por não termos nossos Institutos no protagonismo deste processo de afirmação universitário-acadêmica da Teologia cristã. Se não fosse a obstrução da hierarquia católica, talvez já tivéssemos a aprovação da teologia junto ao MEC desde a década de 1960.
IHU On-Line - A possibilidade de criação de um Conselho Nacional de Teólogos muda, de que forma, a relação entre a Igreja e o Estado?
Afonso Soares - Esse Conselho, caso seja criado, deve ter autonomia perante as Igrejas e perante o Estado. Ele só poderá deliberar sobre a qualidade acadêmica dos cursos e a aptidão científica do profissional teólogo. A Igreja não tem muito a interferir nesse Conselho; mas ela deve ser vigilante para que tal órgão não se torne peça de joguete político desta ou daquela agremiação religiosa.
Notas:
[1] Marcelo Bezerra Crivella é senador do Brasil eleito em 2002 pelo Partido Liberal. Ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Crivella é sobrinho de Edir Macedo.
[2] Victorio Galli assumiu, como suplente, o mandato de Deputado Federal na vaga do Dep. Carlos Bezerra. Foi professor de teologia da Faculdade Teológica de Mato Grosso.
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Ser teólogo é uma profissão? O papel da teologia na sociedade, hoje. Entrevista especial com Afonso Soares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU