"Lembremos que a nossa sociedade é rica em preconceitos que levam às vezes a comportamentos antiéticos e, portanto, anticristãos. Temos preconceitos não só contra mulheres ou contra pessoas LGBTQIA+, mas contra negros, pobres, indígenas, e toda a 'ralé' da sociedade: aqueles que Jesus mais procurou e acolheu", escreve Tereza Cavalcanti, teóloga católica leiga com experiência em leitura popular da Bíblia.
Tereza Cavalcanti (Foto: Reprodução)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Agradecendo ao Frei Betto por sua carta aos bispos católicos, venho acrescentar apenas um ponto.
Maquiavel tem uma frase que me chama atenção. Diz ele: “Os preconceitos têm raízes mais profundas do que os princípios”. Entendo que isto significa que nossos preconceitos se formam no nosso inconsciente, portanto eles não estão submetidos à razão. Se é assim, nossa vontade (que é consciente) não tem poder de mudar nossos preconceitos, a não ser quando nos damos conta de que são mesmo preconceitos, que não obedecem aos nossos princípios. Neste caso, podemos dar espaço para que nossos princípios vençam nossos preconceitos.
Penso que a Igreja Católica de um modo geral – e de modo particular o nosso clero – sofre de um preconceito fortemente enraizado contra as mulheres. Sendo assim, nem sempre nos damos conta do quanto as mulheres, leigas e religiosas, têm sido importantes na pastoral da Igreja.
Betto se refere ao poder clerical e suas consequências na pouca influência que a Igreja Católica hoje consegue exercer sobre “operários, universitários e intelectuais”. Eu acrescentaria que muito do que ainda resta dessa influência se deve a mulheres inseridas nas pastorais da Igreja. Porem isso não é reconhecido.
Vejamos um fato concreto: a Campanha da Fraternidade de 1990. O tema era Mulher, mas desde o início houve problema. O título não podia ser só “Mulher”, mas teve que ser Mulher e Homem - Imagem de Deus” para garantir a “igualdade”, que aliás nunca houve na Igreja Católica quando se trata de mulher e homem...
Na Arquidiocese do Rio de Janeiro o cardeal-arcebispo D. Eugenio Sales designou um grupo de casais para ajudarem na campanha. Por acaso uma vizinha minha pertencia a esse grupo e – sabendo que eu como teóloga vinha trabalhando a questão da mulher na Bíblia e na Igreja –, me convidou para ir conversar com os casais encarregados da campanha na Arquidiocese.
Começamos por alguns textos bíblicos, especialmente do Novo Testamento, que falavam de mulheres.
Em dado momento surgiu a questão, colocada por eles, da possibilidade de mulheres virem a ser ordenadas para o sacerdócio. Eu sabia muito bem que a encíclica de 1988 Mulieris Dignitatem, do Papa João Paulo II, deixava claro que não havia essa possibilidade. E fiquei ouvindo os casais refletirem sobre essa questão.
De repente o senhor que coordenava o grupo levantou uma pergunta: "Se, por acaso, as mulheres puderem se ordenar, nós homens seremos obrigados a nos confessarmos com elas?" Aqui fica claro o preconceito contra as mulheres: são mexeriqueiras, falam demais, não sabem guardar segredos... Como um respeitável senhor se submeteria a confessar seus pecados a uma mulher?
No meu espanto, respondi: “Não. Se tivermos mulheres no sacerdócio, nem por isso os homens terão que se confessar com elas. Eles poderão escolher se vão querer se confessar com mulheres ou com homens, pois os padres homens continuarão a existir! Porém nós, mulheres, não temos o direito a essa escolha!”
Pouco depois a reunião foi encerrada e o senhor que fez a pergunta se levantou, dizendo-se perturbado.
Neste fato fica bem claro como funciona o nosso inconsciente: ele esquece certos dados da realidade que ficam ocultos à nossa consciência porque ultrapassam – ou desmentem – o preconceito.
Lembremos que a nossa sociedade é rica em preconceitos que levam às vezes a comportamentos antiéticos e, portanto, anticristãos. Temos preconceitos não só contra mulheres ou contra pessoas LGBTQIA+, mas contra negros, pobres, indígenas, e toda a “ralé” da sociedade: aqueles que Jesus mais procurou e acolheu.
Olhemos como a Igreja Católica hoje não percebe a importância da presença e atuação das mulheres nas comunidades, especialmente nas comunidades onde faltam padres. Elas se encarregam das Campanhas da Fraternidade. Assumem as liturgias dominicais com competência e simplicidade, puxam cantos, comentam a Palavra de Deus de um modo fiel, trazendo para nossa realidade as lições do Antigo e do Novo Testamento e convidam outros a interpretarem a Bíblia com naturalidade. Elas lideram os movimentos que animam as comunidades, as romarias da terra e das águas, a festas litúrgicas, os círculos e cursinhos bíblicos. Elas praticam o diálogo ecumênico e inter-religioso, até porque em suas famílias é comum haver pessoas de diferentes expressões de fé... Há mulheres que estudam e colocam a Bíblia mais próxima da realidade do que alguns padres formados em seminários são capazes de fazer.
Queridos bispos, sei que muitos dos senhores concordam com essa descrição. Até quando o preconceito vai vencer na Igreja Católica?