14 Novembro 2024
"A justiça e a misericórdia divinas estão, portanto, em contraponto com a tentativa de propor pelo menos 'o dever de esperar por todos'", escreve Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 10-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Além da teologia. O historiador Matteo Al Kalak propõe uma rica pesquisa sobre o assunto, transformando-o em uma trama que reconstrói a história e a geografia do inferno e na qual o realismo se mistura com a metáfora espiritual. “Sempre se fala do fogo do inferno, mas ninguém nunca o viu. O inferno é frio": assim escreve Georges Bernanos em seu romance Senhor Ouine (1943). Em sua obra-prima, Diário de um cura rural (1936), o próprio escritor francês já havia explicado o motivo dessa frieza por meio da voz do protagonista: “O inferno é não amar mais”. Também é famosa a afirmação de Sartre em Huis-clos (1945): “O inferno são os outros”, à qual Eliot replicará em sua peça teatral Cocktail Party (1949) com a frase: “O inferno somos nós mesmos”. O mais radical havia sido Verlaine em seu Jadis et naguère (1884): “O inferno é a ausência”. Mas já o terrível Lucrécio, no século I a.C., em seu De rerum natura, observava com ceticismo: “Os suplícios que dizem haver nas profundezas do Aqueronte já estão todos na vida” (III, 978-9).
No impressionante mapa infernal pintado por Matteo Al Kalak, da Universidade de Modena e Reggio, e entre as centenas de autores e textos que ele envolve, não estão esses e outros escritores, deslumbrados por aquele abismo de “fogo e chamas”, como declara o título de seu ensaio. Uma seleção necessária, porque, paradoxalmente, o submundo atrai mais do que os esplendores paradisíacos, talvez etéreos demais em comparação com o peso vicioso de nossa história e da crônica cotidiana. A representação feita por esse refinado estudioso da história cultural e religiosa é, no entanto, impressionante e transita dos cumes teológicos às exageradas aparições, não apenas marianas, cupidamente debruçadas sobre esse poço sem fundo, às lendas populares e à iconografia nobre ou folclórica.
Acima, usei o verbo “pintar” para definir a pesquisa documental e ideal de Al Kalak; ela é, de fato, confiada a uma espécie de narração. De página em página, somos como que atraídos para uma trama que, por meio de uma sequência de cenas descritas com todos os temperos estilísticos da narrativa, reconstrói “a história e a geografia do inferno”, como promete o subtítulo. Embora surpreendentemente partindo da Sibéria com uma reviravolta (que, no entanto, não é gélida), o verdadeiro início é confiado ao “No princípio” das Sagradas Escrituras, até porque a jornada infernal proposta segue os percursos cristãos, deixando de lado os submundos de muitas outras religiões (embora não faltem referências ao “inferno dos outros”).
Reprodução da obra de Matteo Al Kalak, Fuoco e fiamme, Einaudi, pp. 270, € 25 (Foto: Divulgação)
O que desponta de imediato, então, é uma verdadeira topografia que, ao longo dos séculos, vai se tornando cada vez mais complexa e minuciosa, onde o realismo descritivo se mistura à metáfora espiritual. A mesma fisicalidade adotada por Jesus (a Geena, local do “incinerador” da antiga Jerusalém) é transfigurada em um símbolo teológico. Gostaria de mencionar apenas o capítulo dedicado aos “portões do inferno”, que a tradição fará atravessar ao Cristo ressuscitado. A raiz final dessa imagem deve ser atribuída a uma passagem importante do Evangelho, aquela da chamada “primazia de Pedro”: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno (em grego, ‘do Hades’) não prevalecerão contra ela” (Mateus 16,18). Cruzar aquela soleira, à maneira dantesca, não apenas para afundar como condenado, mas também para retornar como aviso aos viventes (basta pensar na parábola do homem rico em Lucas 16,19-31), é outra etapa desse itinerário não é apenas cultural, mas teológico. Esse aspecto específico - após a imensa convocação de autores, textos, iconografias, mitologias, tradições que inervam todas as páginas do ensaio – configura-se no capítulo final “O que resta do inferno” e no epílogo “Libera nos”, onde se abre um confronto com a modernidade, ou melhor, com a atualidade (há até Medjugorje, mas também a irrupção do demônio na pregação do Papa Francisco).
A questão teológica tem um desdobramento principal na encruzilhada da liberdade, como também é evidente no Catecismo da Igreja Católica (1992), que, recorrendo às Sagradas Escrituras, reitera o “apelo à responsabilidade com que o homem deve usar sua liberdade em vista de seu destino eterno” (nº 1036). Como corolário, há “um premente apelo à conversão”, já que “a principal pena do inferno é a separação eterna de Deus, no qual somente o homem pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira” (n. 1035).
A partir do aparato de imagens, físico e espacial, somos levados de volta, portanto, ao status antropológico existencial da pessoa. Naturalmente, múltiplas presenças e instâncias se movem ao redor: a figura de Satanás, a dialética com a misericórdia divina, o aparente excesso de uma eternidade do castigo infernal até o eventual exercício terminal de nossa liberdade na agonia, vista por alguns teólogos como uma possibilidade extrema de uma opção radical e de conversão que rejeita o mal praticado. Uma espécie de estopim foi jogado no debate por dois ensaios (1986-87) do famoso teólogo suíço Hans Urs Von Balthasar. Eles evocavam duas teses opostas que já estavam presentes na antiguidade cristã. De um lado, a tese “infernalista” defendida por personagens como Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Calvino, e que afirmava a certeza de um inferno povoado por condenados. De outro lado, a tese da “apocatástase”, ou seja, a reconciliação final universal, pela qual o inferno poderia estar vazio. A justiça e a misericórdia divinas estão, portanto, em contraponto com a tentativa de propor pelo menos “o dever de esperar por todos”. Discurso, no entanto, muito articulado e complexo (leiam-se as páginas 210-212 de Al Kalak).
Para concluir, escolhemos o anticlímax sugerido por um original escritor cristão inglês, Clive Staples Lewis. Em suas populares Cartas do Inferno (1942), ele advertia que “a estrada mais segura para o Inferno é a gradual - a ladeira suave, com chão suave, sem curvas acentuadas, sem avisos de quilometragem e sem placas indicativas de sinalização”, na prática sem o pesadelo do fogo e das chamas.
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O que significa ir (e estar) no inferno. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU