19 Outubro 2024
Em SP, vasta diversidade de eleitores de Marçal reflete como os territórios são complexos – e precisa ser estudada. Os espaços de riqueza e pobreza são dinâmicos nas metrópoles, e estereótipos como “classe média burra” e “pobre de direita” implode os diálogos com a população
O artigo é de Lucas Chiconi Balteiro, publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 17-10-2024.
Lucas Chiconi Balteiro é arquiteto e urbanista, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU/USP e membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina” (CACAL, FAU/USP) e “Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica” (CAPPH, UNIFESP).
Muitos se surpreenderam com o alcance de Marçal na Zona Leste de São Paulo, mas, quem vive por aqui, sabe muito bem que o trabalho de base do candidato foi mais expressivo do que boa parte dos candidatos de esquerda, que nem sequer tiveram agendas públicas evidentes na região. Em suma, abriram mão de disputar as classes médias em sua amplitude, o que, na maior e mais rica cidade do país, significa abrir mão de muita coisa.
Afinal, o que a sociedade paulistana não é, nem de longe, é o cenário oito ou oitenta encontrado no Morumbi, entre mansões e favelas. As complexidades são muito maiores e os parlamentares eleitos deverão trabalhar para todos, ou ao menos para a maioria, ao invés da dicotomia da esquerda que oscila entre movimentos acadêmicos e privilegiados de Pinheiros, na Zona Oeste, instituições de classe no Centro e movimentos sociais nas periferias. Como se nada existisse entre esses polos confortáveis ao espectro político.
Pior ainda quando dizem que esses lugares são os dos “pobres que comem mortadela e arrotam caviar”. Gerações anteriores passaram por processos de ascensão social, e lugares consolidados pelo trabalho operário vinculado à indústria e ao comércio popular tornaram-se ambientes híbridos, onde foram proliferadas formas arquitetônicas que reproduzem ares mais “burgueses” e diferenciados.
O ambiente se tornou atrativo a novos negócios do setor privado. O comércio e a oferta de serviços também se diferenciaram e se somaram às camadas populares. Não por acaso, já que a infraestrutura pública já era implantada desde ao menos os anos 1970. Vilas de casas, pequenos edifícios, lojas populares e feiras de rua passaram a conviver com arranha-céus, concessionárias de carros importados, bares e restaurantes cada vez mais sofisticados e casas que também mudaram seus espaços internos e externos para reproduzir sua ascensão.
Estamos falando de um movimento interno de parte significativa dos próprios moradores que pressionou por estas transformações, ainda pouco compreendidas pela academia, sobretudo por grupos da arquitetura e do urbanismo em suas instituições de classe que se colocam como progressistas em termos políticos e ideológicos. Contudo, seus olhares persistem em uma posição de exotismo e crítica, especialmente pela região das elites “tradicionais”, na Zona Oeste e parte da Zona Sul, terem sido pressionadas.
Por esse motivo, é tão oportuno a utilização do termo “além-rios” pela arquiteta e urbanista Deborah Sandes de Almeida, doutoranda na FAU/USP, ao pesquisar bairros da Zona Norte de São Paulo. A ideia de “mesopotâmia paulistana” foi bastante enraizada na história da cidade, que define o “entre rios” (Tamanduateí, Tietê e Pinheiros) como o espaço principal e detentor de riqueza e infraestrutura, ao passo que as regiões “além-rios” (Zona Norte e Zona Leste) seriam menos qualificadas e pobres, marginalizadas. Desse modo, tem emergido uma nova geração de pesquisadores da história urbana que busca desconstruir essas catedrais a respeito da metrópole, por meio das histórias não contadas ou trabalhadas apenas pela visão dos grupos hegemônicos, externos aos territórios em questão.
Quando falamos dos bairros-jardins paulistanos, como os famosos Jardins América e Europa, o Alto de Pinheiros e o Pacaembu, é quase automática a lembrança da Cia City, empresa responsável pela implantação desses bairros. Entretanto, o que Almeida investigou é que a mesma empresa também foi responsável por bairros-jardins no noroeste da cidade, influenciando a urbanização da região por meio de formatos diferentes daqueles encontrados nos bairros da elite tradicional, à exemplo do City América, no Parque São Domingos, e do City Empresarial Jaraguá. Nesses lugares, as dinâmicas de uso e ocupação do solo tomaram outras dimensões, sobretudo pela arquitetura produzida, pouco aceita entre os círculos sociais do circuito “tradicional” do campo em São Paulo, como a Vila Buarque, Higienópolis e Pinheiros.
É nessa mesma região de onde vem a advogada, apresentadora e comentarista Gabriela Prioli, mais precisamente da Vila Mangalot. Há dois anos, foi entrevistada no PodDelas, quando pôde contar sua história ainda muito distorcida entre o público que observa uma mulher branca, loira e de físico padrão. Prioli é filha de trabalhadores, um contador e uma fonoaudióloga, da Vila Mangalot, pequeno bairro às margens da Rodovia Anhanguera, muito perto dos limites com o município de Osasco. Durante a entrevista, definiu o bairro enquanto “periferia”, mas demonstrou esclarecimento sobre a complexidade que acomete sua família e sua história, já que foi bolsista em colégio particular e era tida como da parte “pobre” da família. Enquanto isso, para colegas de bairro, era vista como “rica” por morar em um edifício com apartamentos de 50 metros quadrados. Essa espécie de não-lugar é uma realidade para uma grande parcela da população paulistana, já que uma das heranças da metrópole industrial foi justamente a consolidação de estratos sólidos e variados de classes médias que detém de regiões intermediárias entre a área central e as periferias de fato.
Não é a primeira vez que o mapa das eleições gera preocupação e surpresa na esquerda, visto que o mesmo aconteceu com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, há uma novidade no mapa de 2024: Marçal evidenciou o avanço da fronteira entre os bairros privilegiados e os bairros periféricos, já que regiões como Ermelino Matarazzo, Itaquera e Sapopemba votaram, majoritariamente, em Pablo Marçal, diferente do extremo leste que foi em sua maioria de Guilherme Boulos. Em maioria, não em totalidade, é importante frisar.
Como demonstrou o LabCidade da FAU/USP, existem complexidades pouco reveladas nos mapas do resultado eleitoral. Apesar disso, ainda se faz necessário disputar o conhecimento acadêmico a respeito da metrópole e suas regiões, sobretudo das classes médias. Não foram poucas as evidências de mudanças de cunho cultural e político na Zona Leste nas últimas décadas que ainda reverberam no presente: nos últimos anos, houve a demolição da sede do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, no Tatuapé, em meio a uma disputa por seu tombamento como patrimônio cultural do município. Era um espaço de recepção e organização de eventos de esquerda, o que demonstrava outro sinal relevante de combate à esquerda nesses territórios.
Alguns anos antes, na mesma porção do Tatuapé, a Vila Operária João Migliari protagonizou a mesma situação de transformação de um passado operário de trabalho que remete aos tempos fabris da metrópole e que apresentam uma crise de identidade entre passado e presente, por meio das divisões sociais do trabalho e o sentido de transformar e preservar na metrópole. No mesmo período, empresários e comerciantes da Penha chegaram a contestar o tombamento (instrumento de preservação) do Centro do bairro, onde existe um conjunto importante de espaços construídos para a história de São Paulo, inclusive por parte da comunidade negra local em torno do Largo do Rosário.
Há tempos que bairros como Mooca, Belém e Tatuapé mudaram seu perfil social predominante, assim como Água Rasa, Vila Formosa, Vila Prudente, Vila Carrão, Vila Matilde, Penha, Aricanduva e Parque São Lucas seguiram o mesmo caminho entre aquela cidade industrial de outrora e a metrópole dos serviços que viria a emergir nos finais do século XX.
É notória a consolidação das classes médias paulistanas frente ao agigantamento da região metropolitana, que também abriga processos socioespaciais similares, como no ABC Paulista, Guarulhos, Mairiporã, Osasco, Barueri, Suzano e Mogi das Cruzes. Na Zona Norte, bairros como Santana, Tucuruvi, Vila Maria, Vila Medeiros, Casa Verde, Freguesia do Ó, Pirituba e Parque São Domingos fazem parte dessa história.
O centro desse processo na Zona Leste é o Tatuapé e seu entorno, sobretudo o Jardim Anália Franco, oficialmente Vila Regente Feijó. Os edifícios de alto padrão e as novas tipologias de casas já existem desde os anos 1980 e 1990, muito antes do que se convencionou chamar de “nova classe média”. É onde está a maior concentração de imóveis e serviços caros da Zona Leste, motivado pela ascensão de famílias de diferentes bairros da região que desejaram permanecer por aqui, em movimento contrário ao que cunhou a hegemonia como as Zonas Oeste e Sul sendo os lugares (exclusivos) dos ricos em São Paulo.
Grande parte da esquerda continua proliferando uma ideia de ricos versus pobres que se tornou pouco realista, ou palpável, diante das transformações das últimas décadas. Em São Paulo, locais como os Jardins e Higienópolis não possuem mais a exclusividade de setores privilegiados e de elite econômica. Enquanto esta esquerda não aprender a lidar com as classes médias, com seus estratos mais populares até os mais burgueses, por meio das suas complexidades, vamos continuar derrapando em uma democracia que caminha na corda bamba e é facilmente ameaçada pelo excesso de informações que nos acomete neste século, como comentou a Ministra Cármen Lúcia em entrevista para Ana Maria Braga. O pão e circo pregado por Pablo Marçal, que chegou a conflitar até mesmo com o bolsonarismo, é apenas o começo de uma era em que muitos outros devem testar os limites do sistema político hegemônico e ganhar espaço.
Não é estranho que um sujeito como ele tenha receptividade nesse tipo de lugar comum à Grande São Paulo, que se parece tanto com cidades prósperas do Interior Paulista que também contam com seus estratos trabalhadores emergentes, como Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Bauru, São Carlos, Sorocaba e São José dos Campos, que por sua vez servem de baldeação por meio da cultura do agronegócio que alcança o Centro-Oeste brasileiro, em cidades como Rio Verde, Sinop, Campo Grande e Goiânia, cidade natal de Marçal.
Não é à toa que a primeira “boutique de carnes” de Gusttavo Lima em São Paulo tenha endereço na Rua Antônio de Barros, entre o Tatuapé e a Vila Carrão. É parte de uma estratégia profunda de conhecimento de grupos sociais que a esquerda abriu mão, além de ter criado uma série de estereótipos que mais os afastam do campo progressista do que o inverso.
É também parte de uma cidade que não pediu autorização aos mestres da arquitetura e do urbanismo para acontecer, onde os arranha-céus imponentes e que ostentam novas posições socioculturais e econômicas passam a comunicar esses lugares para o mundo como método de disputa e representação até alcançar o litoral de Santa Catarina, com foco em Balneário Camboriú, onde o vereador mais votado é Jair Renan, o filho mais jovem do ex-presidente Jair Bolsonaro.
São lugares que formam um tipo de cidade que foi tratada como “cafona”, de uma “classe média burra”, que também se expressa por Freguesia, Jacarepaguá e Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, pela região do Altiplano e Tambaú, em João Pessoa, ou pelos muitos condomínios e loteamentos de médio e alto padrão nos arredores de Jundiaí e Campinas. É válido ressaltar a ideia dicotômica que também inclui Brasília, entre Plano Piloto e Cidades Satélites, onde Taguatinga, Águas Claras e Samambaia também revelam prosperidade e dinamismo frente ao abismo social entre as mansões do Lago Sul e o Sol Nascente, hoje a maior favela do país em número de habitantes.
Quando Boulos fala que vive na mesma casa no Campo Limpo, na periferia da Zona Sul de São Paulo, faz parecer que a condição periférica é uma virtude por si só e que qualquer movimento de ascensão será condenado. É parte de tantos bordões propagados como “socialista de iPhone”, “pobre de direita”, “pobre plus”, “classe média burra”, “come mortadela e arrotam caviar”. São falas como essas que buscam condenar estes grupos sociais e que servem de combustível para o crescimento da extrema-direita.
Atitudes como uma carta de intelectuais pelo voto útil em Guilherme Boulos, que incluiu assinaturas de artistas da Zona Sul do Rio de Janeiro, são a prova de que a intelectualidade brasileira, sobretudo paulistana, estabelecida entre o Centro e a Zona Oeste, se afastou completamente da realidade contemporânea da metrópole e do país. São Paulo possui grandes (e importantes) contingentes periféricos, fortalecidos por movimentos sociais de saúde, moradia, educação e cultura. E sim, devem estar nas prioridades da agenda política, uma vez que são os grupos mais vulneráveis em diversas dimensões, assim como em maioria negra. Por esse motivo, nós de classes médias, de diferentes territórios, precisamos ter consciência e dar um passo atrás nas disputas socioespaciais.
Entretanto, São Paulo é também uma metrópole de classes médias consolidadas e privilegiadas, uma vez que é a megacidade brasileira, parte do estado mais rico da federação e da burguesia mais protecionista da América Latina, de acordo com Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, ao ser entrevistado em 2018 a respeito da onda de direita nos governos do continente. Desse modo, seus espaços de riqueza e dinamismo precisam ser olhados para além do lugar hegemônico do senso comum, ainda nos edifícios e casas modernas de Higienópolis e do Alto de Pinheiros, ambos assinados por arquitetos dessa mesma elite, ou na vitrine financeira da Marginal do Rio Pinheiros.
Marçal não deve ser apenas cassado, inelegível e condenado por seus crimes, mas precisa ser estudado, em especial pelos seus eleitores tão diversos que refletem a complexidade dos territórios em que vivem. Se antes já era urgente compreender tantas complexidades socioespaciais da urbanização brasileira, nas eleições de 2024 se tornou palavra de ordem. Quando fazemos da classe trabalhadora um sinônimo de classe pobre, sem complexidades, nos condenamos ao lugar de pobreza que não só deixaria de ter oportunidades de ascensão, mas também iria condenar aquele que ascender por meio do trabalho. Rompemos com nossa própria ideologia em lutar pelas classes trabalhadoras ao abrirmos mão da construção de perspectivas de futuro frente às investidas neoliberais.
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As esquerdas derrapam nas esquinas da cidades. Artigo de Lucas Chiconi Balteiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU