27 Julho 2023
"Para o bem-estar das pessoas e do planeta, precisamos urgentemente de uma transformação dos sistemas alimentares que só pode passar por uma mudança de paradigma estrutural", alerta Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (editora Giunti e Slow Food), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa, 24-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para alimentar oito bilhões de pessoas, e dez em perspectiva, o caminho é tão claro quanto revolucionário: parar de perseguir o lucro e começar a defender a produção de alimentos, a terra da qual ela depende e as pessoas que a cultivam. O alimento deve ser um direito, não um bem a negociar na bolsa de valores; uma prioridade universal, não uma commodity para enriquecer alguns em detrimento de outros, da saúde do planeta e do futuro da humanidade.
Essas deveriam ser as premissas – não negociáveis – na base da segunda Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares Sustentáveis que foi realizada de 24 a 26 de julho na sede da FAO em Roma, para dar seguimento aos compromissos assumidos na reunião realizada em 2021. Hoje como então, porém, a visão e os objetivos da cúpula estão longe do desejado. Há dois anos, mais de 9.000 pessoas pertencentes a organizações da sociedade civil – entre as quais a Slow Food – organizaram uma mobilização paralela à cúpula oficial, expressando fortes reservas sobre sua estrutura, orientação política e processo organizacional que, desde o início, não promoveu o multilateralismo democrático, inclusivo e participativo, mas colocou no centro os poderosos do agronegócio.
Legitimar nos mais altos escalões das Nações Unidas os interesses dos atores privados é muito perigoso porque normaliza um modelo de governança em que o bem público e a proteção de um direito universal se curvam à vontade das multinacionais.
O encontro provavelmente apenas confirmará essa abordagem, "vendendo" soluções de natureza puramente tecnológica e economicamente pouco acessíveis, como soluções transformadoras e de solução para as atuais distorções dos sistemas alimentares. No entanto, as crises contínuas e sistêmicas que há anos estamos vivendo e que levaram a uma exacerbação das desigualdades, são em grande parte atribuíveis ao crescente poder dos lobbies dentro dos espaços políticos. Para isso a contramobilização de muitas organizações da sociedade civil, de povos indígenas, agricultores, pastores e pescadores continua também em 2023.
Os últimos dados contidos no relatório da FAO sobre o estado da segurança alimentar no mundo mostram dados alarmantes. Em 2022, 735 milhões de pessoas no mundo sofreram fome e, embora o número global tenha se estabilizado entre 2021 e 2022, alguns lugares apresentam condições trágicas também devido aos efeitos agora evidentes da crise climática. É o caso da África com 20% da população do continente sofrendo por fome, mais que o dobro do média global. Indo além da fome, o relatório também aponta que cerca de 29,6% da população mundial, igual a 2,4 mil milhões de pessoas, vive em condições de insegurança alimentar, o que mostra que nem sempre está garantido pelo menos um dos quatro pilares (disponibilidade, estabilidade, uso e acesso aos alimentos), em que se assenta esse conceito. Finalmente, hoje em dia fala-se muito da importância de adotar dietas saudáveis e sustentáveis, mas apenas 58% da população mundial tem capacidade econômica para poder acessá-la.
Para o bem-estar das pessoas e do planeta, precisamos urgentemente de uma transformação dos sistemas alimentares que só pode passar por uma mudança de paradigma estrutural. Isso pode ser feito colocando os direitos humanos e os bens comuns no centro da resolução de todas as formas de injustiça, protegendo a biodiversidade e reconhecendo a agroecologia como modelo de produção capaz de devolver a soberania sobre os sistemas alimentares às comunidades locais.
Não estou falando de utopias, mas de realidades que já existem no mundo e que no nível das Nações Unidas encontram representação e expressão no Comitê para a Segurança Alimentar Mundial (CFS). O CFS é o principal fórum internacional e intergovernamental para as pessoas interessadas em trabalhar para garantir a segurança alimentar e nutricional para todos. Serve, portanto, aos interesses das pessoas e não das multinacionais e não é por acaso que foi colocado à margem da Cúpula sobre os Sistemas Alimentares.
Um velho provérbio camponês alemão diz: não confie à cabra o papel de cuidar do jardim.
Como a cabra que come tudo indiscriminadamente em um jardim, da mesma forma as multinacionais se não forem controladas acabarão destruindo os sistemas alimentares.
A verdadeira mudança dos sistemas alimentares requer das Nações Unidas uma abordagem democrática multilateral verdadeira e profunda; onde cada voz encontre liberdade e legitimidade de expressão.
Pequenos e médios produtores de alimentos não apenas alimentam o mundo, mas também promovem os direitos humanos fundamentais e protegem o meio ambiente. Quando a política vai começar a ouvi-los e dar-lhes um apoio adequado?
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A ONU e os erros sobre a fome no mundo agora realmente devem parar as multinacionais. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU