18 Outubro 2023
Nos Estados Unidos, os gastos com defesa aproximam-se de um trilhão de dólares por ano, para financiar um poder militar sem precedentes e sem paralelo no mundo. Um “militarismo banal” permeia a cultura de massa.
O artigo é de Richard E. Rubenstein, membro do Centro de Estudos Sereno Regis, publicado por Chiesa di tutti, chiesa dei poveri, 11-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Todos sabem que os Estados Unidos são a primeira potência militar do mundo, com um orçamento anual de “defesa” que se aproxima de um trilhão de dólares, muito mais do que os orçamentos para os armamentos das outras 144 nações juntas. Os Estados Unidos empregam mais de 3,5 milhões de militares e civis ativos e mantêm mais de 750 bases militares em cerca de 80 nações ao redor do mundo. O setor manufatureiro mais lucrativo e de mais rápido crescimento do país é o complexo militar-industrial, que emprega mais de 4 milhões de trabalhadores e fornece cerca de 40 do total de armamentos utilizados pelas forças armadas mundiais. Na produção e detenção de armas nucleares, é claro, os Estados Unidos são absolutamente dominantes.
Tudo isso é bem conhecido. No entanto, no cerne da produção de armas e da preparação para a guerra, não há praticamente nenhum debate sobre o militarismo. Apenas poucos indivíduos e organizações se preocupam e se agitam pelo tamanho do orçamento militar, pelo culto aos valores militares e pela belicosidade dos regimes liberais e conservadores. Na ausência de uma crise como a do Vietnam ou a invasão do Iraque, as suas opiniões tendem a ser marginalizadas e ignoradas pelos meios de comunicação e pelas forças políticas hostis ou indiferentes.
Parte da razão para a relativa imunidade do militarismo às críticas é o extraordinário poder cultural na sociedade estadunidense das instituições e das formas de pensar pró-militares. O que alguns analistas chamam de “militarismo banal” é onipresente, a ponto de se tornar praticamente invisível, parte do ar que que se respira. O termo indica as formas com as quais o uso da força armada é legitimado ou encorajado por uma densa rede de pressupostos cotidianas, costumes, rituais e emoções que são aceitos semiconscientemente como parte da nossa personalidade e da nossa identidade coletiva. (Michael Billig descreveu originalmente o nacionalismo banal num estudo publicado pela Sage em 1995; o conceito foi adaptado por Tanja Thomas e Fabian Virchow em Banal Militarism, um livro publicado em 2006 pela Verlag.)
Um exemplo de militarismo banal é a veneração ritual do pessoal militar e dos símbolos que se manifesta em muitos eventos públicos nos EUA, desde eventos desportivos a feriados destinados a glorificar veteranos de guerra e soldados caídos. Nos eventos esportivos, já é costume as unidades militares uniformizadas desfilar com a bandeira estadunidense antes de cantar o hino nacional. Durante os jogos de beisebol, os veteranos que retornam são regularmente apresentados à multidão e formalmente agradecidos por seus serviços, enquanto durante o intervalo do Super Bowl de futebol profissional, caças militares fazem exibições no ar.
O militarismo banal também denota ideias, ligadas por narrativas e imagens às emoções, que são aceitas como verdades indiscutíveis da natureza humana, da sociedade e da história. Um exemplo típico é a ideia de que os agressores maus só podem ser dissuadidos através de ameaças de violência e que, se a dissuasão falhar, deve-se resistir e derrotá-los com a força armada. Essas noções não são propostas como temas de discussão ou qualificação, mas são tidas como certas; isso é, são apresentados como dogmas da religião civil estadunidense. São incontáveis as histórias de filmes e programas de televisão que os reforçam. Um filme de que me lembro vividamente da minha infância é “High Noon” (1952), um filme sobre a Guerra Fria que sataniza o fora-da-lei patologicamente agressivo, santifica o herói corajosamente violento e denuncia a namorada do herói – uma pacifista sentimental – bem como os covardes cidadãos.
As mensagens fundamentais do filme, inconfundíveis para adolescentes como eu, eram que os inimigos são incorrigíveis, o dever supera o amor, a covardia é o pecado dos pecados e o dever daqueles que não querem morrer como covardes é enfrentar o inimigo com a arma na mão.
Desse breve resumo poder-se-ia concluir que, dado o poder da cultura para moldar as mentes e as emoções das pessoas, é impossível combater o militarismo banal. Mas as ideias e as emoções, mesmo que conectadas ou catequizadas, não estão sozinhas; estão intimamente associadas a sistemas organizados que têm uma base material e ideal e cujos produtos culturais servem para justificar. Deixando de lado as ideias e as atitudes, o “militarismo” inclui milhões de homens e mulheres ligados ao setor militar; os contribuintes que pagam os seus salários e os custos da sua manutenção e assistência vitalícia; empresas que produzem armas e outros produtos militares; cidadãos que contribuem para financiar essa produção e renunciam a programas de bem-estar social para satisfazer as exigências militares; políticos que procuram bases e indústrias militares e defendem a “preparação” para a guerra; fabricantes e negociantes de armas que financiam as campanhas eleitorais desses mesmos políticos; e muito mais.
Como esses exemplos deixam claro, as forças armadas e o seu complexo industrial têm impactos na sociedade que não desaparecem nem se tornam semiconscientes devido a crenças ou atitudes militaristas. Ao contrário, a tensão entre o militarismo como ideologia e os seus efeitos práticos tende a crescer à medida que aumenta a demanda total de serviços humanos. Ou, dito de outra forma, essa tensão tende a aumentar com a proliferação de necessidades de segurança humana, e não apenas militar. Atualmente, o sistema dos EUA (bem como outros sistemas industriais avançados) está sob pressões cada vez mais fortes de três fontes: geopolítica, ambiental e socioeconômica. Cada um dos seguintes desafios torna mais difícil para os estadunidenses manterem uma posição militarista de forma abertamente ideológica ou “banal”:
Há tempo que se reconhece que o militarismo dos EUA não é simplesmente nacional, mas imperial. A Segunda Guerra Mundial terminou com os Estados Unidos como a única superpotência mundial – um status confirmado pela queda da União Soviética e pelo fim da Guerra Fria no início da década de 1990. Contudo, após quarenta anos de domínio global marcado por guerras dispendiosas, inconclusivas ou perdedoras, o império estadunidense está sendo agora posto em discussão por uma série de fatores que tornam o mundo multipolar. À medida que aumentam a tensão entre os Estados Unidos e “adversários” declarados como a China e a Rússia, as vozes militaristas tornam-se mais fortes e insistentes. Mas a oposição a novas aventuras militares também se intensifica tanto na direita liberal como na esquerda progressista. Isso tem o efeito de tornar o militarismo menos “banal” e abrir a porta à discussão de questões antes consideradas tabus.
As principais ameaças à segurança humana nos Estados Unidos, como na maioria das outras nações, não são militares, mas ambientais. Trata-se de incêndios, inundações, tempestades, secas e outros “desastres naturais” associados às alterações climáticas causadas pelo homem, às pandemias como a Covid-19 e aos resultados da poluição industrial da atmosfera, das florestas, dos oceanos e dos cursos de água. A solução desses problemas exigirá um financiamento maciço que quase certamente reduzirá os atuais níveis de despesas militares. Exigirá também o desenvolvimento de novas modalidades de ação civil coletiva. Mas o principal impacto dessas novas realidades sobre amplos sectores da população será deixar claro que o “inimigo” que ameaça as suas vidas, as suas liberdades e a sua felicidade não é uma Grande Potência megalomaníaca ou um ditador, mas uma combinação de natureza abusada e governo disfuncional. Em tais circunstâncias, as organizações e os valores militaristas tornam-se simplesmente irrelevantes.
Uma crise de desigualdade social, caracterizada por grandes diferenças de rendimento, riqueza e poder social entre classes privilegiadas e menos privilegiadas, já está desestabilizando a política em muitas nações industriais avançadas, incluindo os Estados Unidos. O efeito líquido da atividade militar-industrial, dominada por um pequeno número de empresas superlucrativas que utilizam métodos de produção de alta tecnologia, é intensificar essa crise, e não a mitigar. A conversão da produção militar-industrial para usos de a paz será necessária para reconstruir uma infraestrutura em decadência, criar postos de trabalho civis e promover um planejamento econômico coletivo. Mais uma vez, diante de problemas sociais reais que exigem soluções, o militarismo parece menos uma ideologia sinistra ou desacreditável do que uma distração irrelevante.
Por essas razões, podemos esperar ver, ao longo do tempo, o crescimento de movimentos populares nos Estados Unidos e noutros lugares que desafiam a hegemonia dos valores e práticas militaristas. Neste momento, porém, os defensores da paz podem desempenhar um papel criativo no processo. Eles podem romper os tabus que tornam o militarismo “banal” participando em organizações como Code Pink, World Beyond War, TRANSCEND e a Campanha pela Paz, Desarmamento e Segurança Comum em manifestações e discussões públicas que colocam em discussão os dogmas adquiridos, como a necessidade de dissuasão violenta e políticas como aquela de armar o regime ucraniano para obter a “vitória” sobre a Rússia. Podem organizar palestras em universidades e conversas nas organizações comunitárias, sindicatos e igrejas que destaquem os desafios reais para a segurança comum e os custos exorbitantes dos preparativos e das atividades militares. E podem falar com colegas, amigos e parentes sobre a necessidade de separar as virtudes há muito associadas às atividades militares – coragem, camaradagem e disponibilidade ao sacrifício – das práticas brutais e autodestrutivas de um império militarizado.
Livrar os Estados Unidos e o mundo do militarismo levará tempo, sem dúvida. Mas isso acabará acontecendo. E, como perguntou o sábio Hillel, “se não for agora, quando?”
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Se não agora, quando? Libertar o mundo do militarismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU