Seca na Amazônia faz pesquisadores correrem contra o tempo para monitorar botos

Esforço de captura e monitoramento do boto-vermelho | Foto: Adriano Gambarini

04 Setembro 2024

Expedição no lago Tefé (AM) antecipa os esforços dos cientistas para entender a dinâmica dos animais com a mudança de temperatura e redução da água. Quase 180 botos-vermelhos morreram em 2023.

A reportagem é de Adriano Gambarini, geólogo de formação, com especialização em Espeleologia, também é fotografo profissional desde 1992 e autor de 14 livros fotográficos, publicada por (O)Eco, 03-09-2024.

Uma bola alaranjada, dito Sol, desponta bem delineada no horizonte. O que parece ser um momento bucólico só denota a opacidade do céu, fruto de uma fumaça incompreensível que sobe no horizonte como cogumelos atômicos. É tempo de queimadas na Amazônia.

Sob este cenário matutino, o movimento de pessoas carregando grandes caixas no porto de Tefé demonstra uma incansável resiliência. E é nesse palco que está uma equipe de pesquisadores do Grupo de Pesquisa de Mamíferos Aquáticos da Amazônia - GPMAA, do Instituto Mamirauá. Entre os dias 13 e 23 de agosto deste ano, o instituto organizou uma expedição para captura e marcação de botos-vermelhos (Inia geoffrensis), drasticamente afetados pela histórica seca que assolou a região em 2023, na tentativa de entender um pouco mais a dinâmica da espécie residente no grande lago Tefé.

O objetivo da empreitada era fazer a captura dos botos, ver seu estado de saúde, marcar com rádios transmissores para compreender seus movimentos ante uma fatídica seca que, numa triste ironia, está afetando a maior e mais úmida floresta tropical do mundo.

 

Nuvens de fumaça sobre o lago Tefé (Foto: Adriano Gambarini)

Na expedição, o trabalho começava já no raiar do dia. Navegando num barco regional, a equipe consistia em 21 pessoas, entre biólogos, veterinários e documentaristas, além de um grupo de oito pescadores locais, responsáveis pela árdua tarefa de encontrar os botos, rastrear e capturar os animais. Nada fácil, considerando a redução rápida do nível das águas do lago e seus afluentes. Enquanto a equipe técnica preparava os materiais clínicos para coleta de amostras dos eventuais bichos capturados, os pescadores seguiam em barcos de alumínio e motor de popa, conhecidos localmente por voadeiras. Viravam noites esperando que os botos adentrassem nos canais e desta forma esticar pesadas redes para uma posterior captura. Foram dias e mais dias de espera num calor que só aumentava. Assim como a fumaça.

Capturas científicas são essenciais para que se conheça a dinâmica e movimento dos animais. Na região de Tefé, uma importante cidade no contexto amazônico, a seca extrema e as altas temperaturas das águas, que chegaram a quase 41º C, associado a um ar poluído pela fumaça das queimadas, fez com que 209 animais morressem, sendo 179 botos-vermelhos. Assim, esta captura teve o propósito de mitigar uma nova mortandade e definir protocolos emergenciais caso uma seca semelhante aconteça. E tudo indica que este ano irá pelo mesmo caminho.

“Todas as capturas, e esta em particular, são fundamentais para definir parâmetros de saúde dos animais como uma preparação para o que pode acontecer nas próximas semanas. Todas as condições ambientais levam a acreditar que pode ocorrer um novo evento de mortandade no lago. Os parâmetros ambientais mais importantes, como a baixa profundidade e alta temperatura da água, estão se intensificando. Podemos observar uma redução do nível da água na ordem de 30 centímetros por dia. A temperatura ainda segue dentro do padrão, chegando a 30°C, e o comportamento dos animais segue normal. Contudo, os fatores observados já são um alerta para a ocorrência de uma nova mortandade”, explica Miriam Marmontel, coordenadora do Grupo de Pesquisas do Instituto Mamirauá.

Ao longo dos dez dias de atividades, foram capturados dois indivíduos, um macho jovem e uma fêmea adulta. A constatação de um filhote junto da fêmea fez com que a equipe trabalhasse rapidamente, próximo à água, para que os animais mantivessem uma comunicação auditiva. Um terceiro animal foi capturado, mas novamente a existência de um filhote ainda menor exigiu que fossem soltos, por segurança.

Veterinários examinam e pegam dados dos animais. Objetivo é entender melhor a dinâmica do boto com a seca (Foto: Adriano Gambarini)

Uma das atividades realizadas pelo grupo de pesquisa foi coletar amostras de sangue e mucosas dos botos capturados, tirar suas medidas biométricas e fazer um ultrassom, realizado por pesquisadores do National Marine Mammal Foundation, dos EUA, um dos institutos parceiros do Mamirauá nestas campanhas. Além disso, foi colocado um “brinco” na nadadeira dorsal, que permitirá o monitoramento dos animais observados à distância, e um chip subcutâneo. Estava previsto também, mas não foi executada, a instalação de um transmissor por satélite, que além das coordenadas de localização, mede a temperatura e profundidade das águas. Tudo isto para que os botos possam ter seus deslocamentos monitorados, e se porventura ficarem confinados em regiões muito rasas do lago, providenciar ações emergenciais de captura e translocação para rios maiores, no caso o Rio Solimões.

Não é de hoje que o Grupo de Pesquisas trabalha na captura e avaliação da saúde dos botos-vermelhos. Desde 2022 ocorrem capturas sistemáticas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, unidade de conservação próxima de Tefé, com o intuito de estudar a saúde dos botos e analisar a qualidade da água ante problemas ambientais que vem ocorrendo na Amazônia, como garimpo, poluição e as queimadas cada vez mais intensas.

 

Botos passam pela avaliação dos veterinários e biólogos (Foto: (Foto: Adriano Gambarini)

Todos os bichos capturados são intensamente analisados, com coleta de amostras que são processadas em laboratórios de diversas instituições parceiras. E esse trabalho já identificou diversas doenças que podem, inclusive, ser transmitidas ao homem. Afinal, assim como nós, os botos são mamíferos pulmonados, e tudo que os prejudica pode afetar as milhares de pessoas residentes nas comunidades ribeirinhas.

A veterinária Thais Carneiro explica que os botos podem ter muitas doenças causadas por vírus, bactérias, fungos e parasitas. “Nos dedicamos sempre a pesquisar algumas doenças que podem ser mais comuns na Amazônia e que sabemos que podem causar problemas para a conservação da espécie, como leptospirose, toxoplasmose, brucelose e contaminação por metais pesados. É feita ainda uma análise geral da saúde, com exames de sangue como hemogramas, dosagem das enzimas hepáticas e renais para avaliação do rim e fígado”, descreve a profissional.

Além das capturas anuais para uma avaliação minuciosa dos botos, o GPMAA mantém um trabalho contínuo de monitoramento do lago Tefé, fotoidentificação, estimativa populacional e coleta de carcaças, sempre com o intuito de antecipar qualquer situação emergencial. Afinal, a dramática situação do ano passado precisa ser evitada a todo custo, e todo apoio se faz necessário para prevenir novas tragédias. O instituto conta com as parcerias do WWF-Brasil e da R3 Animal, instituição conhecida de Santa Catarina no resgate e cuidados de mamíferos aquáticos.

Com a mesma resiliência incansável que move os pesquisadores, é necessário correr contra o tempo e recuperar para a Amazônia o status de maior (e úmida) floresta tropical. E que possamos nos honrar em conviver com a maior biodiversidade do mundo.

 

Canal seco que deságua no lago Tefé. Foto: Adriano Gambarini

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