23 Março 2024
“Penso que está na hora de deixarmos de acreditar que o poder político pode fazer algo contra o crime organizado. O narcotráfico está no núcleo do sistema. O capitalismo e o seu Estado são o crime organizado, por isso não podem ser combatidos separadamente”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 22-03-2024. A tradução é do Cepat.
No portal pelotadetrapo.org.ar (18/03/24), em artigo intitulado O experimento rosarino, o jornalista investigativo Carlos del Frade denuncia: “Aniquilar o narcotráfico supõe acabar com 30% do sistema financeiro internacional, regional e nacional”. Del Frade mora em Rosário, capital da província de Santa Fé, na Argentina, convulsionada pelos crimes recentes do narcotráfico.
“Aniquilar o narcotráfico supõe eliminar uma das principais artérias do sistema capitalista e não agirão. A única coisa que buscam é gerar controle social sobre os últimos elos da comercialização deste negócio multinacional e paraestatal”, continua Del Frade, ao mesmo tempo em destaca a militarização como um experimento “de controle social para garantir a pilhagem”.
Até aqui, sua análise é muito semelhante à realizada em outros casos, como no da Colômbia, do México e dos países da América Central.
O mais interessante vem de um artigo anterior e de seus livros, onde fornece dados concretos sobre como surgiu o narcotráfico em Rosário, em um texto intitulado A origem do poder do narcotráfico em Santa Fé (pelotadetrapo.org.ar, 05/01/2015). Del Frade diz que “o narcotráfico começou como um negócio paraestatal da ditadura argentina”.
Com efeito, a declaração de um ex-integrante do Serviço de Inteligência do Exército argentino, emitida no Brasil, em 2009, detalha os envios de cocaína, a partir de 1978, devido a acordos entre as ditaduras de Jorge Rafael Videla e do boliviano Hugo Banzer.
Esses “negócios” foram continuados pela narcoditadura de Luis García Meza (1980-81), “sob a proteção da CIA e a anuência do governo dos Estados Unidos”, aproveitando a zona franca que tinha sido concedida à Bolívia no porto de Rosário.
É preciso lembrar que o exército argentino participou do golpe de Estado que levou García Meza ao poder, através do Batalhão de Inteligência 601, e que em sua breve gestão houve 500 vítimas de desaparecimentos forçados, assassinatos e torturas, e mais de 4.000 presos.
Hoje, pode-se afirmar que os graves problemas sofridos pela cidade de Rosário (que, por certo, são vividos por muitas cidades do continente), estão ligados à origem do narcotráfico no período do terrorismo de Estado, já há meio século. Isso explica, segundo Del Frade, por que existe tanta “impunidade acumulada”, que há alguns anos vem explodindo e afetando principalmente os setores populares.
O importante do caso de Rosário e da Bolívia é que demonstra claramente o papel das instituições militares e policiais na expansão do narcotráfico e o papel desempenhado pelas ditaduras militares. Desta experiência, muito semelhante ao que acontece em toda a América Latina, é possível retirar alguns aprendizados que facilitam a compreensão do fenômeno.
O primeiro é que o narcotráfico é um produto do Estado, de suas instituições e, sobretudo, dos aparatos armados. Não é só porque são corruptos, evidentemente são, é que raciocinam com a lógica capitalista de acumulação por espoliação e enriquecimento através da violência. Também não se pode dizer que os envolvidos com o narcotráfico sejam apenas um punhado de “maçãs podres”, mas, ao contrário, as instituições armadas, como tais, são parte do negócio.
Estamos, portanto, diante de uma questão estrutural. Da mesma forma que o escândalo Irã-Contras (o uso do narcotráfico para financiar grupos armados criados e organizados pelos Estados Unidos, como os Contras da Nicarágua) não foi uma aberração cometida por altos funcionários do governo de Ronald Reagan, mas, sim, uma prática comum utilizada em todas as suas intervenções, do Vietnã ao Afeganistão, mas também para combater os dissidentes internos, como o Partido dos Panteras Negras.
O segundo aprendizado é que o narcotráfico é um modo estrutural do capitalismo, que utiliza o Estado para a sua expansão. Assim, pode-se entender que é aberrante utilizar as mesmas forças que potencializam o narcotráfico, que dele vivem e o protegem, para combatê-lo. Seria necessário, em cada país, que se investigue quanto ganha um policial com o salário fornecido pelo Estado e quanto ganha para proteger o narcotráfico. A diferença pode ser abismal.
O terceiro é que o poder político se limita a combater os elos inferiores do negócio, porque para as burguesias não há Bukeles, como lembra Del Frade. Aqui, as vítimas são os jovens pobres, seja porque são recrutados como “soldadinhos” do narcotráfico e descartados a qualquer momento, seja porque são extorquidos por gangues locais narcopoliciais, assassinados ou negociados como prostitutas ou matadores.
Penso que está na hora de deixarmos de acreditar que o poder político pode fazer algo contra o crime organizado. O narcotráfico está no núcleo do sistema. O capitalismo e o seu Estado são o crime organizado, por isso não podem ser combatidos separadamente.
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Narcotráfico e forças armadas. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU