20 Março 2024
"Hoje, na terceira década do novo século, a fase do Segundo Inconsciente parece se encaminhar para uma conclusão. Estamos ingressando, ao que parece, numa nova psicoesfera onde um Terceiro Inconsciente começa a se formar. (...) O limiar é aqui e agora: ele surgiu com a chegada do coronavírus no espaço de conscientização coletiva".
O comentário é de Franco “Bifo” Berardi, filósofo, escritor e ativista italiano, em texto que compõe o prefácio para o seu livro mais recente, O Terceiro Inconsciente, publicado por A Terra é Redonda, 14-03-2024.
Este livro explora a mutação do Inconsciente social em curso na atualidade. Meu ponto de observação é aquele que habitamos no presente: o limiar histórico marcado pela pandemia viral e pelo colapso catastrófico do capitalismo. A partir desse limiar, o que vemos diante de nós é um horizonte de caos, exaustão e extinção progressiva.
Essa mutação foi resumida à perfeição pelo filósofo japonês Sabu Kosho. No seu livro Radiation and revolution [Radiação e revolução] (2020), Sabu Kosho escreve com uma lucidez desesperançada: “Filosoficamente, esta é uma virada ontológica da dialética para a imanência – da totalização pelo capitalismo e pelo Estado para a onipresença dos eventos singulares. Nessa virada está a iminência de uma revolução planetária que será percebida como a decomposição do Mundo e a redescoberta da Terra.”
Os conceitos que emergem da compreensão de Sabu Kosho sobre os apocalipses de Fukushima em 2011 são cruciais para interpretar os apocalipses globais de 2020: a proliferação ubíqua e irrefreável do princípio de dissolução (radiação, vírus), a erosão de toda ordem simbólica e política, e o retorno da Terra, há tanto negada. A Terra, definida por Gilles Deleuze e Félix Guatarri como a grande desterritorializada, está se reafirmando e varrendo o patético poder político com a força de tsunamis, incêndios florestais e epidemias virais.
Eu acredito que a filosofia e a psicanálise, ao invés de entrar em pânico e maldizer o caos, deveriam assumir esse horizonte de caos e exaustão como o ponto de partida para a sua reflexão. Tudo precisa ser redefinido, especialmente o que acontece no espaço íntimo do desejo, da emoção, do medo.
Imagem: Divulgação
O Inconsciente é uma região sem história, sem sequencialidade, sem um antes e um depois: seria impossível escrever uma “História do Inconsciente”. É possível, porém, descrever a história da psicoesfera de uma sociedade, e, nesse sentido, é possível falar num “terceiro” Inconsciente: a terceira forma que o Inconsciente assume no ambiente mental da modernidade tardia.
A “primeira” fase foi explorada por Freud, que concebeu o Inconsciente como o lado obscuro do quadro bem ordenado do progresso racional.
Ciência, educação e dedicação ao trabalho eram os pilares da vida pública moderna. Casamento, monogamia e família nuclear eram os pilares da vida privada moderna.
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud afirma que a normalidade social exige um alto grau de negação do desejo ou de repressão do Trieb (pulsão sexual ou instintividade). A forma burguesa de “normalidade” dominante no início do século XX produziu uma forma particular de sofrimento a que Freud denominou “neurose”. Para prosseguir com os afazeres da vida cotidiana, o indivíduo moderno era obrigado a renunciar, reprimir e possivelmente obliterar suas pulsões sexuais – e essa remoção era patogênica. A neurose era a forma geral dessa patologia.
O quadro mudou nas últimas décadas do século XX, quando a aceleração da infoesfera e a intensificação da estimulação nervosa (comunicação via internet e globalização cultural) ameaçaram a repressão sistêmica do desejo e o regime psicopatológico da neurose.
A primeira intuição dessa transformação na paisagem psicocultural pode ser encontrada no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guatarri (Ed. 34), livro que marcou a virada do estruturalismo para o pensamento criativo-rizomático, mas que conceitualmente também abriu a caixa de Pandora do desejo, antecipando, portanto, a hipermobilização neoliberal da energia do desejo dissociado do prazer.
No Anti-Édipo, Gilles Deleuze e Félix Guatarri rejeitam a ideia de que o Inconsciente é uma espécie de depósito contendo as experiências que não queremos ver, recordar, ou trazer à nossa vida consciente. O Inconsciente não é um teatro, mas um laboratório: o Inconsciente é a força magmática que traz incessantemente à tona novas possibilidades de imaginação e experiência.
Hoje, cinquenta anos após a publicação do Anti-Édipo, podemos ler o pensamento criativo de Gilles Deleuze e Félix Guatarri como a fundição ambígua (extremamente ambígua, e extremamente rica) de um futuro de dois gumes: o futuro utópico da “libertação do desejo” e o futuro distópico do capitalismo neoliberal, onde o desejo é celebrado como um impulso para o consumo, para a competição e o crescimento econômico, enquanto o prazer é constantemente adiado.
O sistema midiático foi integralmente mobilizado para expandir as promessas de satisfação, mas essa aceleração no fluxo de informações sobrecarregou a capacidade humana de atenção, adiando indefinidamente a possibilidade do prazer, que em último grau se tornou inalcançável. Esse regime social levou à configuração de um novo regime psicopatológico, que caracterizou as últimas décadas: a era do pânico, da depressão e, em último grau, da psicose.
O pânico significa a percepção do excesso de possibilidades, a intuição de um volume inalcançável de prazer. Uma pessoa entra em pânico porque está diante de um excesso de prazer que não pode de fato experimentar. O pânico é a linha de fuga da depressão, e a depressão é o retorno tranquilizante após uma jornada pelo pânico. Essa é a oscilação interna da psicoesfera pós-neurótica.
Na era do Segundo Inconsciente, a neurose não é mais o modo geral de sofrimento psíquico. Conforme a explosão do inconsciente nos conduz a uma condição de hiperestimulação e frustração psicológica, a psicose toma o lugar da neurose.
O turbilhão rizomático da experiência de rede arrasta o inconsciente, que Freud define como a Innere Ausland (a “terra estrangeira interior”), para fora de si, externalizando-o ao ponto de uma explosão psicótica.
Chamo de “semiocapitalismo” a essa articulação entre acumulação, produção semiótica e estimulação nervosa.
Félix Guattari sugere que a esquizofrenia seja considerada um distúrbio da livre produção de significados. No seu pensamento, o esquizoide torna-se a figura crucial de uma aventura de libertação, criatividade e conhecimento. Esse, porém, é apenas o lado libertador da aceleração. Ela tem outro lado, denunciado por Jean Baudrillard em A troca simbólica e a morte (1976): a aceleração extasiante da estimulação nervosa (sedução, simulação, hiper-realidade) anda de mãos dadas com a globalização neoliberal, provocando uma perturbação na esfera da experiência.
A psicopatologia do semiocapitalismo é marcada pela ansiedade, pelos distúrbios de atenção e pelo pânico. A depressão entra como sintoma final do regime semiocapitalista: a intensidade do ritmo social e emocional torna-se insustentável, e a única maneira de escapar ao sofrimento é mutilar a conexão com o desejo e, consequentemente, a conexão desejante com a realidade.
Hoje, na terceira década do novo século, a fase do Segundo Inconsciente parece se encaminhar para uma conclusão. Estamos ingressando, ao que parece, numa nova psicoesfera onde um Terceiro Inconsciente começa a se formar. É preciso ter cuidado: a forma dessa nova região do Inconsciente não é facilmente divisável; tampouco é previsível, pois a evolução da psicoesfera não é linear. Não há determinismo na psicoesfera; não há um mapa dessa Innere Ausland, pois, segundo afirma Freud, o Inconsciente não tem consistência nem lógica.
Então não podemos saber exatamente em que direção (ou direções) o escape mental irá evoluir, nem que evolução (ou evoluções) serão causadas pela pandemia de Covid-19, que coincide com um colapso econômico e social generalizado.
Quando eu falo em Terceira Era do Inconsciente, eu me refiro a um futuro em aberto, que será moldado por nossa consciência, nossa ação política, nossa imaginação poética, e pelas atividades terapêuticas que formos capazes de desenvolver durante essa transição. Feitas as devidas ressalvas, já é possível delinear ao menos alguns distúrbios na atual virada psíquica.
O limiar é aqui e agora: ele surgiu com a chegada do coronavírus no espaço de conscientização coletiva. Esse vírus bio-info-psíquico vem alterando de maneira irreversível a nossa proxemia social, as nossas expectativas afetivas, o nosso inconsciente. Embora ainda seja difícil distinguir os contornos dessa mutação em curso, alguns de seus traços gerais já estão nítidos e adentraram nosso campo de visão.
Em primeiro lugar, a proximidade dos corpos se tornou um fator problemático, e a sua sobrevivência como parte de nossa vida social está sob crescente ameaça. Em segundo lugar, a disseminação do sofrimento na era pandêmica (não apenas do sofrimento médico, mas do sofrimento econômico, social e, em último grau, mental) tem atingido níveis tão insuportáveis que uma forma de imunização contra a emoção pode vir a se tornar dominante: o autismo e a alexitimia podem entrar na disputa pela psicoesfera como a internalização da recusa em sentir emoções alheias, e possivelmente também as próprias. O que descrevo neste livro não é um percurso bem delineado da mutação, mas um campo de possibilidades magmático, numa paisagem arrebatada pela ansiedade.
Na primeira parte do livro, “No limiar”, irei descrever os efeitos da irrupção do coronavírus no espaço da sensibilidade e da imaginação coletivas.
Na segunda parte, “A psicoesfera iminente”, tento contrabalançar as tendências distintas (ou mesmo divergentes) que se inscrevem na mutação psicológica em curso, na medida em que esta afeta as esferas da sexualidade, proxemia social e desejo.
Na terceira e última parte, “Devir-nada”, faço um esboço da paisagem deste século segundo a vejo desde o ponto de vista do presente: um mundo que envelheceu, a exaustão dos recursos físicos e neurológicos, a extinção como sentido do nosso tempo. Apenas um novo movimento da imaginação poderá dispersar esse horizonte de probabilidade.
Entretanto, se esse for o novo horizonte do Inconsciente, devemos nos lembrar uma vez mais de que o Inconsciente não é um depósito, mas um laboratório. A pergunta mais urgente não é sobre o que o Inconsciente percebe e projeta para fora de si. A pergunta é esta: como o Terceiro Inconsciente poderá encontrar uma saída de seus próprios pesadelos?
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O terceiro inconsciente. Artigo de Franco “Bifo” Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU