Senadores votam na próxima semana os vetos de Lula ao projeto que restabeleceu a tese do marco temporal, apesar de o STF já ter declarado inconstitucional; frente do agronegócio faz ameaças.
A reportagem é de Tainá Aragão, publicada por Amazônia Real, 08-12-2023.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vai entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) no Supremo Tribunal Federal (STF) se os senadores derrubarem os vetos parciais do presidente Lula (PT) ao marco temporal, como está ameaçando a Frente Parlamentar do Agronegócio. Sancionada em outubro com 34 vetos, a Lei 14.701/2023, que trata do reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas. Os advogados da Apib solicitarão a tutela de urgência no STF, cujos ministros já consideraram inconstitucional a tese do marco temporal. A Amazônia Real recebeu o conteúdo da ADIN na íntegra.
A votação no Congresso está marcada para ocorrer no próximo dia 14, depois de ter sido adiada por duas sessões (dias 7 de dezembro e 23 de novembro). A Lei 14.701, conhecida como “Lei do Genocídio Indígena”, tem origem no Projeto de Lei 2903, apresentado pelo ex-deputado federal Homero Pereira (MT) e aprovado pelo Senado em setembro, sob relatoria do senador Marcos Rogério (PL-RO).
O coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, disse que a organização já espera que os parlamentares derrubem os vetos de Lula. Caso isso ocorra, eles entrarão imediatamente com a ação, pois a Lei deve entrar em vigor em 48 horas.
“Essa lei viola diversos direitos fundamentais dos povos indígenas. Ela tenta instituir o marco temporal pela via Legislativa, mesmo que o STF já tenha declarado sua inconstitucionalidade no julgamento do recurso extraordinário. Mas além do fundo do marco temporal, há outras questões extremamente nocivas aos povos indígenas”, disse Maurício Terena em entrevista à Amazônia Real.
A tese jurídica do marco temporal foi um dos principais dispositivos vetados por Lula na sanção da Lei 14.701. Ela estabelecia que os povos indígenas só teriam direito às terras que ocupavam ou reivindicavam em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Mas a Apib vê ameaças adicionais a alguns pontos que foram sancionados pelo presidente.
A “Lei do Genocídio” traz outras medidas que são graves violações aos povos indígenas: permite empreendimentos nos territórios sem necessidade de consulta aos indígenas garantida pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), facilita contato com povos isolados, veda ampliação de áreas já demarcadas e retira o protagonismo dos indígenas em atividades econômicas que porventura possam ocorrer em suas terras.
Na quarta-feira (6), a Frente Parlamentar do Agronegócio divulgou uma nota dizendo que o grupo “está pronto para derrubar os vetos ao marco temporal na sessão do Congresso, quando houver”. Segundo a Frente, “reformar julgamento, passando por cima das decisões do Poder Legislativo, é um profundo desrespeito à Constituição Federal e alimenta divisões que só causam prejuízos a nossa nação”. A mobilização dos parlamentares contra os direitos dos povos indígenas tem sido ampla e constante.
Na peça judicial, os advogados da Apib descrevem a criação da Lei 14.701 como um “manifesto revanchismo parlamentar”. “A lei ora questionada, embora tenha sido originalmente proposta em 2007, foi açodada em regime de urgência em ambas as casas legislativas, com o fito de inserir o marco temporal no ordenamento jurídico brasileiro, que já havia sido declarado inconstitucional pelo STF”, diz trecho da ADIN.
Maurício Terena, que é um dos autores da ação, salientou que “não se mudam os direitos indígenas por uma lei ordinária como o Congresso Nacional está fazendo”. O advogado destacou, entre as decisões mais preocupantes, a flexibilização da política de contato com indígenas isolados, a liberação para plantação de transgênicos em terras indígenas e a abertura econômica dos territórios.
“Isso viola o direito à consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas, alterando a Constituição por uma lei ordinária quando o correto seria por uma Emenda Constitucional. São diversas preocupações espelhadas ali, perto do genocídio, porque isso vai implicar diretamente na vida de outros indígenas em diversas áreas”, afirmou.
Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil-APIB. (Foto: Reprodução redes sociais)
Os advogados da Apib também alertam que o texto da Lei 14.701/2023 “foi redigido de maneira unilateral por parlamentares da bancada ruralista, e em nenhum momento fora oportunizado aos povos indígenas o direito de se manifestar previamente acerca das medidas que impactam seus direitos constitucionalmente assegurados”.
A ADIN representa um contraponto à aprovação da lei, considerada pela Apib como um retrocesso nos direitos dos povos originários. Para Maurício Terena, há um momento político em torno disso que precisa de alerta. “Vamos entrar em uma área um tanto nebulosa. O Congresso tentando minar uma pauta do Executivo, que é a proteção dos povos indígenas. Então a gente pensa e fica muito preocupado com isso porque é uma sinalização política”, explica.
As 93 páginas da ADIN apresentam argumentos contundentes, evidenciando o grave retrocesso que a rejeição do veto pode acarretar aos indígenas. Diante disso, o documento declara um “risco iminente de danos irreparáveis e de difícil reparação aos direitos fundamentais e constitucionais dos povos indígenas do Brasil”, caso os vetos do Lula sejam amplamente rejeitados pelo Senado, como já sinalizado”.
Este tipo de legislação tem gerado debates intensos devido às suas implicações na proteção dos direitos e territórios dos povos indígenas. A ADIN da Apib destaca que a falta de consulta aos povos indígenas pode violar direitos fundamentais e a autodeterminação dos povos indígenas, por outro lado, a na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), que está negociando a rejeição dos vetos no Senado por defender que tais medidas são necessárias para o desenvolvimento econômico e a utilização dos recursos naturais.
Plenário do Senado Federal durante sessão que aprovou o PL 2.903/202, que estabelece um marco temporal de referência para demarcação de terras indígenas. Painel exibe resultado de votação: senadores aprovam por 43 votos a 21. (Foto: Waldemir Barreto | Agência Senado)
A Lei nº 14.701 teve seu início em discussões na CRA do Senado, passando por um processo que culminou com sua aprovação e encaminhamento para votação no plenário. O projeto, além de abordar o polêmico marco temporal, também contempla a permissão para a construção de infraestruturas em territórios indígenas sem a obrigatoriedade de consulta prévia às comunidades afetadas, bem como a possibilidade de estabelecimento de contratos de produção entre fazendeiros e indígenas.
Em um único mês, em outubro, o STF considerou ilegal o marco temporal e iniciou debates sobre sua aplicação na demarcação de terras indígenas. O Senado, em reação, aprovou um projeto restabelecendo o marco temporal como norma para essas demarcações. Logo em seguida, o presidente Lula sancionou a lei do Congresso, mas vetou a tese do marco temporal.
A discordância entre os Poderes Legislativo e Judiciário, especialmente em relação ao marco temporal tem sido um ponto crucial. A votação desse projeto gerou uma série de preocupações, especialmente sobre o iminente risco de instalação de empreendimentos econômicos em Terras Indígenas, sem assegurar o direito de consulta, conforme estipulado na Convenção nº 169.
Indígenas de varios povos na parte externa do Supremo Tribunal Federal (STF), para assistirem o julgamento do marco temporal. (Foto: Joéson Alves | Agência Brasil)