01 Novembro 2023
"O caráter fetichista da mercadoria, também denominado como reificação, faz com que a força de trabalho seja apenas mais um ingrediente na receita do capitalista para a acumulação. Em síntese, o próprio trabalhador é transformado em coisa no capitalismo, permitindo uma humanização das mercadorias e uma coisificação dos humanos"
O comentário é de Matheus Silveira de Souza, doutorando em sociologia pela UNICAMP, em artigo publicado por Jornal GGN, 26-10-2023. O artigo foi enviado pelo autor.
A expansão das plataformas digitais e das diferentes tecnologias em nosso cotidiano cria algumas ilusões que nem sempre são facilmente identificáveis. Em um mundo em que boa parte dos serviços que utilizamos é controlado por plataformas digitais, as vezes há a impressão de que os serviços são realizados diretamente por tecnologias, e não por trabalhadores e trabalhadoras.
Marx destacou uma característica peculiar do capitalismo, que denominou como fetichismo da mercadoria. Na sociedade capitalista, as mercadorias ganham uma autonomia em relação aos seus produtores, dando a impressão de que existem por si mesmas, como se não fossem fruto de um trabalho humano. Assim, a relação social entre os seres humanos assume “a forma fantasmagórica de uma relação social entre coisas” [1]. Dito de outro modo, é como se as mercadorias não tivessem sido produzidas por trabalhadores e trabalhadoras, mas que ganhassem vida própria, tornando invisível o trabalho humano dispendido para a sua produção. A marca do trabalho em cada produto é uma espécie de assinatura do trabalhador. Entretanto, quando esse produto assume a forma mercadoria, é como se a assinatura do trabalhador fosse apagada e uma relação entre pessoas se transformasse em uma coisa.
Se o fetichismo da mercadoria tinha grande impacto nas subjetividades em um capitalismo de base industrial, esse efeito é potencializado em um capitalismo informacional-digital-financeiro, cujo funcionamento depende cada vez mais de plataformas digitais, extração de dados, acúmulo de informações e financeirização. Em síntese, a fase atual do capitalismo intensifica o fetichismo da mercadoria, transformando-o em um fetichismo da tecnologia. É óbvio que a tecnologia também é fruto do trabalho humano, pois cada aplicativo, algoritmo e plataforma digital foi programado por algum indivíduo, ou seja, a tecnologia é também uma mercadoria, mesmo que frequentemente tenha uma aparência imaterial.
As diferentes plataformas digitais presentes em nosso dia a dia oferecem variados tipos de serviços e criam a impressão de que “tudo o que precisamos está a um clique de distância”. O lanche ou a pizza que queremos comer em um domingo a noite está mais perto do que imaginamos, a apenas um clique de distância, como se o que trouxesse a refeição até nosso apartamento fosse a tecnologia do Ifood e não um motoboy colocando sua vida em risco ao dirigir em um trânsito caótico ou um jovem montado em uma bicicleta e chegando a pedalar 50 quilometros por dia [2]. Não é coincidência que nos últimos seis anos a porcentagem de acidentes de moto no setor de traumas no Hospital das Clínicas da USP subiu de 20% para 80%. [3] Há vários relatos de lideranças de entregadores sobre a morte de motoboys em acidentes de trânsito enquanto realizavam entregas para empresas como o Ifood.
As compras realizadas pela Amazon, que chegam tão rapidamente em nossas casas – e com um frete tão barato – só são possíveis em virtude de condições precárias de trabalho de milhares de indivíduos, que não dispõem de horário de almoço, não possuem tempo para ir no banheiro e precisam fazer xixi em garrafas devido às altas demandas de atendimento. Algumas pesquisas demonstraram que 74% dos trabalhadores e trabalhadoras da Amazon, no Reino Unido, evitam usar o banheiro por medo de serem punidos por ociosidade e, consequentemente, perderem o emprego [4].
O uso de aplicativos de inteligência artificial, que por vezes aparece como uma máquina criada autonomamente, necessita de um treinamento humano para funcionar. Ensinar um algoritmo a diferenciar uma árvore de um poste, por exemplo, pode levar algumas horas de trabalho humano distinguindo essas imagens [5]. Embora a IA faça tudo sozinha posteriormente, na sua origem há um trabalhador ou trabalhadora exercendo uma atividade mal remunerada e treinando, com atividades tediosas e repetitivas, esse algoritmo. A Amazon Mechanical Turk (MTurk) é o maior exemplo de plataforma especializada em microtrabalho humano utilizado para treinar inteligências artificiais e conhecida por pagar centavos de dólares para trabalhadores e trabalhadoras realizarem cada atividade [6].
Não é novidade para ninguém que celulares e notebooks, mercadorias tão presentes e úteis no nosso dia a dia, são produzidas por trabalho humano. Entretanto, nem sempre lembramos que boa parte desses produtos utilizam cobalto para sua produção, material extraído de minas com exploração de trabalho infantil. Apple, Google, Tesla e Microsoft respondem por um processo – movido pela International Rights Advocates em nome de 14 famílias congolesas – que as acusam de terem ciência de que o cobalto utilizado nas suas indústrias é fruto de trabalho de crianças e adolescentes do Congo. A República Democrática do Congo é responsável por 60% da produção mundial de cobalto e há diversas reportagens mostrando a morte dessas crianças durante a extração em decorrência da queda de paredes nas minas.
Como podemos ver, a atual fase do capitalismo, de base informacional-digital-financeira [7], só pode continuar funcionando pela existência de uma característica originária do capital: exploração do trabalho humano para extração de valor. Ainda que o fetichismo da tecnologia “apague” o trabalho humano existente por trás de cada aplicativo e plataforma digital, um olhar mais atento demonstra que as maravilhas do mundo digital ainda são determinadas por relações sociais entre pessoas e não entre coisas. Mais especificamente, relações impostas por empresas com o monopólio de infraestruturas digitais – Amazon, Meta, Uber, Google, Microsoft – que determinam não apenas o mundo do trabalho, mas também as interações sociais entre os indivíduos.
O caráter fetichista da mercadoria, também denominado como reificação, faz com que a força de trabalho seja apenas mais um ingrediente na receita do capitalista para a acumulação. Em síntese, o próprio trabalhador é transformado em coisa no capitalismo, permitindo uma humanização das mercadorias e uma coisificação dos humanos.
Compreender que o capitalismo é constituído por diferentes fases demanda uma apreensão das especificidades de cada época histórica, não como mera contemplação, mas como forma de elaborar estratégias efetivas de atuação na realidade concreta. Desvelar as mudanças que ocorrem no mundo do trabalho e os seus efeitos nas subjetividades dos trabalhadores é crucial para construirmos uma luta política que não deixe o desejo dos indivíduos em segundo plano, mas que considere a unidade existente entre as necessidades materiais e psíquicas.
[1] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro 1. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 147.
[2] BBC NEWS Brasil. Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativo. Disponível no link.
[3] THE INTERCEPT. Motociclistas são 70% dos internados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas. Disponível no link.
[4] UOL. Controle do almoço e xixi na garrafa: entenda briga Amazon x funcionários. Disponível no link.
[5] UOL. MTurk: quem são e o que fazem os brasileiros que estão na plataforma de bicos da Amazon. Disponível no link.
[6] DIGILABOUR. Trabalhando na Amazon Mechanical Turk: entrevista com Krist Milland. Disponível no link.
[7] ANTUNES, Ricardo. Trabalho e (des)valor no capitalismo de plataforma: três teses sobre a desantropomorfização do trabalho. In: ANTUNES, R. (Org.) Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais. São Paulo: Boitempo, 2023.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uberização e fetichismo da tecnologia. Artigo de Matheus Silveira de Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU