30 Julho 2024
Iniciativa clamorosa na conferência de Munique sobre a Aids para pedir à empresa farmacêutica Gilead que reserve a "vacina" contra o HIV apenas para os países ricos.
A reportagem é de Andrea Capocci, publicada por Il Manifesto, 25-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O dia de ontem na conferência internacional sobre Aids em Munique foi bastante agitado. Pela manhã, uma manifestação repentina de cientistas e ativistas marchou pelo Messe Munchen, o centro de exposições que sedia a conferência, e foi direto para o estande da empresa farmacêutica Gilead, com cartazes e faixas. “A ganância da Gilead mata”, “A vida antes do lucro”, “40 dólares e não 40.000” foram as frases mais lidas e ouvidas. No centro do conflito está o lenacapavir, um medicamento produzido pela empresa e capaz de prevenir a infecção pelo HIV.
O medicamento já é usado como terapia em pessoas soropositivas e, nessa formulação, é vendido por US$ 42.000 por ano nos EUA. A empresa descobriu que o lenacapavir também funciona como profilaxia pré-exposição (PrEP): duas injeções por ano são suficientes para reduzir, se não zerar, o risco de contrair o HIV em relações sexuais desprotegidas. Depois de tantos anúncios, foi publicado ontem no New England Journal of Medicine o estudo realizado em cerca de cinco mil mulheres na África do Sul e em Uganda, no qual o medicamento da Gilead provou ser claramente superior aos já utilizados, que exigem medicações diárias a que poucas pessoas em risco se submetem com a regularidade necessária. Receber uma injeção a cada seis meses, por outro lado, é muito mais fácil.
Para médicos e ativistas, o novo medicamento oferece uma chance concreta de erradicar a doença, que afeta 40 milhões de pessoas em todo o mundo, com 1,3 novas infecções a cada ano. No entanto, se o preço do medicamento permanecer tão alto, muitos dos países em maior risco não terão condições de comprá-lo.
Também presente ontem em Munique o vice-presidente da Gilead, Jared Baeten, que participou de uma aguardadíssima coletiva de imprensa para tentar defender a empresa das acusações de ganância. No entanto, as suas palavras — e especialmente os seus silêncios — alimentaram a polêmica em vez de atenuá-la. A Gilead anunciou sua intenção de permitir a produção de uma versão genérica do lenacapavir, renunciando aos royalties da patente do medicamento, apenas em países de baixa renda.
Apesar das aparências, a abrangência desse anúncio para a luta contra a epidemia de HIV é bastante reduzida. De fato, da lista ficariam de fora países considerados de renda média, como China, África do Sul e Brasil (além de outros nove), onde ocorrem 41% das novas infecções e onde o acesso regular a medicamentos para os segmentos mais pobres da população não é garantido. Na África do Sul, menos de 7% das pessoas que teriam direito seguem a profilaxia pré-exposição. No Brasil, esse número chega a 14%. Um medicamento que requer apenas uma injeção a cada seis meses poderia atingir até mesmo as pessoas que têm mais dificuldade para acessar o tratamento e segui-lo regularmente, se o preço fosse acessível. Baeten não respondeu às perguntas dos jornalistas sobre os distintos países, alegando que a lista ainda não é definitiva.
O fato de a Gilead querer extrair o máximo de lucro da epidemia de HIV não é uma surpresa para ninguém.
A empresa é conhecida pelos preços exorbitantes de seus medicamentos. O Yescarta, uma terapia gênica usada no tratamento de linfomas, custa mais de 400 mil dólares. O Tecartus, contra a leucemia linfoblástica, cerca de 600 mil euros (na Itália são pagos pelo sistema de saúde pública). No passado, a empresa foi protagonista de um cabo de guerra internacional sobre o preço do Sovaldi, o antiviral que transformou a hepatite C em uma doença curável.
A empresa estabeleceu um preço de várias dezenas de milhares de dólares por tratamento, obrigando muitos governos a fornecer os medicamentos de forma limitada, apesar do grande número de pacientes afetados.
Por fim, durante a emergência da Covid, a Gilead produziu o primeiro medicamento antiviral eficaz, o remdesivir, e o vendeu por cerca de 3 mil dólares por dose, apesar da emergência sanitária internacional.
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O protesto de cientistas e ativistas: “primeiro a vida, depois o lucro” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU